julho 30, 2007

Uma desconhecida fome de Justiça

Em muitas circunstâncias, e mesmo que não venha a propósito, há duas classes semi-profissionais que se mostram muito amigas da justiça – além, evidentemente, dos “profissionais do sector”. São elas: os políticos e os colunistas da imprensa. Além disso há uma outra categoria que rejubila sempre que se fala de justiça: a televisão.

Recomendo ao leitor que relembre o ar festivo com que se comemoram instruções de processos, indicações de arguidos e de testemunhas, idas à PJ e aos departamentos, inquéritos e anúncios de inquéritos, carros da PJ em alta velocidade transportando inquiridos (futuramente arguidos, ou não, testemunhas ou nem sequer suspeitos), bandos de jornalistas cumprindo o dever profissionais e correndo atrás de advogados, juízes mudos, magistrados com sorriso de Mona Lisa, testemunhas e (cá vai outra vez) pessoas que futuramente poderão, ou não, ser constituídas arguidas em processos que, convém dizê-lo, ainda não são processos.

Ora, essas movimentações não significam, por si mesmas, regozijo pelo bom andamento da justiça. Querem sobretudo dizer que o ressentimento tem cada vez mais espaço público sob o manto diáfano da “fome de justiça” e do absolutamente necessário combate à corrupção. Portugal fora, há bastantes profissionais da fome da justiça bem como profissionais do combate à corrupção. Ambos se mostram impolutos e temos por eles veneração e algum respeito. Também eles, tal como o povo reunido em multidão à porta dos tribunais (ou lendo as manchetes, ou escutado pelas televisões em declarações que raramente têm sujeito, predicado e complemento directo mas que transportam indignação bastante), rejubilam com inquéritos, processos, testemunhas, não-arguidos que hão-de transformar-se em arguidos e carros da PJ a alta velocidade.

O outro lado é menos luminoso: muitos processos caem depois no esquecimento – mas, entretanto, já fizeram manchete, já estiveram nas primeiras páginas. Um dia, muitos destes acabarão nas colunas mais escondidas dos jornais e ninguém se lembrará deles. Gente que depois nem sequer será convocada como testemunha recebeu entretanto tratamento de bandido, viu-se denunciada na rua e ficará com a vida (e a vidinha) destruída. Mas fez-se justiça. Ou seja: houve gritaria. Em Portugal, a gritaria e a manigância jurídica são sinónimos de bom andamento da justiça. Não interessa que restem meia-dúzia de processos em tribunal – o que conta é que foram mencionados 364 futuros inquéritos que reabilitarão o bom nome da pátria. E da justiça.

No caso “desportivo”, a esquizofrenia e a paranóia são superlativas. Mais bandos de justiceiros dizem que a justiça já está feita e que nada será como dantes. Não que, até agora, haja um único julgamento. Na verdade, trata-se apenas de profissões de “fé na culpabilidade dos inimigos” (o futebol tem muito disso). Muitos desses jornalistas de opinião feita limitaram-se, durante anos, a identificar o inimigo com adjectivos e suspeitas, e a nunca dar um único passo de “investigação jornalística”, que deveria ser o seu trabalho e no qual deveriam ter orgulho. Covardia pura de quem se satisfaz a esconder-se atrás de uma coluna de jornal. Se estão tão seguros da culpabilidade dos futuros arguidos, se murmuram casos e histórias tenebrosas, porque razão não as escreveram até agora, como seria seu dever? Por medo ou por preguiça? Não me parece que qualquer dessas justificações deixe o seu nome em boas condições.

Ontem como hoje, a chamada “fome de justiça” satisfaz-se com a gritaria e o desejo de vingança. A “fome de justiça” passa por ser “fome de denúncia”. É a tradição portuguesa: denuncia aqueles de que desconfias. O resto é papel. Gente de papel, aliás, que grita bastante e – até agora – pouco mais.

in Jornal de Notícias – 30 Julho 2007

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julho 29, 2007

A Casa Fernando Pessoa estava cheia de pó

Francisco José Viegas, director da casa Fernando Pessoa, diz que quando chegou à Rua Coelho da Rocha em Fevereiro de 2006 encontrou a casa cheia de pó, sem actividades programadas. Em ano e meio de trabalho conseguiu trazer gente à Casa Fernando Pessoa, envolver as pessoas de Campo de Ourique e de Lisboa em muitas iniciativas, sempre com pouco dinheiro. E realça o facto dos funcionários da instituição terem abdicado de horas extraordinárias para manter a casa aberta à noite.


Correio da Manhã – A crise da Câmara de Lisboa afectou o trabalho da Casa Fernando Pessoa?

Francisco José Viegas – Afectou. A partir de Março, Abril, afectou. Tínhamos programado uma série de actividades, que se chamava “Lisboa, Cidade do Livro”, que iriam animar a cidade desde 22 de Abril até à abertura da Feira do Livro. Eram duzentas e tal actividades espalhadas pela cidade. As mais visíveis, como a vinda de escritores estrangeiros e três ou quatro ciclos de conferências, foram anuladas porque não havia verbas disponíveis.

- Não havia dinheiro.

- Não havia. No entanto, “Lisboa Cidade do Livro” decorreu e aconteceram cerca de cento e quarenta actividades. Com normalidade. Não foram as mais vistosas. Tínhamos previsto a vinda de dezasseis escritores estrangeiros, mas como não havia dinheiro foi tudo anulado.

- E desde a queda da Câmara em Maio até agora como tem sido a vida nesta casa?

- Mantivemos uma actividade absolutamente normal. Todas as iniciativas programadas, conferências, ciclos, debates, exposições, foram todas feitas. Sem um cêntimo. Tivemos aqui a semana de Cabo Verde só com o material da casa e o apoio da embaixada de Cabo Verde, para a vinda de escritores, para a música e exposições. Não gastámos um cêntimo. E para outras iniciativas recorremos a apoios externos, pontuais. Repare que em Maio tivemos, em média, uma iniciativa e meia por dia, o que é muito acima do normal e do que fizemos o ano passado.

- Como é que a Casa Fernando Pessoa conseguiu, no meio de uma crise financeira e política da Câmara, manter a sua actividade com um orçamento muito reduzido?

- Mesmo sendo reduzido teve um corte de 25 por cento, que foi o corte que abrangeu todos os serviços do pelouro da Cultura da Câmara.

- Esse corte foi em 2006 ou já este ano?

- Eu entrei em Fevereiro de 2006 e para 2007 houve um corte de 25 por cento em toda a direcção municipal de cultura. Mas eu não me queixo. Eu sabia ao que vinha. É muito fácil ser-se programador cultural ou ser-se gestor de bens culturais ou de instituições culturais com um orçamento grande. Aí há uma margem para se programar a nosso belo prazer, segundo uma política de gosto e de captação de público.

- E aqui, como é que ultrapassou a falta de dinheiro?

- O que nós fizemos foi, com os meios que tínhamos na casa e com o esforço empenhado do núcleo de pessoas desta instituição, trazer gente à Casa Fernando Pessoa. Foi uma estratégia definida com os responsáveis da Câmara. No primeiro ano, em 2006, era necessário reactivar a casa. A Casa Fernando Pessoa estava cheia de pó.

- Cheia de pó? A Casa Fernando Pessoa estava morta?

- Não havia actividades programadas.

- Estava morta?

