julho 01, 2007

A beleza impura do meu Rio

Já escrevi várias vezes que o Rio é a mais bela cidade do mundo. Explica-se facilmente o desvario: pelo seu clima, pela sua beleza natural, pela sua história e pela sua capacidade em renovar-se, re­sistir e provocar a imaginação de qualquer contador de histórias (como Ru­bem Fonseca, o grande recriador da ficção em língua portuguesa, ou como esse autor de romances policiais passados em Copacabana, Luís Alfredo García-Roza, o criador da figura do delega­do Espinosa, detective dos seus livros). Mas o grande livro sobre o Rio de Janei­ro chama-se Carnaval no Fogo, Crónica de Uma Cidade Excitante Demais (é assim o seu título brasileiro), de Ruy Castro, o autor das biografias de Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico), Garrincha (Estrela Solitária) e Carmen Miranda (Uma Biografia).

O meu Rio, no entanto, é um prazer quase absoluto, uma mistura de sabores – mas ninguém pode sobreviver ao olhar da Lagoa, negra e brilhante, às primeiras horas da manhã. O escritor Zuenir Ven­tura, que é um carioca de olhar meigo (à delicadeza dos cariocas de lei soma-se o facto de ter nascido em Minas), recebe-me em casa e pede desculpa. «Desculpa?» «Sim. O tempo. Por causa do tempo. Não pára de chover há cinco dias. Indesculpá­vel.» É verdade: Ipanema, onde vive o es­critor, nem parece a mesma, a Ipanema dos postais ilustrados, a Ipanema delicodoce de todos os que escreveram sobre Ipanema, nem mesmo a Ipanema dos livros de Rubem Fonseca, que é o grande autor do Rio de hoje, do Rio destes últi­mos anos, com os seus romances cheios de calor, sexo, suor, palavras impossíveis de transcrever, mais sexo ainda, mais suor e cerveja, whisky, mulheres e homens per­didos numa cidade onde tudo acontece e nada parece mudar a face do carioca.

Eu sei que esta é a face límpida e bri­lhante do amante do Rio: mas o Rio é a mais bela cidade do mundo e eu queria viver aqui mesmo, acordar e ver a Lagoa, ver o Leblon mais para lá. Dispensam-se as imagens do turismo carioca: mulheres de fio dental, corpos sujeitos à mais se­vera «malhação», passeios no calçadão.

Não: estas imagens não bastam. Prefiro as da Avenida Rio Branco com as lojas caóticas, as calçadas que vão dar à Igreja da Glória, mesmo por detrás do hotel que a política tornou famoso, as das manhãs repentinas de quem chega de viagem e atravessa a Via Vermelha com pressa de tomar o beijo da Guanabara (como na canção de Renata Arruda), percorrer os seus bares de esquina e de esconderijo, aqueles onde se escondiam gerações que tornaram o Brasil mais vi­vo e agitado, divertido, literário até, o Brasil da crónica viva disputada entre os jornais da cidade, passar aqueles «domin­gos de regata» de que falava Nelson Ro­drigues («toda a ida ao Maracanã...»), ver o Fla-Flu no Maracanã, parar no antigo largo de Santo António ao sábado de manhã antes da feijoada, que deve ser comida naquele restaurantezinho ao la­do da General Osório, em Ipanema.

E é isso mesmo: uma vida no Rio sem um jo­go no Maracanã não é vida que se tenha, sem aquele rumor nas bancadas, o torpor que anuncia a tarde, os jornais compra­dos num quiosque, um corte de cabelo com conversa incluída, e aquele saboroso trocar conversa de uma mesa a outra, de um rosto a outro, na calçada do Bibi, a melhor loja de sucos de toda a cidade, a dois passos da Praça Antero de Quental, rodeada de árvores.

Mas é assim: o Rio é a mais bela ci­dade do mundo e eu queria viver aqui mesmo, acordar e ver a Lagoa, ouvir o ruído dos táxis a meio da noite, e saudar a corte portuguesa que, fugindo a sete pés da Lisboa em perigo no século XVIII, fez do Rio uma cidade suportável e des­tinada a sobreviver. Há males relativos que vêm por bens absolutos.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Julho 2007

Etiquetas: