julho 30, 2007

Uma desconhecida fome de Justiça

Em muitas circunstâncias, e mesmo que não venha a propósito, há duas classes semi-profissionais que se mostram muito amigas da justiça – além, evidentemente, dos “profissionais do sector”. São elas: os políticos e os colunistas da imprensa. Além disso há uma outra categoria que rejubila sempre que se fala de justiça: a televisão.

Recomendo ao leitor que relembre o ar festivo com que se comemoram instruções de processos, indicações de arguidos e de testemunhas, idas à PJ e aos departamentos, inquéritos e anúncios de inquéritos, carros da PJ em alta velocidade transportando inquiridos (futuramente arguidos, ou não, testemunhas ou nem sequer suspeitos), bandos de jornalistas cumprindo o dever profissionais e correndo atrás de advogados, juízes mudos, magistrados com sorriso de Mona Lisa, testemunhas e (cá vai outra vez) pessoas que futuramente poderão, ou não, ser constituídas arguidas em processos que, convém dizê-lo, ainda não são processos.

Ora, essas movimentações não significam, por si mesmas, regozijo pelo bom andamento da justiça. Querem sobretudo dizer que o ressentimento tem cada vez mais espaço público sob o manto diáfano da “fome de justiça” e do absolutamente necessário combate à corrupção. Portugal fora, há bastantes profissionais da fome da justiça bem como profissionais do combate à corrupção. Ambos se mostram impolutos e temos por eles veneração e algum respeito. Também eles, tal como o povo reunido em multidão à porta dos tribunais (ou lendo as manchetes, ou escutado pelas televisões em declarações que raramente têm sujeito, predicado e complemento directo mas que transportam indignação bastante), rejubilam com inquéritos, processos, testemunhas, não-arguidos que hão-de transformar-se em arguidos e carros da PJ a alta velocidade.

O outro lado é menos luminoso: muitos processos caem depois no esquecimento – mas, entretanto, já fizeram manchete, já estiveram nas primeiras páginas. Um dia, muitos destes acabarão nas colunas mais escondidas dos jornais e ninguém se lembrará deles. Gente que depois nem sequer será convocada como testemunha recebeu entretanto tratamento de bandido, viu-se denunciada na rua e ficará com a vida (e a vidinha) destruída. Mas fez-se justiça. Ou seja: houve gritaria. Em Portugal, a gritaria e a manigância jurídica são sinónimos de bom andamento da justiça. Não interessa que restem meia-dúzia de processos em tribunal – o que conta é que foram mencionados 364 futuros inquéritos que reabilitarão o bom nome da pátria. E da justiça.

No caso “desportivo”, a esquizofrenia e a paranóia são superlativas. Mais bandos de justiceiros dizem que a justiça já está feita e que nada será como dantes. Não que, até agora, haja um único julgamento. Na verdade, trata-se apenas de profissões de “fé na culpabilidade dos inimigos” (o futebol tem muito disso). Muitos desses jornalistas de opinião feita limitaram-se, durante anos, a identificar o inimigo com adjectivos e suspeitas, e a nunca dar um único passo de “investigação jornalística”, que deveria ser o seu trabalho e no qual deveriam ter orgulho. Covardia pura de quem se satisfaz a esconder-se atrás de uma coluna de jornal. Se estão tão seguros da culpabilidade dos futuros arguidos, se murmuram casos e histórias tenebrosas, porque razão não as escreveram até agora, como seria seu dever? Por medo ou por preguiça? Não me parece que qualquer dessas justificações deixe o seu nome em boas condições.

Ontem como hoje, a chamada “fome de justiça” satisfaz-se com a gritaria e o desejo de vingança. A “fome de justiça” passa por ser “fome de denúncia”. É a tradição portuguesa: denuncia aqueles de que desconfias. O resto é papel. Gente de papel, aliás, que grita bastante e – até agora – pouco mais.

in Jornal de Notícias – 30 Julho 2007

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