- Era uma casa sem actividades programadas. Havia vários processos em curso, para iniciativas mais ou menos institucionais, colaborações, mas não havia nada programado. Logo em Fevereiro de 2006 tivemos logo várias iniciativas, apresentação de livros, debates, conferências e isso com o mínimo de custos. O objectivo nesse primeiro ano foi encher a casa. Fazer da Casa Fernando Pessoa um lugar marcante na geografia de Campo de Ourique e também na geografia da cidade.

- E com as escolas? Conseguiram dar a conhecer a casa aos jovens?

- Quando se fala em trazer novos públicos, em criar públicos, a primeira coisa que é preciso fazer é trazê-los, chamá-los. A casa tem uma biblioteca, um espólio de objectos pessoais de Fernando Pessoa, que é um incentivo às visitas tradicionais, de turistas, de escolas – temos quatro escolas por semana, as manhãs estão sempre cheias -, temos um grupo de investigadores estrangeiros, um auditório e um espaço para exposições. Tivemos que animar isto tudo. Mas sabíamos que no primeiro ano não tínhamos dinheiro para investir nas relações internacionais e em outros projectos muito importantes.

- Ficaram pela limpeza do pó?

- O que nós fizemos foi tirar o pó, limpar a casa, tirar o cheiro a vazio. E esse objectivo foi cumprido. Abrimos a casa. A programação não foi feita de dentro para fora, fomos perguntar às pessoas, como as universidades e as editoras, o que é que esta casa lhes poderia oferecer. E fizemos outra coisa. Ateliers de leitura e escrita para crianças, que repetimos este ano. Exactamente para criar novos públicos. E fizemos isto em colaboração com a Junta de Freguesia de Santo Contestável, aqui em Campo de Ourique. Este ano abrimos essa experiência a outras juntas.

- Para o ano vai repetir a essa experiência?

- Não só vamos repetir como vamos fazer uma coisa inovadora: ateliers de leitura e de escrita para adolescentes durante as férias escolares do Carnaval e da Páscoa. Uma altura em que os alunos se estão a preparar para os exames de português.

- Qual foi a adesão a esses ateliers?

- Sempre esgotados. As inscrições abriam e fechavam imediatamente. E foram feitos com pessoas da casa. Não houve recurso a meios exteriores. A Câmara apoiou-nos com os lanches para as crianças, por exemplo. E no fim desse trabalho o mais importante é o facto de cem crianças terem ficado a saber quem era Fernando Pessoa, que recitavam três, quatro, cinco quadras de cor, que escreviam versos do Pessoa e que fizeram as suas próprias quadras.

- Estou a ouvi-lo e a pensar no queixume permanente de muitos agentes culturais sobre a falta de dinheiro como justificação para tudo, principalmente para o que não se faz.

- Esse é um argumento para a conquista do poder. Quer dizer. É muito bom ter o poder de se decidir que programação é que se faz. O programador tem um poder imenso. Decide qual é a política de gosto de uma determinada instituição. O que nós fizemos foi abrir completamente a estrutura. Perguntar o que é que diversas entidades podiam fazer pela Casa Fernando Pessoa. E ao fim de três ou quatro meses tínhamos editores a propor-nos ciclos sobre isto ou aquilo. E aí vimos que era possível fazer muita coisa.

- Sem custos astronómicos e desculpas de falta de dinheiro.

- Exacto. Lembro-me de um debate aqui na casa, na presença da ministra da Cultura, sobre política cultural em que havia três, quatro participantes que se queixavam que as suas instituições ainda não tinham os dinheiros prometidos. Eu estava aqui como espectador e ouvia falar em duzentos, trezentos, quatrocentos mil euros, já tinha milhões de euros na cabeça, e disse-lhes que esse dinheiro todo correspondia ao orçamento anual, bienal da Casa Fernando Pessoa.

- Qual é o orçamento da Casa Fernando Pessoa este ano?

- Em 2007 não temos ainda ideia de qual é o orçamento. Houve um grande esforço para disciplinar os gastos na Câmara, nomeadamente na área cultural, o que foi muito bom. Mas no primeiro ano tivemos 250 mil euros, dos quais gastámos cerca de 60 mil. Só para ter uma ideia, de Abril até agora devemos ter gasto, no máximo, quatro a cinco mil euros.

- É extraordinário.

- Em programação. Não chegámos a cinco mil euros.

- Não acha que se poderia fazer muito mais com os muitos milhões que o Estado atribui à cultura a todos os níveis, seja ao nível do poder central ou do poder local?

- Sabe que há uma indústria cultural que vive necessariamente dos dinheiros do Estado.

- Mas é uma indústria muito fechada, só para alguns, que apanha tudo o que é subsídio estatal.

- É uma indústria que alimenta uma clientela.

- Clientela que vive do Estado e protesta muito.

- Eu desconfio sempre quando há protestos colectivos dos intelectuais contra o Ministério da Cultura, por exemplo. Há de certeza subsídios pelo meio. Eu desconfio sempre muito disso. Acho que é possível trabalhar de outra maneira. Não como nós fizemos, porque é esgotante.

- E teve a colaboração dos funcionários? Diz-se tão mal dos funcionários da Câmara.

- Deixe-me dar-lhe um exemplo. Se não fosse o esforço das pessoas da casa nós fecharíamos todos os dias às seis da tarde.

- Seis da tarde? Não há funcionários suficientes?

- Não havia pessoas. E como não estamos autorizados a pagar horas extraordinárias tivemos que encontrar uma solução de compromisso com as pessoas da casa, com os trabalhadores da casa a liderar.

- Quantos funcionários tem a Casa Fernando Pessoa?

- São dez pessoas, que abdicaram das horas extraordinárias para que pudéssemos ter iniciativas até às oito da noite ou até à meia-noite, com uma grande flexibilidade de horários. Eu percebi que era uma situação injusta, estar a pedir-lhes este sacrifício, mas a verdade é que sem essa disponibilidade a casa fechava às seis da tarde. Não tinha hipóteses.

- Essa foi uma boa surpresa quando aqui chegou?

- Foi. Eu sabia que a casa não tinha autonomia financeira, que havia problemas nos pagamentos a fornecedores, até porque as nossas verbas são insignificantes no universo da Câmara e por isso mesmo pensámos revitalizar a casa no primeiro ano e no segundo, que era este, estabelecer pontes para iniciativas internacionais. Fizemos isso com o Instituto Espanhol, fizemos isso em Buenos Aires, fizemos isso no Brasil.

- O Brasil adora Fernando Pessoa.

- Com o então prefeito Serra de São Paulo chegou a haver uma conversa muito informal sobre a possibilidade de se criar uma Casa Fernando Pessoa na cidade. Pessoa é mais lido no Brasil do que em Portugal.

- Custava muito dinheiro?

- Era um investimento mínimo porque quer o governo de São Paulo como a prefeitura estariam disponíveis para fazer isso.

- O projecto está a andar ou não?

- Não. Era impossível, Tínhamos necessidades elementares aqui na casa. E projectos, como a recuperação do jardim, do restaurante e da cafetaria, que traria muito mais público se estivessem abertos. As obras arrancariam até final deste ano, temos projectos executados, não são obras faraónicas e seria este ano também que lançaríamos uma obra fundamental, que era o anuário de Pessoa.

- Tudo com pouco dinheiro?

- Foi outra surpresa para mim. Na Casa Fernando Pessoa pode fazer-se muito com pouco dinheiro, menos do que eu próprio supunha.

- Falou da grande disponibilidade dos funcionários. Como é que isso foi possível aqui e não é possível na globalidade da Câmara?

- É uma questão de abertura às pessoas.

- De abertura?

