dezembro 31, 2006

Arrumar a casa (sobre o fim do Livro Aberto)

Está a passar na RTP-N, durante este fim-de-semana, a última emissão do Livro Aberto (uma conversa com Eduardo Pitta, Isabel Coutinho, Rui Tavares e Pedro Mexia sobre os livros do ano). Foram três anos e meio de emissões semanais, mudanças de horário e muitos autores entrevistados -- cerca de duzentos e cinquenta. Pessoalmente, sinto alguma tristeza, mas provavelmente ao fim de três anos e meio o Livro Aberto já tinha cumprido uma parte da sua missão. Era recordado no final de cada ano como «o magazine de livros», mas muitos editores continuavam a queixar-se de que «não existia um programa de livros» -- simplesmente, não o viam, dedicados que estavam à indústria da queixinha. Não interessa. Acabou mesmo. Passou por lá muita gente de que gostei bastante; muitos autores que descobri e que tive de ler; muita gente que foi uma surpresa; e muita gente que me ia adormecendo em estúdio, evidentemente. Não guardo ressentimentos por eventuais injustiças cometidas contra o programa (sobretudo por parte da imprensa, que às vezes se distraía), mas é chato ter de reconhecer que às vezes se fez um esforço (de produção, de leitura, de organização) nem sempre aproveitado. É quase sempre assim. Faço este género de programas desde 1995, primeiro com o Escrita em Dia, na SIC, depois com o Ler para Crer, na RTP, passando por outras experiências que não fizeram de mim «um homem da televisão» mas que me ajudaram a conversar com os outros. Sei, hoje, que entrevistar é, sobretudo, estudar os temas e saber ouvir «os outros», que são as figuras da entrevista -- para criar pontes e, às vezes, cumplicidades. E também criar armadilhas, evidentemente (é esse o jogo). E chega.

Por isso, a partir de hoje acaba o blog Livro Aberto. O outro dos meus blogs que entretanto abandonei, o Gávea, será retomado para falar de livros e de literatura brasileira -- que me seduz cada vez mais. Por outro lado, continuarei a manter o programa de livros na Antena Um, o Escrita em Dia (quartas-feiras à meia-noite).Estão disponíveis, para ouvir no computador, as últimas entrevistas na rádio com Alexandra Carita e Jorge Simão (sobre o livro Fados Nossos), Possidónio Cachapa (sobre o romance Rio da Glória), Eduardo Prado Coelho (sobre Nacional e Transmissível), Raul Miguel Rosado Fernandes (a autobiografia Memórias de um Rústico Erudito) e José Luís Peixoto (sobre o seu mais recente romance, Cemitério de Pianos). Os links levam a versões WMP; para versões em Mp3 e RealAudio, ver aqui.

in A Origem das Espécies - 31 Dezembro 2006

dezembro 30, 2006

Luta de classes em Lisboa


O cronista foi ao XL e voltou. Gostou do que comeu, acha que os bifes eram bons e ficou com umas dúvidas.

Alguns dos meus conhecidos vão muito ao XL e regalam-se, gabam-lhe o aprumo, a decoração e os bifes e souflés. Parece-me bem. Sempre gostei de gente satisfeita, embora a designação seja deficiente: lembra aquela gente empertigada, muito agradada com a vida, sim, contente de se mostrar alegre e refastelada. Não é pecado, claro; mas aborrece-me – não por eles, mas pela vida.

