julho 14, 2007

À antiga portuguesa


Cada vista à Travessa do Rio serve para comer bem e para confirmar que tudo continua no seu lugar. É uma satisfação para o estômago.


Já houve tempos em que A Travessa de Benfica, como lhe chamávamos para o distinguir do A Travessa que agora está no Convento das Bernardas (ou “as Belgas”), era um restaurante para eleitos. Os eleitos eram, simplesmente, aqueles que sabiam da sua existência, escondido num beco que dava (e dá) para a Estrada de Benfica, quase no cruzamento entre a Av. do Uruguai e a Gomes Pereira, duas salinhas pequenas, atendimento quase familiar onde o chefe António e o comandante Vítor recebiam com conhecimento de causa.

A que chamo eu “conhecimento de causa”? Boa comida, antes de mais. Aquele charme da “cozinha essencialmente portuguesa” servida em restaurantes que não conhecem pelo nome nem a “cozinha de fusão” (mas a praticariam se fosse preciso) nem o “serviço amaneirado” (que não saberiam praticar). É coisa de homens e não me acusem de preconceito: uma vastíssima colecção de mariscos ornamenta as suas vitrines, bem como uma amostra generosa de travessas com petiscos tão inevitáveis como saborosos – entre os quais se contam uns dos melhores carapauzinhos de escabeche de Lisboa, bons para abrir o apetite ou (aprenda) para comer ao fim da tarde, com um vinho branco.

As salinhas são, portanto, pequenas. Não são o ideal para momentos conspirativos na política ou na transacção bolsista; mas especuladores da política e da bolsa vão lá frequentemente para comer, o que lhes melhora ligeiramente o estatuto. Famílias dos bairros à volta, empresários das redondezas, editores (com apetite), imprensa (mas incógnita), gente de estômago avisado – eis a sua frequência “transversal”, como agora dizem os sociólogos para designar o “de tudo um pouco” que nós usamos coloquialmente. Queijo de Azeitão escolhido a dedo, enchidos recolhidos de bons fornecedores, excelentes azeitonas (sim, as azeitonas são um requisito), pão de bom forno, saladinhas que abrem o apetite mas não o matam (ovas, polvo, bacalhau, orelha) – tudo para entrar no combate decisivo. Ed Motta, o cantor brasileiro (e grande enófilo, grande fumador, grande – enfim), elege-o como um dos seus pontos de paragem obrigatória em Portugal e, acreditem, ele não tem apenas uma grande voz como um grande e admirável apetite.

O combate começa com filetes de peixe-galo com arroz de marisco (a lista de peixes grelhados é sempre muito boa, com garoupa, linguado, cherne, robalo ou dourada), ou com lulinhas fritas com molho tártaro, ou com a estival saladinha russa de peixe, ou com o polvo ou o bacalhau à lagareiro, o arroz de tamboril, um magnífico peixe no forno (se for dia, recomendo especialmente), ou bacalhau à Narcisa (o nome não é este). Isto, antes de passarmos às carnes que ficaram na minha memória. Por exemplo: o cabrito no forno, que não se pode dispensar de provar, suculento, com batatinhas douradas e arroz de miúdos (eu dispenso, mas é de lei). A feijoada à transmontana, que é boa. E dois pratos históricos da casa: o arroz de pato, em havendo, é muito bom; o cozido à portuguesa é puramente sinfónico, colossal, com luminescências barrocas, eufórico, exige compenetração e muita companhia amiga – uma vez que as doses são bem apetrechadas. Se a isto tudo, que não é pouco e que varia bastante com os dias da semana (acrescentado de costeletinhas de borrego na grelha, de picanhas aceitáveis, de um ‘chateaubriand’ digno de pirotecnia), acrescentarmos uma encharcada fulminante e um pudim de Abade de Priscos cremoso e com a dose saudável de colesterol puro, a distinção é bem merecida.

Mas o problema não é esse. É a carta de vinhos, que é muito boa e onde há raridades de nota (se bem que, sem preconceitos, o mestre Vítor não se importa de me servir uma cerveja refrescante, uma ‘Bud’ gelada em copo apropriado), servida condignamente. É, ainda, uma carta de digestivos mais do que notável, onde há cerca de duas dúzias de uísques de boa nota, além dos vulgares – distinção para os maltes acumulados. Quando se podia fumar sem sentimentos de culpa, o Travessa do Rio era outro dos lugares de eleição, com um bom humidificador cheio de bons charutos com bitolas adequadas a cada apetite. De cada vez que visito o lugar, murmuro: continua tudo no seu lugar. É uma satisfação.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 96
Vinhos brancos: 30
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias & moscatéis: 5
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 34

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 20 euros

A Travessa do Rio
Travessa do Rio, 61
500-551 Lisboa
Telef: 21.716.05.43

in Revista Notícias Sábado – 14 Julho 2007

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