- Da maneira como se tratam as pessoas. Da maneira como se responsabilizam as pessoas. Todos temos a ideia do monstro do funcionalismo público. Mas a verdade é que as pessoas são mal tratadas. Não são responsabilizadas. Não são chamadas a fazer propostas. Nós fazemos reuniões periódicas com todos. Fizemos uma festa no aniversário da casa com duas mil pessoas e foi tudo decidido por todos. Ao mínimo pormenor. A programação, a convocação dos meios, tudo.

- E tem o apoio de outros serviços da Câmara?

- A Câmara tem uma série de meios ao nosso dispor. Muito do que íamos fazer dependia em grande parte da colaboração da imprensa municipal. Independentemente do que podemos pensar sobre o peso, a falta de mobilidade desses departamentos, desde que as pessoas sejam motivadas é possível fazer muita coisa. E nós tivemos uma boa colaboração da imprensa municipal porque viam que nós estávamos interessados, que nos preocupávamos, que íamos lá. E tivemos sempre tudo pronto a horas. O que se faz aqui é possível fazer em outros departamentos. As pessoas estão sedentas de um pouco de organização.

- Só organização?

- As pessoas também estão a precisar de serem convocadas. De serem chamadas a participar nas iniciativas. Como aqui, em que todos fazemos de tudo um pouco, de uma forma de alguma maneira autogestionária.

- Essa disponibilidade dos funcionários surpreendeu-o?

- Foi uma surpresa para mim.

- Está a gostar desta experiência?

- Este ano e meio foi muito bom. Estou a gostar. E estou a gostar também pelo facto das pessoas de Campo de Ourique terem descoberto esta casa e gostam de ficar, de assistir e de ficar por aqui até às duas da manhã. Veja a festa do lançamento do livro de Agualusa. Estiveram aqui 500 pessoas, por todos os espaços, até às duas da manhã. Depois desta fase, de termos conquistado o público, gostaríamos de avançar para os projectos que já lhe referi, nomeadamente na área internacional.

- Com o Brasil na primeira linha.

- As relações internacionais. Temos hipóteses de assinar vários protocolos com universidades brasileiras. Felizmente temos um excelente embaixador, que é o Francisco Seixas da Costa, que mobilizou tudo e todos. Além disso temos um projecto de um kit móvel de uma exposição desenhado pelo Henrique Cayate em espanhol, inglês e português que é uma caixa e que pode ir pela mala diplomática para todo o mundo. Temos já pedidos da Venezuela, Argentina, Brasil, Marrocos, Angola, Moçambique, Uruguai, Estados Unidos. Tudo isto com meios muito reduzidos.

- Está a falar de quanto dinheiro?

- Nós fazemos isto por dez mil euros.

- Quer continuar aqui na Casa?

- Naturalmente que quando entrar a nova equipa da Câmara direi o que é que se está a fazer aqui na casa e fico à espera do que decidirem. Tenho um contrato anual, que é renovado todos os anos, que acaba em Fevereiro de 2008, mas aceito qualquer decisão. A minha vida nunca dependeu destes cargos.

- Mas pessoalmente gostaria de ficar.

- Eu fiquei fascinado com o projecto. E acho que é possível fazer muito mais coisas, as bases estão lançadas. E a base é a Casa Fernando Pessoa. Funciona. Tem gente. Tem ruído. Sabe que a nossa preocupação era a reacção dos vizinhos pelo facto de estarmos aqui até à uma da manhã. Com música, barulho, etc. E uma vez fui falar com um dos vizinhos e avisei-o que íamos ter uma iniciativa que deveria acabar tarde. E sabe qual foi a resposta dele? Finalmente há vida nessa casa.

- Há vida na Casa Fernando Pessoa. Mas Pessoa estava muito esquecido nesta casa?

- Temos de perceber a fortuna, a riqueza de termos uma coisa chamada Fernando Pessoa. Não serve só como um emblema. Serve como um motivo para uma coisa muito mais ampla. Um dos nossos projectos, que ainda não lançámos, é a “Lisboa, cidade Pessoa”. Uma iniciativa internacional.

- Pessoa é uma marca com enorme valor.

- Pessoa é uma marca fundamental. E se relacionarmos isso com Lisboa temos uma campanha notável. Não é preciso inventar nada. Temos tudo feito. Até temos a sorte de Pessoa rimar com Lisboa. E às vezes até digo a brincar que um dia vamos propor à Câmara que substitua os corvos por Pessoa.

- O escritor Francisco José Viegas está a escrever um novo romance, apesar do trabalho nesta casa?

- Vai sair um livro, provavelmente no fim da próxima Primavera, a continuação das aventuras de Jaime Ramos, um novo policial que em princípio se chamará “O Mar em Casablanca”. Estou a escrevê-lo de madrugada. Das quatro da manhã até as dez. Depois venho para aqui.

UM CIGARRO NA CONVERSA

Em primeiro lugar o indispensável registo de interesses. O jornalista do CM é amigo do jornalista e escritor Francisco José Viegas. Trabalhou com ele num semanário de curta duração, ‘O Liberal’, e esteve no mesmo grupo editorial durante alguns anos. Pelo caminho aconteceram muitos encontros. À volta da mesa, de uns copos, de boas conversas.

O director da Casa Fernando Pessoa gosta da vida. A cultura passa pela gastronomia, pelas viagens, pelos poemas, pelos romances e por essa figura notável do inspector Jaime Ramos que o acompanha em vários policiais. Mas também passa por umas cigarrilhas, uns charutos ou cigarros. Sempre. Ou não fosse Francisco José Viegas um admirador de Fernando Pessoa.

Na Casa, como lhe chama, há espaços para fumadores e não fumadores. Mas na entrevista não houve lugar para o politicamente correcto muito estúpido dos nossos dias. As fotografias revelam isso mesmo. A verdade de uma entrevista que acabou por ser uma boa conversa.

in Jornal Correio da Manhã – 29 Julho 2007

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julho 28, 2007

O mundo não está perdido


O Pereira é um emblema de Cascais que nunca deixa má impressão. Queremos um monumental cozido à portuguesa? É lá.

Costumo dizer, em ocasiões que talvez não venham a propósito, que o mundo não está per­dido. A última vez ocorreu quando, depois de um final de tarde cheio de trabalho, o vulgar stresse de Verão me empurrou para Cascais. Gosto da vila, e gosto dela sobretudo quando me parece pequena e maneirinha, com as ruas limpas. Chamem-me snobe, que eu justifico: Cascais é isto. O mundo pode alterar-se, mas Cascais não deveria mudar.

Devia recuar no tempo, até, se possível, ao tempo em que o Sr. D. Carlos passeava ao largo da baía, de pincel na mão, reto­cando as aguarelas. O leitor pensa que eu estou, naturalmente, a mangar - mas é a pura verdade. A Cascais do futuro não me interessa grande coisa; é como pensar em Monsanto, "a aldeia mais portuguesa de Portugal", e rasgá-la com ave­nidas e povoá-la com restaurantes tailandeses. Cascais é do tempo da monarquia, devia ter a fama de usar espartilho e de ler romances de Carlos Malheiro Dias ou Joaquim Paço d'Arcos ao som de pequenas orquestras de câmara estrategicamente poisadas nos seus becos - mesmo que, nos corredores das suas casas, fosse atrevida, moderna e cheia de vícios.