Alguns dos meus amigos vão de vez em quando ao XL e trazem-me notícias, regressam de estômago aveludado, uma parte da sua satisfação preenche-me. Há restaurantes sobre os quais não vale a pena dizer muito – nem pouco. Eles existem, as suas portas encaminham-nos para um mundo gastronómico onde quase nada merece críticas, onde quase nada nos impressiona mas onde o que nos impressiona não devia impressionar. O XL é bom. O XL é um dos bons restaurantes de Lisboa. E, no entanto, ele é um caso que tem pouco a ver com a alta gastronomia propriamente dita, mas muito mais com o ambiente, a decoração, a porta semi-encerrada diante de uma das esquinas do Parlamento, os pratos que aveludam o estômago e, perdoem-me ir buscar este conceito tão antigo, com a luta de classes. Refiro-me às classes altas entre si – a A contra a B, a B contra a A, em recontros por vezes fatais. Eu sou do tempo em que o XL tinha como grande novidade os seus bifes, os seus pedaços de foie gras e tutano (oh, tempo maravilhoso do tutano) e a “potato skin” fritinha, que fazia as delícias dos consumidores com menos de quarenta anos nessa Lisboa burguesa de então, farta de comer bem nos restaurantes dos pais e avós – mas que precisava de juntar os prazeres do estômago pouco educado com o loiro acetinado das surfistas (e windsurfistas, muito mais deliciosas) de meia idade, e a ideia de que podia haver velinhas acesas nas mesas. Elas lá estão, as velinhas, em candelabros maiores; eles lá estão, os bifes variados de boa carne e de corte razoável com os seus molhos (preparados para a média burguesia que não gosta de nervo, de gordurinha ou de peça inteira, e que se recusa a fazer molhos em casa); ele lá está, o souflé elegante, fascinante, evocando o “jantar a dois” com um bom vinho de uma lista muito, muito acima do “razoável” – tocando as franjas do “quase muito bom”, com boas incursões espanholas.

Tudo isso vai bem e lamento que nem toda a gente se comova diante dos ovos Viridiana e ache as magníficas gambazinhas panadas com arroz de tomate uma invenção recente.
Cumpre-me, para ser sincero, dizer o seguinte: os bifes são bons. Ponto. Os camarões são bons. O camembert panado lembra-me o “camembert rebozado” preparado por Biscuter para o melhor detective galego-catalão a trabalhar em Barcelona, Pepe Carvalho. O “foie gras” é bom e devia merecer mais dedicação da cozinha e da clientela. As batatas fritas são batatas fritas.
Eu, nestes restaurantes, não levo bloco de notas – limito-me a participar. Por exemplo, participo naquele jogo que se estabelece à entrada, quando aparece um senhor a perguntar se “têm reserva”; sabe-se que é necessária a reserva, evidentemente, mas que a primeira pergunta seja feita com o ar de quem está a vigiar a entrada num exclusivo clube de golfe na Florida, já me parece estranho, porque estamos na Calçada da Estrela e o XL não é o Le Bistrot de Nova Iorque. Tanto mais que, no Le Bistrot, tanto me dão a mesa a mim como a Robert de Niro, desde que eu tenha feito reserva e Robert de Niro também (eu até lhe dava lugar à minha mesa, porque ele não fala assim tanto, e seria uma conversa agradável). No XL pode acontecer que um “famoso” tenha precedência sobre um cidadão comum, o que me parece original. Aos turistas estrangeiros, aliás, permitem-se-lhes coisas estranhas, como beberem demais, fazerem barulho demais, com o argumento, explicado por um criado, de que “eles gastam muito dinheiro” e pagam bem pelas garrafas. Se é assim, estamos falados.

Portanto, nota vá lá, positiva, para o cardápio equilibrado e para a carta de vinhos; quanto ao serviço, acho que toma certas liberdades, considerando o que se paga por uma noite bem passada a comer bifes.

À lupa
Carta de vinhos: * * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * *
Acolhimento: *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 41
Vinhos tintos: 135
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 30
Espumantes e champanhes: 12

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: difícil na zona, mas com serviço próprio
Adequado levar crianças: não
Área de não-fumadores: não
Reserva: imprescindível
Preço médio: 45 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

XL
Calçada da Estrela, 57
Lisboa
Tel: 213 956 118Encerra aos domingos.

in Revista Notícias Sábado – 30 Dezembro 2006

dezembro 25, 2006

A nostalgia da liberdade

Sem surpresas por parte dos pessimistas do costume - entre os quais me encontro - o parlamento aprovou, por unanimidade, o projecto governamental do Cartão Único. A modernidade rejubilou, imbecil e histriónica e apressa-se a dizer que, depois de termos inventado a Via Verde das auto-estradas, mantemos o passo acertado com as grandes nações (o que não é verdade - na Austrália e nos EUA não há bilhete de identidade, por exemplo) temos cartão único de cidadão, basta agora começarmos a cruzar os dados: o número de cidadão, o de contribuinte, o da segurança social, em breve o da saúde, quem sabe se de o fumador de marijuana ou o de leitor de literatura obscena ou de adepto de um clube de futebol.

O ministro António Costa, alertado pelas objecções acerca do perigo de haver tamanha concentração de dados num único cartão, lembrou que "isto não é o Big Brother". Engana-se, meu Caro António Costa não é o Big Brother, mas pode ser o princípio. Nada nos garante que, daqui a uns anos, a uns meses, depois de entrar em vigor o cartão único, não exista um organismo, muito cioso da segurança do Estado e do controle dos cidadãos, que comece realmente a fazer o cruzamento dos dados contidos no "chip" que cada um trará dentro do bolso. Nada que não tenha acontecido antes.

Daqui a uns anos, inclusive, o mundo estará cheio de nostálgicos da liberdade. Gente que terá saudade do tempo em que podia festejar o Natal sem ser acusada de estar a insultar os muçulmanos e os ateus; gente que podia publicar cartoons e rir dos outros - que é uma actividade meritória. Haverá nostálgicos do tempo em que podiam fumar um cigarro ou um charuto, comer costeletas de novilho com osso, andar de minissaia sem ser apedrejada, ler um livro sem levantar suspeitas - enfim, sem ser controlado de alguma maneira por Entidades Reguladoras ou por chips electrónicos que armazenam cada passo que damos, cada fronteira que atravessamos, cada doença de que nos queixámos.

O ex-ministro Freitas do Amaral tinha razão na ocasião das caricaturas de Maomé ele antecipou um tempo em que teremos medo, medo real - e não medo apenas do seu dedinho espetado, pregando um ralhete aos seus concidadãos "que confundiam liberdade com libertinagem". Mesmo eu, que não sou católico, reconheço a ameaça policial que os fanáticos dirigem contra a celebração do Natal. Os jornais têm publicado queixas alarmantes de pessoas insuspeitas que relatam casos de auto-censura cada vez mais ridículos (em Espanha, houve escolas que proibiram festejos de Natal e em Inglaterra, Birmingham, a ideia de festejar o nascimento de Cristo foi considerada ofensiva). O ex-ministro Freitas do Amaral tinha razão: teríamos feito bem mandar queimar os "cartoonistas" dinamarqueses. Talvez ele também ache que a celebração do Natal seja uma agressão contra as hordas de desequilibrados que incendiaram embaixadas pelo Médio Oriente fora em nome da sua "ofensa".

Tenham medo. Tenham medo verdadeiro desse tempo. Nada do que façam deixará de ser vigiado. Nada do que digam deixará de ser tido em conta. Nenhuma das vossas crenças deixará de ser considerada ofensiva. Nem mesmo no interior de nossas casa deixará de estar presente esse Big Brother politicamente correcto, vigiando o que comemos, o que comemoramos, o que dizemos.

Não contem anedotas, não consumam colesterol, não riam. Deixará de haver uma lei da República que vos garanta a liberdade de fazer; haverá, antes, uma lei que vos restringirá a liberdade de ser o que quiserdes ser. Em nome do Estado, do bem comum, das crenças absolutas dos outros - sempre com a bênção dos que sabem, por nós, o que é melhor para nós. Sim, estamos em guerra pela nossa liberdade.

in Jornal de Notícias - 25 Dezembro 2006

dezembro 23, 2006

Passar pelas brasas


Com saudades da Argentina, o cronista comeu um 'bife de chorizo' nos Las Brasitas, em Lisboa, a pensar em 'chinchulines' e 'tapa de cuadril'. Não se arrependeu.

Há restaurantes que fazem parte da nossa memó­ria e não há senão razões da própria memória, que é traiçoeira, para que isso aconteça. Coincidências. Explicar isso é trivial e desnecessário, coisa cheia de lugares-comuns ao segundo parágrafo, senão à segunda frase, que é o que acontece geralmente. Mais vale não ser romântico, nem valorizar dema­siado as razões sentimentais – ainda que sejam essas que justificam, por exemplo, que se escolha um restaurante.

