setembro 10, 2007

A noite chique não está sozinha

O ministro da Administração Interna foi ao Parlamento dizer que a GNR deu o corpo às balas em Viana do Castelo, para responder às acusações de laxismo e de aumento do “clima de insegurança”, vindas do PSD. Periodicamente, diante de uma vaga de assaltos e de homicídios, o país parlamentar desaba sob o insuportável peso do ridículo. Não que o assunto não seja importante, mas quando se trata de “insegurança”, o melhor é exagerar e chamar pelo pior que há em nós; no caso dos políticos, esse pior chama-se demagogia.

Ora, de vez em quando a euforia regressa e o país é comparado a um faroeste; simplesmente, há um cruzamento de dados que convém estabelecer. Essa relação tem a ver com “a noite”. Quando se fala na “noite” há toda uma indústria que se evoca, incandescente e explosiva: bares, discotecas, consumo de drogas e de álcool, carros em alta velocidade, adolescentes iniciando uma carreira promissora na matéria, espancamentos tiroteios, negócios obscuros e ilegais, ruas povoadas de enrgúmenos, invasões dos subúrbios.

Há aqui uma mudança: as cidades, que até aos anos setenta viviam com relativa tranquilidade e protecção policial, deixaram “a noite” para uma fauna interclassista e poderosa, violenta e organizada. Evidentemente que o fascínio das burguesias urbanas pela “noite” (essa promessa de aventura, de sexo e de evasão) não contava, como sempre, com a democratização acelerada do seu espaço de diversão. A “noite”, que tinha o seu “glamour” e os seus nomes gravados a ouro e pérola, passou a ser perigosa; o pessoal dos subúrbios e dos bairros pobres ou remediados também tem direito a esse “glamour”, vivido à sua maneira, mesmo que lhe estrague o arranjinho e lhe retire o brilho. Claro que a noite é violenta; claro que é o reino da transgressão; claro que alberga o crime muito mais facilmente; claro que contribui para “dissolução moral” e para que os adolescentes “ganhem experiência”. É a vida e não é só de agora.

Nós (eu, sim), os burgueses desenganados, na nossa placidez e desejo de conforto, ficamos em casa, vemos televisão, lemos livros e compramos DVDs, jantamos com amigos, jogamos dominó e levantamo-nos relativamente cedo. Se saímos à noite, protegemo-nos em lugares tranquilos. Somos pacatos. É (para o discurso “jovem” das televisões e do cinema) um ideal de vida medíocre e desprezível. Aceito. Simplesmente, o género humano quer tudo ao mesmo tempo, e a “burguesia moderna”, então, exagera: quer recusar esse modelo de vida “medíocre e desprezível” e, ao mesmo tempo, exige segurança nas ruas para se proteger dos arruaceiros; quer policiamento à porta dos bares mas, muito avançada, acha que os polícias são inoportunos; escandaliza-se com os bairros vizinhos minados pelas drogas mas snifa a sua coca de luxo; quer melhor aproveitamento escolar nos liceus e, ao mesmo tempo, discotecas abertas até meio da manhã.

Ora, não se pode querer tudo ao mesmo tempo. Quando ocorreu a primeira grande vaga de crimes pelas províncias fora (de que o caso Meia Culpa, de Amarante, foi um exemplo mortal), descobriu-se que Portugal não era uma paisagem cheia de melros nas oliveiras e de gente pacata que trabalhava das nove às cinco e economizava para o futuro. Para grande parte desse país nocturno e adequado para o cinema, a vida começa quando quase tudo é permitido e a vigilância real abranda.

A histeria é escusada: os chamados “níveis de insegurança” são relativamente pacatos. O chamado “bas-fond” existe como existe a “noite”, onde não só todos os gatos são pardos como toda a tentação é fatal. Não se pode querer apenas o “chique da noite” e tratar a polícia como se fosse uma entidade pária e incómoda. Infelizmente, é mesmo isso: todos os gatos são pardos.

in Jornal de Notícias – 10 Setembro 2007

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