O que tem – pergunta o leitor, siderado – um cronista de restaurante de subir um degrau para gastar opiniões que devia guardar para si. Ele que fale do refogado, das panelas, das loiças e dos escanções, reservando o romance para o roman­ce, a crónica de costumes para as gavetas – e que diga o que comeu. Não posso. Vejo Cascais e parece-me, nessas circunstâncias, que devia vestir a sobrecasaca e o chapéu dos nossos antepassados, e expulsar à bengalada as traquinices arquitectónicas e a mania de que Cascais tem de ser mais "popular".

A coisa mais "popular" de que me apetece falar é do Pereira. O Pereira foi um emblema da vila, uma medalha de honra visível no seu peitilho. Entra-se no Pereira depois de subir por uma das ruas que vêm do Largo Visconde da Luz, e não há que enganar. Nada de decoração, nada de coi­sas em género superlativo – mesas são mesas, comida é comida, atendimento é atendimento.

Se estamos cansados de "cozinha de fusão", entremos no universo do arroz de pato (não se trata de pato desfiado e escondido no meio de arroz submerso no forno - mas de pedaços de pato), dos linguadinhos fritos com açorda de alho, com arroz de tomate ou com arroz malandro de grelos – que também pode acom­panhar as quase desaparecidas pescadinhas de rabo na boca. Este é o lar dos pezinhos de coentrada, da mão de vaca com grão, da cal­deirada à fragateiro, das feijoadas (de chocos ou à transmontana), do cabrito assado à padeiro, da dobrada com feijão branco (rosadinha, alaranjada, cremosa), do arroz de cabidela, das iscas à portuguesa, dos filetes de pescada ou de cherne com açordinha, do cação de coen­trada, do pernil de porco no forno (com tomate) servido com arroz de grelos. Pouca metafísica, muita simplicidade e nada de enganar o povo. Além disto, há uns peixes para grelhar e que têm a vantagem de estar expostos, inteirinhos, logo à entrada. Casa honesta, portanto. Até as batatas fritas, finíssimas, estaladiças, vêm quentes para a mesa e nunca sucumbirão à tentação de ser pré-congeladas – como verdadeiros são os rissolinhos e croquetes que vêm para a mesa logo a abrir, mal nos sentamos, ainda quentes.

Desta vez, o pernil estava suculento e cremoso, avançando por entre as mesas na companhia das pescadinhas de rabo-na-boca, ficando abraçado, ainda, a um cherne, que partiram quando se aproximaram um leite-creme queimado e uma encharcada. Eram horas de retirar e de descer a rua, misturando-nos com os passeantes de Cascais. O Pereira nunca deixa má impressão porque só contamos com ele e não com outro em seu lugar. Queremos jaquinzinhos e ou petingas com açorda? É lá. Queremos um cozido à portuguesa monumental, à antiga? É lá. Não nos engana, o Pereira. O mundo ainda não está totalmente perdido.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 36
Vinhos brancos: 12
Espumantes & Champanhes: 2
Aguardentes portuguesas: 8
Colheitas tardias e moscatéis: 1
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 10

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente difícil durante o dia
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: ao fim-de-semana
Preço médio: 15 Euros

O PEREIRA
Rua da Bela Vista, 92
2750-304 Cascais
1600-781 Lisboa
Encerra às quintas-feiras

in Revista Notícias Sábado - 28 Julho 2007

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julho 23, 2007

O PSD enquanto sala-de-espera

“Alguém acredita que é possível no mês de Agosto reflectir, apresentar e discutir quaisquer ideias para o partido e o país?” A frase é de José Pedro Aguiar Branco, ex-provável candidato a líder do PSD no amabilíssimo processo eleitoral que o partido promove em Setembro. Aguiar Branco tem razão no que diz – mas, para sermos mais generosos, podemos alargar o sentido da própria frase e alterá-la sem mencionar o papel que Agosto poderia ter na matéria: “Alguém acredita que é possível reflectir, apresentar e discutir quaisquer ideias para o partido e o país?” Não é preciso estar lá Agosto – para nada.

Ora, a gente vê o dr. Marques Mendes e tem dúvidas – não sobre o homem em si, a sua intimidade (digamos), a sua tenacidade, a sua capacidade de ter “ideias para o partido”. Mas há dúvidas. E a culpa, vamos e venhamos, é de Marques Mendes. Isto não faz dele um personagem antipático ou menosprezável; o PSD tem para com Marques Mendes uma dívida incalculável. Mas trata-se do partido. O partido que resolva essa dívida.

É verdade que Marques Mendes foi o primeiro a avançar para a luta contra um Santana Lopes engripado e aniquilado pela derrota nas eleições de Fevereiro de 2005; foi penoso, na época, ver o PSD dominado pela “guerra do empurra”, esperando para ver quem seria o líder a trucidar durante a temporada de maioria absoluta do PS.

O PSD está cheio de senadores, valha a verdade, e de especialistas em ter “ideias para o partido” (que geralmente se reduzem ao pagamento de quotas, à contabilidade das concelhias, à troca de favores, às prioridades da “jotas” ou do pessoal que esteve “com Cavaco” – na altura em que era fácil estar com Cavaco); mas o papel dos “senadores” é especial. Alguns deles desertaram; ou se passaram para “o inimigo” ou lhe fazem “favores”, ou então dedicaram-se com mais proveito à “privada”, depois de terem exercido no “público” durante os anos em que havia lugar para todos. O poder deixou de lhes interessar pela devastadora razão de que já não o têm. Eles aparecem, a espaços; mas nunca têm disponibilidade, ou nunca estão reunidas “as condições” ideais. No PSD, o papel dos “senadores” é esperar. Sejamos velhacos: esperar, para entrar; e esperar, para sair. Para muitos deles, o PSD é uma sala-de-espera. Até aparecer “qualquer coisa”.

É evidente que os partidos necessitam de exercer o poder e de o ocupar. Mais. Para existir, precisam de querer ambas as coisas. É isto que falta ao PSD: ter ideias para exercer o poder. Por isso, a gente olha para Marques Mendes e tem dúvidas. Nota-se-lhe a determinação, nota-se-lhe o jeito para manobrar, decidir, escolher. Mas, bem vistas as coisas, é o líder de uma sala-de-espera.

Muitos dos seus frequentadores esperam uma oportunidade, outros esperam que “a coisa” não quebre (arrastando-se pela legislatura, penosamente), e uma larga maioria espera outro líder, enquanto outros, diligentes funcionários, arregimentam concelhias, distritais e quotas em atraso. Disso se tem feito grande parte da vida do PSD nos últimos tempos. Disso e da “política imediata”, com Marques Mendes usando os rumores que a imprensa faz circular, que os blogues avançaram há muito ou que outros militantes, de menor peso, arriscam transformar em temas sérios.

Transformar a vida do PSD numa luta entre Marques Mendes e Luís Filipe Meneses ou um alegado “gabinete barrosista” (quem?), é uma novela de família, um folhetim de costumes. Mas não dá ideia de mobilização, nem de debate, nem de vontade. Muitos têm receio da expressão “refundação da direita” (um tema do PP, parece); é justo. O PSD não é o monstro da direita. Mas é um corpo adormecido em busca de refundação, de programa e de gente nova. Os senadores acham isso um exagero. E Agosto, como se sabe, está fora de hipótese.

in Jornal de Notícias – 23 Julho 2007

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julho 21, 2007

Suculento, apelativo, familiar


A Petisqueira do Gould, em Paço de Arcos, conta com duas salas acolhedoras e um cardápio difícil de resistir.

Paço de Arcos corre o risco de se tornar, em breve, um dos lugares mais aprazíveis para jantar nestes finais de tarde de Verão. Já vos falei da grandeza crepuscular dos lugares da “Linha” e escuso de mentir como um cronista imparcial. Sou parcial e o leitor sabe-o.