Sou cliente do Lãs Brasitas há muitos anos. Sinto-me lá bem. Poderia escrever uma crónica sem mencio­nar um único dos seus pratos porque, na verdade, às vezes me apetece exactamente "aquilo". E "aquilo" é sentar-me. Houve um tempo em que escolhia quase sempre a mesma área, a mesma mesa, o mesmo grupo de mesas, porque ir a um restaurante significa repetir um ritual – e eu requeria o mesmo grupo de empregados de mesa, onde despontava o fidelíssimo Carlos, brasileiro que tinha atravessado várias profissões antes de chegar ao Las Brasitas. Ele servia-me com grande cuidado, sabia a minha marca de 'whisky', sabia que em determinados dias eu esta­va com cara de beber o meu vinho argentino, e que em outros iria continuar com a cerveja que tinha arrastado pelo balcão antes de me sentar (eu gosto de restaurantes onde não me olhem de viés quando peço cerveja para acompanhar a refeição). E, se não optava nunca por um Malbec (que é um dos vinhos que me paralisa o paladar), havia um Syrah e um Cabernet Sauvignon a propósito daquelas carnes – porque a carne é o essencial do Las Brasitas.

Ora, vejamos: merece a pena salientar o Las Brasitas, que faz parte de uma multinacional de restaurantes (aquele 'design' do seu logotipo vê-se no Brasil e em Buenos Aires)? Vale sim. Um dos meus projectos é passar uma semana a escrever críticas do Kentucky Fried Chicken, do Joshua's e de outras lojas de comida rápida.

Mas o Las Brasitas não é comida rápida. É carne. É, como eu disse lá atrás, "aquilo": mesa de toalha branca, guardanapos brancos, copos adequados ao vinho, talheres apropriados, serviço simpático, car­dápio reduzido a poucas escolhas – e nada de inven­ções. Encontro isso no Las Brasitas do Páteo Bagatella, no coração de Lisboa, a dois passos do Jardim das Amoreiras (ou, nas traseiras, da Artilharia Um). Há um Las Brasitas nas docas de Alcântara, mas não se compara o serviço (atendimento, simpa­tia, cordialidade, correcção) nem a comida (decentíssima, suculenta, servida em bom ambiente, mesmo quando há grupos de famílias numerosas, esse flage­lo dos restaurantes). Se for ao Las Brasitas, vá ao do Páteo Bagatella - e vá cedo, e vá com mesa marcada. Eu, que tenho muitas vezes saudades da Argentina (e, garanto, de nada de especial - mas apenas dos seus restaurantes acolhedores, dos seus cafés, das suas livrarias civilizadas), sonho muitas vezes com 'cuadril', com 'cordero patagonico', com 'chinchulines', com um 'puchero' suculento, com 'asado del centro' e 'colita de cuadril', 'asado de tira' e 'bife de chorizo', e com os vinhos das 'terrazas' de Mendoza ou com as cervejas artesanais de Bolsón bebidas para acompanhar uma 'sfogliatella napolitana' num café de San Teimo, Buenos Aires. E, quando isso me acontece, o Las Brasitas está à mão. 'Ojo de bife', 'asado de tira' (ah, sabores austrais!), 'bife de chorizo', carnes 'al punto' ou 'jugosas', servidas com legumes grelhados, com batata no forno ou 'papa frita' (batata frita, simples) e esparregado. Em grupo, pode pedir-se uma 'parrillada' completa, que se vai bem servido. Quando chego à sobremesa (uma carta saborosa, onde pontifica um 'petit gateau' bem conseguido), reservo para mim um pouco de Syrah (não, para mim não é a casta da moda - é a minha memória dos vinhos argentinos), até que a necessidade de um café e de um álcool mais forte me exija um charuto ligeiro (os tempos não estão fáceis). E é assim a vida. Fica-se assim, satisfeito.

À LUPA
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 86
Vinhos brancos: 41
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes &Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: parque subterrâneo com acesso
Levar crianças: sim
Área não fumadores: não
Reserva: imprescindível
Preço médio: 30 euros

LAS BRASITAS
Rua de Artilharia Um
Páteo Bagatela
Lisboa
Tel.: 21.3862670
Não encerra

in Revista Notícias Sábado - 23 Dezembro 2006

Lembranças de Jesualdo e jogadores de eleição

1. Admito que Jesualdo Fer­reira se canse de chamar a atenção para pormenores, mas convém que os lembre, mesmo correndo o risco de ser um chato. O mais importante deles ocor­reu depois do F. C. Porto-Paços de Ferreira: estava desconten­te com a exibição relativamen­te banal da equipa. O resulta­do, 4-0, foi interessante: qua­tro golos saídos dos pés de Ri­cardo Quaresma e dois deles apontados por um defesa, Pe-pe. Houve quem pensasse que uma operação aritmética bási­ca bastava para descansar Je­sualdo (quatro golos à equipa que tinha ganho ao Sporting e empatado com o Benfica); fe­lizmente, o treinador lançou o aviso para compensar a ale­gria instalada desde a semana anterior, quando tinha lembra­do outra coisa básica - que é em jogos como aquele da Choupana, contra o Nacional, que se ganham campeonatos, e não apenas contra o Benfica e o Sporting.

Isso é bom de dizer, mas toda a gente sabe que não basta ga­nhar ao adversário; é preciso, dentro de certos limites, hu­milhá-lo um pouco para que não fique com um sorriso ao canto da boca. Adriaanse, o do molho holandês, não tinha percebido que era preciso ga­nhar ao Benfica no Dragão – e aqueles dois golos de Nuno Gomes foram "o sorriso ao canto da boca" até ao fim da época. Alguém, nessa altura, devia ter avisado Adriaanse; mas andavam ocupados com o processo disciplinar a Diego.

2. Devo desculpas a Pepe. Há três anos eu queria trocá-lo por outra coisa qualquer. Para se
vingar de fala-baratos como eu, Pepe revelou-se o melhor central a actuar em Portugal. Nada me im­pede de desejar que seja, mesmo, o melhor central português. Portu­guês, repito.

3. "Jogadores de eleição" é um tema recorrente, mas vale a pena lembrar enganos fatais. Durante urriEC. Porto-Braga, há uns anos, um comentador de serviço (na TSF) acabava de ver o mesmo que eu: Deco, esse português bravo, arrastava toda a defesa do então Estádio l.° de Maio para a direita e, num último momento, inflectiu, ficou diante de uma brecha por onde fuzilou o guarda-redes, Quim na época. Nunca esqueci esse golo nem o comen­tário ressentido do sujeito: "Ma­nhoso, Deco: Mas isso não mas­cara o facto de ser um jogador ba­nal." Não era. Um ano depois, num Belenenses-F. C. Porto, De­co toma a bola entre os pés na grande área e corre para a baliza adversária; faz o campo todo, su­porta três cargas e, diante da ba­liza, cede a Alenichev, seu con­corrente para o lugar, que faz o quarto golo. No Dragão, este ano, vi a mesma sequência de jogadas com Ricardo Quaresma e com Anderson. O comentador anda aí. O que disse de Deco, repetiu sobre Quaresma e de Anderson.

4. Ricardo Carvalho, Deco, Paulo Ferreira, Maniche, Derlei, Jorge Costa, Diego - todos saíram do F. C. Porto, tal como Mourinho. Em Fevereiro, o confronto com o Chelsea há-de fazer lembrar esse e outros pormenores. Mourinho não perdoa várias coisas e quer mostrar que o coração é um aci­dente na sua vida. Não é – mas ele quer mostrar. Fevereiro vai ser amargo.

in Topo Norte – Jornal de Notícias - 23 Dezembro 2006

dezembro 18, 2006

Uma entidade nada regular

Quando apareceu a chamada Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) chamei à atenção, nestas páginas, para a semelhança com o projecto brasileiro do Conselho de Jornalismo que o Governo Lula tentou fazer aprovar no Congresso de Deputados para disciplinar e vigiar a Imprensa. O Conselho de Jornalismo brasileiro, no entanto, nem por sombras se poderia comparar à ERC - ele tinha, na sua génese, um intuito censório e provocador que, aliás, era compreensível dada a natureza leninista do Partido dos Trabalhadores e o carácter do próprio presidente, que chegou a expulsar um jornalista do "The New York Times", coisa que não acontecia no Brasil desde os tempos da ditadura. Lula bebeu nos mestres e o segundo mandato é promissor em tentativas de amordaçar e intimidar a imprensa.

Portugal seria outra coisa. É, definitivamente, outra coisa. Já aqui, há duas semanas, insisti que não é possível atribuir intenções censórias nem a Augusto Santos Silva, o ministro responsável pela criação da ERC, nem aos membros da ERC, sobretudo ao seu presidente Azeredo Lopes.

