julho 28, 2007

O mundo não está perdido


O Pereira é um emblema de Cascais que nunca deixa má impressão. Queremos um monumental cozido à portuguesa? É lá.

Costumo dizer, em ocasiões que talvez não venham a propósito, que o mundo não está per­dido. A última vez ocorreu quando, depois de um final de tarde cheio de trabalho, o vulgar stresse de Verão me empurrou para Cascais. Gosto da vila, e gosto dela sobretudo quando me parece pequena e maneirinha, com as ruas limpas. Chamem-me snobe, que eu justifico: Cascais é isto. O mundo pode alterar-se, mas Cascais não deveria mudar.

Devia recuar no tempo, até, se possível, ao tempo em que o Sr. D. Carlos passeava ao largo da baía, de pincel na mão, reto­cando as aguarelas. O leitor pensa que eu estou, naturalmente, a mangar - mas é a pura verdade. A Cascais do futuro não me interessa grande coisa; é como pensar em Monsanto, "a aldeia mais portuguesa de Portugal", e rasgá-la com ave­nidas e povoá-la com restaurantes tailandeses. Cascais é do tempo da monarquia, devia ter a fama de usar espartilho e de ler romances de Carlos Malheiro Dias ou Joaquim Paço d'Arcos ao som de pequenas orquestras de câmara estrategicamente poisadas nos seus becos - mesmo que, nos corredores das suas casas, fosse atrevida, moderna e cheia de vícios.

O que tem – pergunta o leitor, siderado – um cronista de restaurante de subir um degrau para gastar opiniões que devia guardar para si. Ele que fale do refogado, das panelas, das loiças e dos escanções, reservando o romance para o roman­ce, a crónica de costumes para as gavetas – e que diga o que comeu. Não posso. Vejo Cascais e parece-me, nessas circunstâncias, que devia vestir a sobrecasaca e o chapéu dos nossos antepassados, e expulsar à bengalada as traquinices arquitectónicas e a mania de que Cascais tem de ser mais "popular".

A coisa mais "popular" de que me apetece falar é do Pereira. O Pereira foi um emblema da vila, uma medalha de honra visível no seu peitilho. Entra-se no Pereira depois de subir por uma das ruas que vêm do Largo Visconde da Luz, e não há que enganar. Nada de decoração, nada de coi­sas em género superlativo – mesas são mesas, comida é comida, atendimento é atendimento.

Se estamos cansados de "cozinha de fusão", entremos no universo do arroz de pato (não se trata de pato desfiado e escondido no meio de arroz submerso no forno - mas de pedaços de pato), dos linguadinhos fritos com açorda de alho, com arroz de tomate ou com arroz malandro de grelos – que também pode acom­panhar as quase desaparecidas pescadinhas de rabo na boca. Este é o lar dos pezinhos de coentrada, da mão de vaca com grão, da cal­deirada à fragateiro, das feijoadas (de chocos ou à transmontana), do cabrito assado à padeiro, da dobrada com feijão branco (rosadinha, alaranjada, cremosa), do arroz de cabidela, das iscas à portuguesa, dos filetes de pescada ou de cherne com açordinha, do cação de coen­trada, do pernil de porco no forno (com tomate) servido com arroz de grelos. Pouca metafísica, muita simplicidade e nada de enganar o povo. Além disto, há uns peixes para grelhar e que têm a vantagem de estar expostos, inteirinhos, logo à entrada. Casa honesta, portanto. Até as batatas fritas, finíssimas, estaladiças, vêm quentes para a mesa e nunca sucumbirão à tentação de ser pré-congeladas – como verdadeiros são os rissolinhos e croquetes que vêm para a mesa logo a abrir, mal nos sentamos, ainda quentes.

Desta vez, o pernil estava suculento e cremoso, avançando por entre as mesas na companhia das pescadinhas de rabo-na-boca, ficando abraçado, ainda, a um cherne, que partiram quando se aproximaram um leite-creme queimado e uma encharcada. Eram horas de retirar e de descer a rua, misturando-nos com os passeantes de Cascais. O Pereira nunca deixa má impressão porque só contamos com ele e não com outro em seu lugar. Queremos jaquinzinhos e ou petingas com açorda? É lá. Queremos um cozido à portuguesa monumental, à antiga? É lá. Não nos engana, o Pereira. O mundo ainda não está totalmente perdido.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 36
Vinhos brancos: 12
Espumantes & Champanhes: 2
Aguardentes portuguesas: 8
Colheitas tardias e moscatéis: 1
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 10

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente difícil durante o dia
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: ao fim-de-semana
Preço médio: 15 Euros

O PEREIRA
Rua da Bela Vista, 92
2750-304 Cascais
1600-781 Lisboa
Encerra às quintas-feiras

in Revista Notícias Sábado - 28 Julho 2007

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