Lembro a vila (é um título de que dispõe desde 1926, seis meses depois do golpe de Maio) de Paço de Arcos de há alguns anos, década de setenta, década de oitenta, com a sua cosmopolita e palradora esplanada Bonvalot, hoje Casa dos Cacetes (e, felizmente, não menos palradora a meio da tarde), as suas livrarias para encontrar achados de ocasião, lojas de rua e de boa vizinhança, tabacarias amigáveis, pastéis de nata da Oceania (um primor ainda hoje), noites de província no Jardim junto da marginal, coisas de romance, coisas de Verão. O que é mais extraordinário, no actual estado de coisas, é que Paço de Arcos, depois de um período de transição e relativa desordem novo-rica, recuperou a sua traça de vila de vizinhos, acrescentada de alguns restaurantes muito convenientes e de um empedrado simpático e limpinho. Ainda bem para a história do lugar, ainda bem para todos nós, visitantes de ocasião e peregrinos com estômago a pedir conforto.

A Petisqueira do Gould está instalada no espaço que me lembro ser o de uma antiga ourivesaria na centralíssima Rua Costa Pinto (para quem vem de Lisboa, é a primeira entrada na marginal, no sentido de Cascais); é uma rua cheia de perfumes e de cozinhas muito apresentáveis. Duas salinhas familiares, com um total de vinte e quatro lugares: é isto a Petisqueira do Gould, se não contarmos com um cardápio que tem tanto de suculento como de apelativo. A mim, confesso, espantou-me à entrada uma taça de cerejas coradas, rosadas, bicais, rijas, luminosas, quase incandescentes, já sem o pezinho – reservei-as mentalmente para a sobremesa. Mas, junto delas, repousavam três aventuras prometidas: um bolo de chocolate, brigadeiro; um outro confortável bolo de chocolate que revelaria – depois – interiores de mousse, aveludados, sedosos, humedecidos; e uma tarte de maracujá tremelicante, com as sementinhas do “fruto da paixão” como que diluídas sob uma capa de doçura atrevida. Se eu começo pela sobremesa, imagine o leitor o meu estado.

Na mesa, fomos recebidos por um “kir”. Abençoei mentalmente aquele digníssimo ‘maire’ de Dijon no início do século XX, Monsieur Felix Kir, o divulgador – mais do que criador – da bebida: um fio de “crème de cassis” numa flute de champanhe ou de vinho branco. Bom começo, juntamente com as torradinhas (com manteiga de alho e ervas), a concha de santola e umas fatias de um lombo de Jabugo como já não comia há muito. Mudaram-se as bebidas para as escolhas da refeição propriamente dita, de entre um cardápio onde me ficou no olho a arrozada de grelos com línguas de bacalhau (fica para a próxima!) ou os filetes de peixe-galo com arroz mariscado, um dos emblemas da casa. De entre os peixes para grelhar e o arroz malandrinho com caroupa, havia promessas de lampreia na sua época, servida em arroz, à bordalesa, ou pela sopa rica de cherne com marisco, ou pela perdiz em molho vilão. Conquistou-me o perfume da caldeirada de cabrito, mas comecei pelos panadinhos de polvo com arroz de tomate, sempre piscando o olho – rútilo, como na devassidão queirosiana – à alheira de caça, ao rosbife, às costeletinhas de cordeiro ou ao cabrito estonado. A posta “à mirandesa” do Gould tem um fio amostardado que se pode dispensar, mas é finíssima de sabor, com uns grelos salteados magníficos. Excelente o entrecôte frito à portuguesa, com molho perfeito – e, curiosidade para apreciadores: há muito, muito tempo que não picava esptada de lulas tão perfeitinhas (em tamanho, adolescentes, frescas, devassas), ligeiramente tostadas, pingando, com camarões atrevidos pelo meio.

Vieram, finalmente, as sobremesas que eu tinha cobiçado desde o princípio. As cerejas, fantásticas. O bolo de chocolate – mousse perfeita, um convite à devassidão. A noite tinha caído, profundíssima e com um vento forte sobre o mar, e o jantar pedia passeio pela vila fora. Há coisas melhores, por certo, mas não tão boas.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 60
Vinhos brancos: 26
Espumantes & Champanhes: 4
Aguardentes portuguesas: 12
Colheitas tardias & moscatéis: 2
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 10

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 22 euros

Petisqueira do Gould
Rua Costa Pinto, 93
2780-582 Paço de Arcos
Tel: 21 4433376
Encerra aos sábados ao almoço e domingos.

in Revista Notícias Sábado – 21 Julho 2007

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julho 16, 2007

A maravilhosa vida das paredes

A vida das cidades não é fácil. Estão sujas. Nunca se sabe se elas estão sujas porque são sujas ou porque as pessoas as sujam. Mas elas estão sujas. Elas e uma parte do país.

Por exemplo, os “grafitis”. Os meninos acham que os “grafitis” são uma “arte urbana” e por isso praticam-na livre e alegremente em tudo o que é parede pública e privada, seja em granito ou mármore, em cimento ou gesso. Ninguém pode parar ou criticar essa “arte urbana” que se transformou em flagelo, porque isso traumatizaria os meninos, tal como perguntar-lhes pelas notas, querer saber que livros leram, o que acham de qualquer coisa que ocupe mais de cinco palavras numa só frase.

Periodicamente, alguém vem falar da “arte urbana”, aqueles grafitis que o leitor colecciona visualmente nas paredes, ao longo das ruas; há teorias para tudo, inclusive para defender o direito de os meninos sujarem, a jacto de spray, as paredes das nossas cidades. Não sei se, a si, o indignam. A mim indignam. Outro dia mostraram-me quanto gasta a Câmara de Lisboa, por ano, para limpar os “grafitis” que assinalam, pelas ruas, praças e avenidas, a enormíssima vitalidade da rapaziada. Euros e euros. Milhões de euros distribuídos por muros, monumentos, fachadas, construções recentes ou antigas.

Durante uma semana investiguei a criatividade dos meninos. Fiz algum esforço para ler algumas das “tags” que sujavam mármores de edifícios públicos, granitos de fachadas privadas, muros em ruínas ou acabados de pintar. Também me pus no lugar deles mas depressa percebi que não podia estar no lugar deles. Fui sempre um conservador nessa área: acredito que são virtudes cívicas não sujar o espaço público, não escrever obscenidades nas paredes, ter vergonha de mostrar o meu país todo sujo e gatafunhado, não deitar lixo para o chão. As frases às vezes são apenas nomes, grunhidos, reprodução de sons, o uso de um certo tipo de grafismo (que já era piroso nos anos setenta). Um dos meus filhos, adolescente, tentou explicar-me porque razão aquilo era um “acto de rebeldia” apesar de desenharem gatafunhos de “spray” em paredes que não eram culpadas da rebeldia da rapaziada. No lugar onde trabalho, em Campo de Ourique (a Casa Fernando Pessoa), um desses rebeldes decidiu há cerca um ano pintar uma sigla que me abstenho de reproduzir – sei o que nos custou mandar reparar a parede. Literalmente, tratou-se de “reparação”: foi preciso raspar, picar, reconstruir e, depois, pintar por cima. A rebeldia custou-nos caro.