Acontece, no entanto, que existe na ERC uma vontade indómita e generosa de fazer pedagogia e de actuar para nosso bem. Ambas as coisas só devem praticar-se a pedido. Ou seja, ninguém pediu à ERC para nos dar aulas de deontologia; e ninguém requereu a sua bondade explícita.

Ao criticar, e nos termos que o fez, quer o jornal "Público" (por ter publicado um texto), quer um colunista seu (autor de artigos de opinião), quer o seu director (por ter autorizado a publicação do texto), a ERC exorbitou e ultrapassou as suas competências e limites de acção. Se não o fez, então é porque essas competências são exageradas.

Imagine-se que, um dia, um colunista deste jornal publica um texto onde, de acordo com os parâmetros da ERC, há alguns erros e "perigos", além de excessos de linguagem. Sem que ninguém lho peça, a ERC invectiva o director do "Jornal de Notícias" que não devia ter publicado o artigo e, mais, que o jornal não pode publicar artigos dessa natureza, mesmo sob o guarda-chuva de "artigo de opinião". Ora, acontece que a lei geral - que é a que se deve reconhecer - prevê o recurso aos tribunais para dirimir casos em que alguém se sente ofendido por um texto de jornal. Ela tem funcionado, algumas vezes com atraso, mas tem funcionado. A possibilidade de existir um "tribunal intermédio" ou "especial" para tratar destes casos, propor ralhetes aos jornalistas e publicar sermões (com finíssima marca ideológica, como aconteceu no caso do "Público") ao director do jornal e aos autores dos textos, é um grave precedente e uma porta aberta à ingerência na política editorial dos jornais (e das rádios ou televisões) por parte de entidades externas aos mesmos. Ora, quem manda nos jornais? Não pode ser essa entidade externa.

Por mais competentes que sejam os membros da ERC - e certamente que o são -, ninguém lhes pediu (excepto o governo ou outras instâncias de poder) que ministrem lições não solicitadas.

Se aplicarmos a regra à imprensa em geral, chamo a atenção da ERC para erros de palmatória de jornalistas de política, parcialidade no tratamento de matérias de natureza internacional, falhas na admissão de foras-de-jogo num encontro de futebol ou, vá lá, critérios discutíveis em matéria de crítica literária, por exemplo. Ah, o que haveria a dizer!

Mas, nesta como noutras matérias, ou acreditamos na liberdade de imprensa (e até na liberdade de publicar matérias condenáveis que os tribunais avaliarão), ou não acreditamos de todo. Dizem-me que não se pode atacar a honorabilidade dos membros da ERC nesta matéria. É verdade; mas quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele. E ser lobo da imprensa não é propriamente uma actividade feliz.

in Jornal de Notícias - 18 Dezembro 2006

dezembro 16, 2006

Os pássaros de Banguecoque

O Sawasdee, em Cascais, merece a nossa atenção. Não se trata de um restaurante de cozinha com "inspiração tailandesa", mas da verdadeira cozinha tailandesa.

A primeira vez que provei cozinha tailandesa – e com garantia de "absoluta fidelidade" – foi em Londres, na companhia de Rui Knopfli, justamente na véspera de o grande poeta ter publicado o seu der­radeiro 'O Monhé das Cobras', livro-homenagem, testamento de uma vida dedicada também a amar Moçambique. Das nuvens que passavam em Belgrave Square até às mesas do simpático restauran­te – assim podia ser a minha memória de Knopfli des­ses dias de Londres. Vale a minha homenagem pes­soa: leiam 'O Monhé das Cobras', sim, leiam 'A Ilha de Próspero', leiam Knopfli.

Depois, em viagem pelo Oriente, fascinado com as primeiras paisagens do Índico e do Pacífico, sentei-me a várias mesas que me permitiram provar essa fantástica cozinha. Gostei. Não se tratou, apenas, de "gostar" - mas de querer aprender, de querer testar e de querer, finalmente, cozinhar e experimentar: aquela fusão, quase espiritual, e também sensual, entre o 'khao soi gai' (uma das especialidades do Sawasdee) e as ostras perfumadas, as pequenas espetadas, o aroma do tamarindo, o céu de Banguecoque. Explico o céu de Banguecoque, arrancado ao livro quase homónimo de Manuel Vázquez Montalbán ('Os Pássaros de Banguecoque'): é um livro arrasador, em que Pepe Carvalho, o maravilhoso detective galego-catalão se nos dirige em considerações gastronó­micas sobre aquela parte do Oriente. Escritores como Manolo não voltei a encontrar com aquela sublime capacidade de nos devolver aromas, texturas, gostos essenciais, ironias, ternuras intempestivas, sensualidades quase grotescas e, no entanto, saborosas como as tempestades entre as florestas. Falo das florestas por causa da Tailândia, naturalmente.

