setembro 03, 2007

O mau estado dos cidadãos

O Presidente da República vetou a lei de responsabilidade civil extra-contratual do Estado. O assunto passa ao lado das preocupações da maioria dos cidadãos ou entre os outros dois vetos que ocuparam mais espaço nos jornais – o do estatuto dos jornalistas e o da lei orgânica da GNR. Acontece que as dúvidas levantadas pela chamada lei de responsabilidade extra-contratual do Estado estendem-se muito para lá da natureza da própria lei, cujo princípio parece – ao Presidente – essencialmente correcto. Mas, se tanto no caso do estatuto dos jornalistas (um nó górdio que o governo há-de ter dificuldade em desatar) como no da lei orgânica da GNR, o parecer presidencial é rigorosamente fundamentado e demonstradas as lacunas, os perigos e os atropelos dos diplomas (cujos textos tinham sido aprovados no parlamento apenas com o voto favorável dos socialistas), já no caso da responsabilidade civil extracontratual do Estado (que no Parlamento obteve a unanimidade das bancadas) o problema da lei está, digamos, nas consequências. O Presidente tem medo do que possa acontecer ao Estado.

Essencialmente, esta lei tem como função proteger o cidadão dos arbítrios cometidos pelo Estado, responsabilizando este pelos seus contratos, decisões, processos, danos causados, atrasos, erros e outros pecados administrativos que todos conhecemos. A lei que está em vigor coloca o Estado no centro da vida da sociedade e corresponde a um modelo autoritário e a uma visão desajustada da vida actual; a lei que o Presidente vetou pretendia responsabilizar o Estado e proteger os cidadãos nas suas relações contratuais com o Estado. Uma das consequências desta lei, caso entrasse em vigor, seria o aumento das reclamações e da legitimidade dos cidadãos para pedir indemnizações ao Estado ou entidades públicas. O argumento do Presidente insiste no perigo das consequências financeiras para o Estado e na sobrecarga dos tribunais com eventuais processos.

Há, evidentemente, uma justificação para o veto presidencial: o diploma foi elaborado sem serem apreciadas as suas consequências para o bem-estar do Estado “e a estabilidade das finanças públicas”. Como é habitual nas hostes parlamentares, legislar é barato e fácil – e legislar de forma “politicamente correcta” é ainda mais fácil e mais irresponsável. Mas, ao vetar o diploma da forma que o fez, o Presidente não só abriu a caixa de Pandora onde se esconde o periclitante mecanismo que regula as relações entre o Estado e os cidadãos, como reconheceu que o Estado ficaria em maus lençóis se houvesse justiça. Vamos e venhamos, há aqui uma contradição: o Presidente concorda com o princípio mas teme o resultado, preferindo salvar o Estado e a sua máquina (mesmo que ela proceda mal, mesmo que aja com má-fé, preguiça, má-vontade, desleixo e irresponsabilidade) do que colocar-se ao lado dos cidadãos que não têm defesa contra os arbítrios da Administração. O sinal dado é péssimo: em caso de dúvida, o Estado e a sua máquina saem beneficiados porque uma indemnização, mesmo que justa, não pode colocar em perigo a “estabilidade orçamental”.

Sabemos, também, que o Parlamento devia ter ponderado melhor. Para quem vive exclusivamente à conta do Estado, o único remédio para financiar as contas traduz-se no aumento dos impostos. Nisso, o Presidente tem razão. Mas, nesse caso, não lhe custava nada insistir no carácter absolutamente justo dos direitos dos cidadãos diante da máquina e da geringonça do Estado, e na necessidade de o Estado melhorar os seus serviços e o seu tom de voz. É uma maneira de dizer, claro. Mas ficava dita uma coisa semelhante. O Presidente não pode é associar-se aos que tratam os cidadãos e os seus direitos individuais como um empecilho para as contas e para a felicidade do Estado.

in Jornal de Notícias – 3 Setembro 2007

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