A verdade é que a actividade “rebelde” do “grafiti” é pirosa e velhaca, atentando contra os direitos cívicos: o direito à paisagem, o direito à propriedade, o direito ao espaço. Parece que há uma legislação sobre o assunto, mas periodicamente – sempre periodicamente – há uma revista ou um jornal que publica uma reportagem sobre a “fabulosa criatividade” dos meninos, esses bandos de rapazes que circulam com as mochilas cheias de sprays destinados a “deixar uma mensagem” nas nossas paredes, no centro das cidades. A linguagem deles, entrevistados por jornalistas fascinados pelos “grafitis” (enquanto um bando desses não lhe pinta a casa com bonecada) também é velhaca e despropositada. E obtusa.

Às vezes dizem-me que estou a ficar reaccionário. Explico, pacientemente, que apenas defendo a minha liberdade, os meus direitos, a minha opinião; não quero escrevê-la a spray nas paredes das cidades. Quando me dizem que os meninos não podem ser traumatizados ao proibir-se-lhes a actividade, apenas pergunto se alguém me pediu autorização para abdicar do meu direito a uma parede limpa, a uma cidade limpa.

in Jornal de Notícias – 16 Julho 2007

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julho 14, 2007

À antiga portuguesa


Cada vista à Travessa do Rio serve para comer bem e para confirmar que tudo continua no seu lugar. É uma satisfação para o estômago.


Já houve tempos em que A Travessa de Benfica, como lhe chamávamos para o distinguir do A Travessa que agora está no Convento das Bernardas (ou “as Belgas”), era um restaurante para eleitos. Os eleitos eram, simplesmente, aqueles que sabiam da sua existência, escondido num beco que dava (e dá) para a Estrada de Benfica, quase no cruzamento entre a Av. do Uruguai e a Gomes Pereira, duas salinhas pequenas, atendimento quase familiar onde o chefe António e o comandante Vítor recebiam com conhecimento de causa.

A que chamo eu “conhecimento de causa”? Boa comida, antes de mais. Aquele charme da “cozinha essencialmente portuguesa” servida em restaurantes que não conhecem pelo nome nem a “cozinha de fusão” (mas a praticariam se fosse preciso) nem o “serviço amaneirado” (que não saberiam praticar). É coisa de homens e não me acusem de preconceito: uma vastíssima colecção de mariscos ornamenta as suas vitrines, bem como uma amostra generosa de travessas com petiscos tão inevitáveis como saborosos – entre os quais se contam uns dos melhores carapauzinhos de escabeche de Lisboa, bons para abrir o apetite ou (aprenda) para comer ao fim da tarde, com um vinho branco.

As salinhas são, portanto, pequenas. Não são o ideal para momentos conspirativos na política ou na transacção bolsista; mas especuladores da política e da bolsa vão lá frequentemente para comer, o que lhes melhora ligeiramente o estatuto. Famílias dos bairros à volta, empresários das redondezas, editores (com apetite), imprensa (mas incógnita), gente de estômago avisado – eis a sua frequência “transversal”, como agora dizem os sociólogos para designar o “de tudo um pouco” que nós usamos coloquialmente. Queijo de Azeitão escolhido a dedo, enchidos recolhidos de bons fornecedores, excelentes azeitonas (sim, as azeitonas são um requisito), pão de bom forno, saladinhas que abrem o apetite mas não o matam (ovas, polvo, bacalhau, orelha) – tudo para entrar no combate decisivo. Ed Motta, o cantor brasileiro (e grande enófilo, grande fumador, grande – enfim), elege-o como um dos seus pontos de paragem obrigatória em Portugal e, acreditem, ele não tem apenas uma grande voz como um grande e admirável apetite.

O combate começa com filetes de peixe-galo com arroz de marisco (a lista de peixes grelhados é sempre muito boa, com garoupa, linguado, cherne, robalo ou dourada), ou com lulinhas fritas com molho tártaro, ou com a estival saladinha russa de peixe, ou com o polvo ou o bacalhau à lagareiro, o arroz de tamboril, um magnífico peixe no forno (se for dia, recomendo especialmente), ou bacalhau à Narcisa (o nome não é este). Isto, antes de passarmos às carnes que ficaram na minha memória. Por exemplo: o cabrito no forno, que não se pode dispensar de provar, suculento, com batatinhas douradas e arroz de miúdos (eu dispenso, mas é de lei). A feijoada à transmontana, que é boa. E dois pratos históricos da casa: o arroz de pato, em havendo, é muito bom; o cozido à portuguesa é puramente sinfónico, colossal, com luminescências barrocas, eufórico, exige compenetração e muita companhia amiga – uma vez que as doses são bem apetrechadas. Se a isto tudo, que não é pouco e que varia bastante com os dias da semana (acrescentado de costeletinhas de borrego na grelha, de picanhas aceitáveis, de um ‘chateaubriand’ digno de pirotecnia), acrescentarmos uma encharcada fulminante e um pudim de Abade de Priscos cremoso e com a dose saudável de colesterol puro, a distinção é bem merecida.

Mas o problema não é esse. É a carta de vinhos, que é muito boa e onde há raridades de nota (se bem que, sem preconceitos, o mestre Vítor não se importa de me servir uma cerveja refrescante, uma ‘Bud’ gelada em copo apropriado), servida condignamente. É, ainda, uma carta de digestivos mais do que notável, onde há cerca de duas dúzias de uísques de boa nota, além dos vulgares – distinção para os maltes acumulados. Quando se podia fumar sem sentimentos de culpa, o Travessa do Rio era outro dos lugares de eleição, com um bom humidificador cheio de bons charutos com bitolas adequadas a cada apetite. De cada vez que visito o lugar, murmuro: continua tudo no seu lugar. É uma satisfação.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 96
Vinhos brancos: 30
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias & moscatéis: 5
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 34

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 20 euros

A Travessa do Rio
Travessa do Rio, 61
500-551 Lisboa
Telef: 21.716.05.43

in Revista Notícias Sábado – 14 Julho 2007

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julho 09, 2007

Sete maravilhas e muito mais

Proponho ao leitor que relembre a lista das “novas sete maravilhas do mundo” apresentadas anteontem em Lisboa: o Taj Mahal (sem dúvida), Machu Picchu (o meu voto), Cristo Redentor (muito duvidoso), Coliseu de Roma (claro), a Grande Muralha da China (sim), Petra (justíssimo) e Tchichén Itzá (sim senhor). Concordo com a lista, mas não é a minha (retiraria o Cristo Redentor e colocaria a Alhambra, ou as pirâmides de Ghizé ou as estátuas da Ilha da Páscoa, por exemplo). Não foi uma declaração de sábios, de “experts” ou de historiadores – em vez do conhecimento e da ponderação, o que contou foi o acesso à internet ou a rede de telefone. É um critério democrático.

Como foi recordado, das antigas sete maravilhas perdemos seis; guerras, erosão, catástrofes naturais ou acidentes mostraram como o nosso património pode perecer e a nossa memória ficar mais pobre. Além dessas, no entanto, muitas desapareceram por desleixo, por incúria ou por ressentimento. O ressentimento foi a pior das razões (por razões religiosas foram destruídos templos, simples monumentos ou cidades magníficas) e o último dos casos foi a destruição dos budas de Bamyian pela dinamite dos talibãs. Esta eleição permite que se visite e se prolongue a vida destes lugares.

Mas a noite de anteontem serviu também para eleger como “maravilhas portuguesas” um conjunto de monumentos que faz parte da nossa “memória escolar”: Mosteiro de Alcobaça, Mosteiro dos Jerónimos, Palácio da Pena, Mosteiro da Batalha, Castelo de Óbidos, Torre de Belém e Castelo de Guimarães. Cada um desses lugares está ligada a mitos ou factos da nossa história. Há quem não atribua importância ao facto e o situe no campo dos acontecimentos televisivos ou do puro marketing, uma espécie de divisão secundária do entretenimento pela televisão.