Só voltei a ler qualquer coisa sobre comida tailandesa ao comprar o livro de Anthony Bourdain, 'A Cook's Tour', uma viagem quase improvável pelo que de mais arriscado havia na "cozinha do mundo". Oh, perfeição absoluta! Oh, sensação de perigo! Oh, ilu­são que avaria as papilas. Recomendo o livro, recomendo a descrição, recomendo a busca. Pensamos sempre que sabemos o que há a saber e, depois, quan­do encontramos um bacalhau numa tasca à beira da estrada, ou quando numa barraquinha coberta de folhas de palmeira comemos um arroz picante, um camarão picante, um molho agridoce, um coco rala­do. Detesto, por isso, as certezas absolutas.

Em tempos, escrevi um livro em que um detective procurava ansiosamente pela visão de Chiang Mai e das suas florestas (na verdade, havia uma música de Brian Eno sobre o assunto, no disco 'The Plateau of Mirrors') para tentar descobrir a identidade de um assassino meticuloso e amante de pintura brasileira - e foi a terceira vez que a Tailândia se atravessou no meu caminho, tirando, obviamente, aquele momen­to de olhá-la de frente.

Falo-vos agora do Sawasdee, um restaurante de Cascais, cuja "certificação tailandesa" merece registo – a ideia é que não se trata de um restaurante de cozi­nha com "inspiração tailandesa", mas de cozinha tai­landesa, em que nomes como 'pu-já', 'pla-meuk lui fi re', 'pad pak ru am mit', 'hhao soi gai' ou a doçura do 'foi thong' (trata-se de um doce de ovos que reco­mendo vivamente), onde há influências várias (por­tuguesas inclusive), nos convidam não só ao esqueci­mento como também a flutuarmos no meio daque­les sabores de molho de ostras, de perfumes de frutos, de sementinhas picantes, de caranguejo, de marinadas, de carnes suavemente associadas a mariscos, de frango de caril fantástico.

Aviso-vos, leitores, que a experiência vale a pena. Ir a Cascais, procurar o simpático Beco Esconso muito perto da estação. 'Os Pássaros de Banguecoque' é um dos mais românticos livros de Manuel Vázquez Montalbán - uma história de amor delicada e perigosa como se esperava, um cruzamento de latitudes e de cores da pele. Ir ao Sawasdee é uma parte dessa iniciação. Lá vos espe­ro um dia destes; eu lá estarei provando magníficos arrozes tailandeses, detectando o génio.

À LUPA
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 20
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 10
Aguardentes &Conhaques: 3

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: não
Área não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 22 euros

RESTAURANTE SAWASDEE
Beco Esconso, 11
1300 — Cascais
Tel: 21.4847967
Encerra às segundas-feiras.
Está aberto apenas ao jantar

in Revista Notícias Sábado – 16 Dezembro 2006

A bola não tem culpa

1. Agora, bola: duas assistências de Quaresma nos dois golos do FC Porto no Funchal. O que confirma aquilo que já era uma evidência da parte de Ricardo Quaresma – mas que também ajuda a compreender o estilo de jogo do campeão: submeter-se ao princípio da economia geral, ou seja, obter o máximo de resultados com o mínimo de esforço. Este quadro deixa os adeptos com os nervos em franja, mas compreende-se o desejo de equilíbrio e de poupança de energias. Agora, há dois meses para afinar o que há a afinar, se o FC Porto se limitar a vencer o Paços de Ferreira este fim-de-semana; porque em Fevereiro vem aí o Chelsea, o que será um teste duplo à equipa. Em primeiro lugar, é preciso continuar na Champions; em segundo lugar, Mourinho não esqueceu que perdeu por 2-1 no Dragão. O resultado fez pouca mossa na contagem final, mas Mourinho não esquece, não perdoa, não tem amigos e não vai em cantigas. Se a vantagem para o Manchester se mantiver na liga inglesa, o Chelsea vai apostar quase tudo na Champions. Para bom entendedor, não é apenas o FC Porto que se mete no caminho do Chelsea; é também o trajecto de Mourinho que estará em causa no seu clube. Ele vai querer juntar o útil ao agradável e ajustar contas em definitivo.

