setembro 11, 2007

Elogio do fim do mundo

Há fins do mundo para todo o gosto, afastados dos lugares registados nos nossos sonhos. Não têm spas nem restau­rantes que se possam recomendar pela sua criatividade, não têm hotéis «tudo incluí­do» e, alguns desses lugares, nem sequer têm hotéis. Não ficam em «ilhas paradi­síacas». Não têm acesso facilitado – al­guns, inclusive, não vêm nos mapas. São o fim do mundo. E, no entanto, às vezes gostaríamos de ter viajado para lá, nem que seja através das páginas de um livro, nos momentos nostálgicos de um filme ou apenas naquela devassidão sonhadora que toma conta do «viajante ideal», que é aquele que está sempre em viagem, mesmo que não saia do seu quarto.

Rubem Fonseca é um dos mais notá­veis escritores de língua portuguesa, autor de A Grande Arte. Nele fala de uma via­gem até um fim do mundo particular, Co­rumbá, que passa por ser uma espécie de «capital do Pantanal» brasileiro. É uma viagem de comboio, entre São Paulo e Bauru passando por Campo Grande — do estado mais cosmopolita do Brasil até um dos mais desconhecidos, a grande barrei­ra do Mato Grosso com a Bolívia, ou se­ja, a fronteira Corumbá-Quijarro.

Estive naquele fim do mundo mas nunca encontrei a frase maravilhosa que encerra um dos capítulos de A Grande Arte: «Não vou te ensinar a chegar ao Céu saindo de Mato Grosso.» A descri­ção daqueles dias da sua personagem favorita (Mandrake, um advogado criminalista carioca), perdido entre Co­rumbá, Puerto Suárez e Quijarro, na li­nha de fronteira, daria um outro roman­ce. É aí, no deserto do fim-do-mundo, entre o Pantanal exuberante e a frontei­ra da Bolívia, que Rubem Fonseca colo­ca um restaurante português onde se be­be «Terras Altas», «Granleve» e «Porca de Murça». O dono tinha chegado a Corumbá (o fim do mundo, repito) atrás de «uma mulher, uma deusa, uma santa» que conhecera dois mil quilómetros a norte, em Belém do Pará e que vai en­contrar já casada na cidade do Mato Grosso. No meio da sua desilusão de amor estarrecedora e romântica, o por­tuguês (chamado Alberto, natural de Elvas) atirou-se ao rio para ser devorado pelas piranhas. Mas a história termina bem, como quase sempre acontece nos lugares que vêm do fim do mundo (o lei­tor terá de folhear o livro, pelo menos, porque é um monumento).

Lembro-me de chegar a Corumbá («Corumbá, eu quero ter/ Sob o teu seu céu tão brilhante/ Feliz viver», é o refrão da marchinha da cidade) de boleia num camião que atravessava o Mato Grosso pela fronteira, na direcção de Porto Velho e, depois, para a encosta oeste das serras do Paraná. Como em A Grande Arte, «o céu estava azul, com nuvens brancas imóveis e opacas como blocos de gesso», e a cidade estava ainda cheia de adolescentes ou pós-adolescentes que iam a Quijarro apanhar o Tren de Ia Muerte, o lendário comboio andino que percorre as montanhas até tocar as nu­vens e a claridade rarefeita dos seus pi­cos onde por vezes cai a neve.

Naquela desolação perfeita, naquele silêncio de­vorador da tarde — tórrida e poeirenta – esses bandos de viajantes sem hotel, sem malas, sem comodidades de nenhuma espécie, eram a única lembrança de uma vida qualquer noutro lugar do mundo.

Não faço ideia do que cada um pro­curava no Tren de Ia Muerte, nas suas carruagens velhas, naquele percurso de dias seguidos pelas montanhas. Mas soube nesse instante que seria uma das minhas viagens — justamente para fugir ao fim do mundo de Corumbá e para ir pro­curar outro, mais a norte ou mais a sul, mais escondido ainda, perto das alturas de Machu Picchu, onde não chegasse a voz de nenhum romance – ou só che­gasse um romance e nada mais.

Ainda ouço o ruído daquele com­boio, afastando-se como se fosse para ou­tro hemisfério.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Setembro 2007

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