Eu não concordo. Sou pelos concursos e pelas listas. Vejo em “eleições” deste tipo virtudes banais e importantes que ocupam o espaço da incúria e do esquecimento. Provavelmente, a escolha pública das “sete maravilhas de Portugal” (onde está a Torre de Belém, a que não acho graça por aí além) chamou a atenção para um género de fortuna portuguesa que seria importante não esquecer. O leitor, habituado à minha rezinguice semanal nesta coluna, há-de estranhar. Mas não estranhe. O meu único argumento contra as “sete maravilhas de Portugal” é que elas deviam ser, não sete, mas cinquenta ou cem. Isso ajudaria a que mais alguns monumentos nacionais fossem visitados, cuidados ou subtraídos ao desleixo que é natural destruir aquilo de que não se fala.

Também acho que devíamos eleger (sim, pela inernet, por ‘sms’ ou por carta) os cem livros essenciais da nossa cultura, as cinquenta canções da nossa história, os cinquenta mais belos fragmentos paisagísticos do país, os vinte filmes portugueses de sempre, os cinquenta pratos fundamentais da nossa gastronomia – tal como se votou nos cem portugueses. Sou pelas listas e pelas nomeações. Elas ajudam a que se fale das coisas que de outro modo se hão-de perder no meio da bazófia do dia-a-dia e da mediocridade da nossa cultura televisiva.

O nosso passado é o essencial da nossa fortuna cultural, do nosso destino. Trata-se de uma memória que não falha. Somos isso, apesar de sermos o que somos. Nada nos prolongará tanto como a preservação dessa memória das coisas que encontrámos feitas e que soubemos usar, transformar ou proteger. O resto (a conversa sobre “a nossa identidade”, sobre o “destino português” e outras larachas) é uma minudência. Seria bom que descobríssemos que não se pode conquistar um lugar no futuro (o que é natural querermos, porque não somos vegetais) se não soubermos prolongar a vida das coisas que nos definem e nos melhoraram a vida – um livro, uma paisagem, uma música, uma comida, um lugar. Sermos portugueses de alguma maneira, portanto.

in Jornal de Notícias – 9 de Julho 2007

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julho 07, 2007

Evocações à mesa


Uma boa surpresa em Telheiras: o Jacinto, além de bons vinhos a copo, tem apetite. Como se comprova indo lá.

O que é o apetite? O que é o apetite providencial? O que é a satisfação depois de uma refeição? Detenham-se, ó disciplinadores do dicionário, que o assunto não tem a ver convosco, nem – às vezes – comigo. Trata-se de uma respiração, de uma venta­nia, de uma sensação vadia que passa pela mesa e nos acompanha pelo dia fora, se se trata de um almoço a uma destas mesas providenciais. Escrevo esta crónica ao som de Gardel e deve ser por isso: cala-te, coração, não quero sofrer, não repitas nunca esse caminho.

Uma pessoa senta-se à mesa mas isso não basta. Tem a ver com a maneira como nos tratam em pleno anonimato, com o olhar amistoso que o criado deixa cair sobre o lugar onde vai pousar o prato já servido e engalanado, com o tom de suavíssima melancolia com que o chefe se despede de cada tantinho de comida - misturado à alegria que nele des­cobrimos, quando descobrimos que temos ali homem ou mulher à altura do nosso apetite.

Manuel Vázquez Montalbán, num dos seus livros mais "gastronómicos", uma pequena novela intitu­lada 'Asesinato en Prado del Rey', diz que devemos abster-nos de fumar um charuto diante de quem odeia o seu fumo doce, o seu calor intenso, a sua memória tropical. Assim deve ser com a comida que nos chega à mesa, que vem profundamente prejudicada se é servida por alguém que a detesta ou que, no limite, não tem apetite. Nessa altura, enchamo-nos de desfastio, penduremos a caneta, esqueçamos. Já me aconteceu. Já aconteceu ao leitor, certamente, e à leitora ainda mais, sobretudo se é uma cozinheira de truz.

A minha primeira experiência no Jacinto, em Telheiras (Telheiras Velha, como faço questão de dizer, na vetusta Av. Ventura Terra, um nome - e um endereço, já agora - que se deve recordar), foi composta de um pratinho de farinheira e outro de cogumelos, seguindo-se um tanto de jaquinzinhos naquele tamanho "no limite" para a fiscalização das actividades hoteleiras.

Às vezes, achamos que a comida, além das operações de alquimia, química e aritmética simples, exige uma certa ponderação poética. Havia disso. Tudo na temperatura certa, que é um valor a reter. Estava um dia nublado, desses que invadem Junho para nos lembrar a melancolia da Primavera passada. Havia também pimentinhos, havia pão, e havia uma lista de vinhos muito bem escolhidos, à razão de cento e vinte títulos na cate­goria de tintos, mais trinta na de brancos, além de sugestões caso a caso ao ouvido do comensal. Com esta novidade: todos os vinhos do cardápio estão disponíveis na modalidade "a copo", o que repre­senta um notável passo civilizacional. O preço? Basta calcular uma divisão por cinco em relação ao valor da garrafa. É um copo bem medido, e vale a pena em certas ocasiões.

De resto, enquanto a tarde avançava, com uma chuvinha miúda, os filetes de cherne com arroz de grelos despediam-se da travessa, juntamente com uma boa açorda de bacalhau com espargos verdes. E por que razão escrevo eu apenas "boa"? Para que não duvidem nem julguem que exagero; na verdade, estava mesmo muito boa. O bacalhau à Narcisa, minhotinho, completa a lista de escolhas de peixe do dia, juntamente com o polvo cozido com todos, o bife de atum frito com alho, sonhos de garoupa com açorda de piso de poejo, e ainda - vindas da grelha - garoupa, dourada e robalinho. Nas carnes, o cozido de grão manda às quartas-feiras, de ascen­dência alentejana, enquanto outros esperam pelo empadão de javali, pelo cabritinho assado à padeiro (muito bom, com batatinhas farinhentas, de forno), pelo arroz de cabidela, pelas plumas de porco preto, pela picanha grelhada ou pelo bife argentino (uma modalidade de "bife de chorizo"), além de uma alheira de caça (a que não devia ter sido tirada a "pele", mas enfim, é moda lisboeta andar a fritar alheiras em vez de as meter no forno ou passar pelas brasas...).

Não sei se este Jacinto é o de 'A Cidade e as Serras', mas que tem apetite, isso é uma evidência. Há restaurantes que se revelam uma surpresa muito agradável. Aconteceu comigo, acontece com toda a gente. Mas, no meu caso, estou convencido. Excelentes vinhos, além do mais.

PS - Querem que eu fale das sobremesas? Não tive tempo, mas o leitor que imagine.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 120
Vinhos brancos: 30
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 20
Colheitas tardias e moscatéis: 6
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 30

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 22 Euros

JACINTO
Av. Ventura Terra, 2
1600-781 Lisboa
Tel: 217 591 728
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 7 de Julho 2007

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julho 02, 2007

Contra o riso e a indisciplina

As autoridades públicas deviam saber que o mais perigoso para a sua honorabilidade não é o respeitinho ou a falta dele – mas o riso. Podemos invocar séculos de “respeitinho” pelas autoridades, que isso não nos eleva no sentido de ter mais respeito por elas.

