Não sei se sabe mas são-lhe atribuídos nomes de plantas (entre elas, um carvalho sul-americano, belíssimo, e uma planta carnívora, a Utricularia), de animais (pinguins, imagine-se) de regiões terrestres (nomeadamente dois rios, uma cordilheira de montanhas, um parque no Ilinóis, um distrito do Iowa e outro da Califórnia) ou lunares (o Mare Humboldtianum), de acidentes estelares (um asteróide, o Alexandra, de 165 kilómetros de diâmetro) ou bem mais caseiros (como a que leva o seu nome mas é também chamada Corrente do Peru, e que se estende por uma grande área do Pacífico). Vi no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pela primeira vez, um gerânio que leva o seu nome.
De resto, Alexandre Von Humboldt (1769-1859) estudou um pouco de tudo, como era costume no seu tempo. Comecei pelo seu irmão, Wilhelm, linguista e grande universitário europeu, cujo trabalho continua actualíssimo. E só depois regressei a este homem que escreveu e investigou sobre matérias tão diversas como vulcanologia, botânica, astronomia, física, filosofia, mineralogia, oceanografia, etnologia ou geografia e cartografia puras. Interessam-me almas assim, perdidas entre conhecimentos tão diferentes, capazes de se apaixonarem por espectros tão largos do que é suposto ser «o conhecimento humano». Humboldt seria uma espécie de sábio cosmopolita, como George Steiner gostaria de o designar. Por mim, limito-me a imaginá-lo e convido o leitor a deslocar-se ligeiramente na curva do tempo até aos finais do século XVIII, digamos que sete anos antes do Grande Terramoto de Lisboa, em 1755 – a data do seu nascimento. Na época, o Grande Terramoto foi lido oficialmente, pelos padres da Igreja, como um castigo divino. Voltaire escreveu sobre o assunto, rindo (o riso filosófico que fez o mundo andar para a frente) mas o leitor que imagine Humboldt, aos quinze anos, por exemplo, com vontade de viajar. Esses conhecimentos fatais e multiplicados, estendidos da botânica à cartografia (e, inclusive, à filosofia – estamos no período das Luzes), não poderiam ser adquiridos na sua Berlim natal, nem apenas nas universidades que frequentou (a de Frankfurt, antecessora da Goethe, ou as de Göttingem, Hamburgo ou Jena). Em 1789 (que é o ano da Revolução Francesa; o ano da legalização, através da eleição de George Washington, da revolução e independência dos Estados Unidos; o ano da morte do grande sultão otomano Abd-ul-Hamid I), fez a sua primeira grande viagem pelo litoral da Europa (poisando aqui e ali, na Holanda) e subindo o Reno. Dez anos depois, em 1799, e que durará cinco anos cheios de emoções e de descobertas, levá-lo-á a atravessar o Atlântico e a iniciar (curiosamente: com um passaporte espanhol, obtido depois de muitos acidentes que adiaram sucessivamente a partida) uma espantosa exploração da América, desde o novo país que entretanto fascinara tantos europeus, até às cordilheiras do Sul. Sendo certo que nunca se aproximou (conforme o desejo inicial) dos gelos próximos do Pólo, a viagem foi suficientemente aventurosa para o ter levado a Cuba, à Grande Colômbia, às cordilheiras andinas e aos vulcões adormecidos do Peru e do México, antes de chegar aos Estados Unidos.
Um homem assim levanta suspeitas – de loucura, de devassidão e de espionagem, para mencionar apenas três. Por isso mesmo, os portugueses recusaram-lhe a entrada no Brasil (ele seria espião ao serviço da Prússia). Imagino a cena e compreendo-a: Humboldt foi avistado naquele território-de-ninguém, situado naquilo que hoje é a fronteira com a Venezuela, e que um século antes tinha sido explorado por ums das maiores figuras da colonização portuguesa da América, o militar e geógrafo Pedro Teixeira, glória do Amazonas e do Pará. Foi recambiado para o norte e mandado fazer as suas explorações geológicas e observações meteorológicas (como os antigos Incas e Aztecas, verdadeiramente) na América Central. O que Alexandre Von Humboldt compreendeu do mundo eu não sei – apenas imagino: um complexo fantástico de medições e conclusões extraordinárias e inovadoras, tanto para as ciências naturais como para o que seriam mais tarde as ciências sociais (a antropologia e a etnologia à cabeça). Foi isso que o levou depois, quando a sua fama atravessava toda a Europa, a viajar pela Ásia e pela Rússia. Digamos que isso acontece após a publicação – em francês, pois viveu mais de uma dezena de anos em Paris – de um livro maravilhoso, Viagem Interminável pela América do Sul. Foi na estepe e na tundra, nos gelos quase eternos e então cristalinos da Sibéria, nas montanhas dos Urais, que Humboldt continuou a sua vocação na meteorologia e na mineralogia, atravessando rios e temendo a morte. As suas obras, escritas sempre na Alemanha, são monumentais; o Exame Crítico da História e da Geografia do Novo Continente é um resumo de ciência e história da América; e Cosmos (cinco extensos volumes), uma aproximação a todos os conhecimentos geográficos e naturais do seu tempo. Criador e estudioso, aventureiro e aristocrata, Alexandre Von Humboldt é a prova mais evidente da necessidade de viajar. É uma das minhas invejas.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Junho 2009Etiquetas: Volta ao mundo