Os casos de funcionários públicos demitidos, exonerados ou – utilizemos a expressão – afastados por “falta de respeitinho” não alegram a imagem do governo nas sondagens, embora todos saibamos que não é perseguindo as sondagens que um governo deve actuar. Deve actuar independentemente delas. Eu teria bastante respeito por um governo que tivesse a coragem de actuar contra as opiniões e as indicações das sondagens e achar-me-ia no direito de considerar risível um governo que actuasse em função dos estudos de opinião.

Simplesmente, há limites e bom-senso. Parece que o caso dos funcionários públicos afastados por “falta de respeitinho” teve algum impacte no mais recente barómetro da Marktest que avalia a popularidade do governo (se lhes juntarmos o caso das declarações do ministro Mário Lino, por exemplo, ou toda a polémica da Ota). Essa contabilidade interessa aos recenseadores de “factos políticos”. Ainda assim, se houvesse razões fortíssimas para apoiar a atitude do governo, ou das suas direcções-gerais, eu penso que o barómetro serviria de pouco. Parece claro, no entanto, que no “caso Charrua” houve excesso e abuso de zelo além de declarações politicamente infelizes por parte da responsável da DREN, à mistura com ameaças subtis. Parece haver procedimento idêntico no caso da exoneração de Celeste Cardoso, a directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, também por violação do dever “de respeitinho”. Os pormenores são conhecidos.

O que ficou a pesar na opinião pública, no entanto, não foi a natureza do desrespeito ou da eventual falta de decoro devido por parte dos funcionários envolvidos, mas sim a natureza persecutória da atitude das chefias, bem como o silêncio dos responsáveis políticos e dos respectivos ministros.

Isso não se deveu a nenhuma “campanha orquestrada pela oposição”, que reage mal e desorganizadamente, mas à sensação – vivida pelos cidadãos – de desprotecção diante do poder. O antigo presidente Mário Soares (numa entrevista à SIC) insistiu no carácter “desagradável” destas “mossas na acção do governo”, e Manuel Alegre achava a decisão do ministro imprópria do PS e do seu historial de tolerância e liberdade de expressão – e mesmo Vital Moreira, que tem vindo a ser um dos mais activos defensores das políticas do governo, achou despropositadas as atitudes das chefias.

O que é mais “desagradável” não é, no entanto, a “mossa que isto possa causar na acção do governo” – mas sim o facto de o próprio PS mostrar que alberga (nas suas fileiras mais obscuras e escondidas, é certo) um conjunto de guardiães hirsutos e severos, decididos a punir a desobediência, o protesto e o riso. De todas as críticas que já se fizeram ao PS, nunca pensei encontrar esta. Estamos sempre a aprender.

É necessário algum bom-senso nestas matérias. Se estamos de acordo em que deve ser preservada a autoridade e a disciplina, o governo não pode dar de si a ideia de um “big brother” sempre vigilante, preparado para – a cada instante – actuar contra o mínimo sinal de riso ou, até, de insensatez.

A Câmara Municipal do Porto serve-se de vídeos para identificar manifestantes; as estruturas do governo aceitam e divulgam denúncias por “sms”; os serviços do ministério da Saúde reagem a “cartazes jocosos” onde são divulgadas as palavras do próprio ministro.

Quando estes pequenos casos ocupam um espaço essencial da vida política, a culpa não é da vida política propriamente dita, mas dos protagonistas que se transformam em alvos de mais riso e de mais indisciplina.

in Jornal de Notícias – 2 Julho 2007

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julho 01, 2007

A beleza impura do meu Rio

Já escrevi várias vezes que o Rio é a mais bela cidade do mundo. Explica-se facilmente o desvario: pelo seu clima, pela sua beleza natural, pela sua história e pela sua capacidade em renovar-se, re­sistir e provocar a imaginação de qualquer contador de histórias (como Ru­bem Fonseca, o grande recriador da ficção em língua portuguesa, ou como esse autor de romances policiais passados em Copacabana, Luís Alfredo García-Roza, o criador da figura do delega­do Espinosa, detective dos seus livros). Mas o grande livro sobre o Rio de Janei­ro chama-se Carnaval no Fogo, Crónica de Uma Cidade Excitante Demais (é assim o seu título brasileiro), de Ruy Castro, o autor das biografias de Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico), Garrincha (Estrela Solitária) e Carmen Miranda (Uma Biografia).

O meu Rio, no entanto, é um prazer quase absoluto, uma mistura de sabores – mas ninguém pode sobreviver ao olhar da Lagoa, negra e brilhante, às primeiras horas da manhã. O escritor Zuenir Ven­tura, que é um carioca de olhar meigo (à delicadeza dos cariocas de lei soma-se o facto de ter nascido em Minas), recebe-me em casa e pede desculpa. «Desculpa?» «Sim. O tempo. Por causa do tempo. Não pára de chover há cinco dias. Indesculpá­vel.» É verdade: Ipanema, onde vive o es­critor, nem parece a mesma, a Ipanema dos postais ilustrados, a Ipanema delicodoce de todos os que escreveram sobre Ipanema, nem mesmo a Ipanema dos livros de Rubem Fonseca, que é o grande autor do Rio de hoje, do Rio destes últi­mos anos, com os seus romances cheios de calor, sexo, suor, palavras impossíveis de transcrever, mais sexo ainda, mais suor e cerveja, whisky, mulheres e homens per­didos numa cidade onde tudo acontece e nada parece mudar a face do carioca.

Eu sei que esta é a face límpida e bri­lhante do amante do Rio: mas o Rio é a mais bela cidade do mundo e eu queria viver aqui mesmo, acordar e ver a Lagoa, ver o Leblon mais para lá. Dispensam-se as imagens do turismo carioca: mulheres de fio dental, corpos sujeitos à mais se­vera «malhação», passeios no calçadão.

Não: estas imagens não bastam. Prefiro as da Avenida Rio Branco com as lojas caóticas, as calçadas que vão dar à Igreja da Glória, mesmo por detrás do hotel que a política tornou famoso, as das manhãs repentinas de quem chega de viagem e atravessa a Via Vermelha com pressa de tomar o beijo da Guanabara (como na canção de Renata Arruda), percorrer os seus bares de esquina e de esconderijo, aqueles onde se escondiam gerações que tornaram o Brasil mais vi­vo e agitado, divertido, literário até, o Brasil da crónica viva disputada entre os jornais da cidade, passar aqueles «domin­gos de regata» de que falava Nelson Ro­drigues («toda a ida ao Maracanã...»), ver o Fla-Flu no Maracanã, parar no antigo largo de Santo António ao sábado de manhã antes da feijoada, que deve ser comida naquele restaurantezinho ao la­do da General Osório, em Ipanema.

E é isso mesmo: uma vida no Rio sem um jo­go no Maracanã não é vida que se tenha, sem aquele rumor nas bancadas, o torpor que anuncia a tarde, os jornais compra­dos num quiosque, um corte de cabelo com conversa incluída, e aquele saboroso trocar conversa de uma mesa a outra, de um rosto a outro, na calçada do Bibi, a melhor loja de sucos de toda a cidade, a dois passos da Praça Antero de Quental, rodeada de árvores.

Mas é assim: o Rio é a mais bela ci­dade do mundo e eu queria viver aqui mesmo, acordar e ver a Lagoa, ouvir o ruído dos táxis a meio da noite, e saudar a corte portuguesa que, fugindo a sete pés da Lisboa em perigo no século XVIII, fez do Rio uma cidade suportável e des­tinada a sobreviver. Há males relativos que vêm por bens absolutos.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Julho 2007

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