2. Maria José Morgado vai tomar conta do processo do Apito Dourado – a notícia é boa porque vai permitir, antes de mais, calar suspeitas sobre uma eventual paralisia na investigação, que é preciso concluir quanto antes. O que os flibusteiros do costume mais apreciariam seria que o processo se enrolasse até à eternidade para poderem grasnar à vontade. É preciso ser rápido e ser claro para que não se repitam as ingenuidades habituais. Salvo erro, depois de tudo o que disse – e bem – também se trata de um teste para Maria José Morgado.

3. Ouviram-se gritos de “Viva o Benfica!” no lançamento do livro que escreveram sob o título “Eu, Carolina”, o que dá bem ideia da coisa. Isso não deve impressionar-nos, porque guerra é guerra (o Benfica já tinha inventado um dossier “anónimo” e altamente comprometedor sobre a corrupção no futebol, ou seja, um dossier a que foi retirada a assinatura para poder ser “anónimo”). A bola não tem culpa. Se o FC Porto terminar a primeira volta do campeonato com esta vantagem, bem podem os amigos de D. Carolina gritar “viva o Benfica”. Até lhes agradeço, que eu gosto de gente satisfeita.

4. Não vale a pena chutar para o lado e tentar seguir em frente tapando os ouvidos. Deverá Pinto da Costa demitir-se? Por mais difícil que esteja a vida do presidente portista, os adeptos e o clube devem-lhe apoio e lealdade, e isso é uma questão de princípio. Seria feio e patético alguém pensar em livrar-se de Pinto da Costa para aproveitar a onda levantada por um livro abjecto e pelos interesses mais vastos e escabrosos que o produziram; mas ao presidente não basta dizer que responderá “em sede própria” porque o debate está na rua e é necessário que, nesta guerra, o clube não se transforme na sua garantia pessoal.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 16 Dezembro 2006

dezembro 11, 2006

Ser de esquerda porque sim

O primeiro-ministro definiu o que é ser de esquerda. É, antes de mais, dizer-se de esquerda, afirmar-se de esquerda e tentar passar a ideia de que as suas propostas políticas são de esquerda.

Não é novidade tamanha profissão de fé. Lembra o que aconteceu depois da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética o que tinha caído não era o socialismo, não era a utopia socialista - apenas uma perversão da ideia genial que tinha conduzido ao "gulag", ao empobrecimento e aos milhões de mortos de Estaline. De cada vez que uma ideia falha, aparece sempre alguém dizendo que não foi a ideia, em si mesma, que falhou, mas a sua expressão "no domínio do real". O problema é que, entretanto, a ideia ficou contaminada pela memória. Mas é apenas um pormenor.

Na verdade, todas as utopias - de Campanella a More, de Calvino a Marx, de Rousseau a Lenine - contêm, em si mesmas, o gérmen da desgraça e os princípios do autoritarismo ou da loucura totalitária. Basta ler bem os textos e analisar, mesmo superficialmente, a história da sua realização. Sucessivamente, as mais negras etapas de realização das utopias são, ou ocultadas ou negadas com artifício o Terror, na Revolução Francesa, não tinha a ver com a Revolução Francesa; o extermínio dos camponeses e dos desafectos de Estaline, na URSS, não tinha a ver com o socialismo; os milhões de cadáveres deixados por Mao na sua cruzada da Revolução Cultural não devem fazer esquecer o génio que a ordenou; e assim sucessivamente.

Se passarmos para "o outro lado da barricada", seria como se absolvêssemos Augusto Pinochet dos crimes que certamente cometeu e da corrupção que permitiu, porque lançou as bases de uma economia moderna no Chile.

Simplesmente, José Sócrates é insuspeito de simpatias pelo autoritarismo de esquerda - dessa herança ficou sobretudo "a vontade de nos fazer bem", de qualquer modo mitigada pela boa consciência liberal do primeiro-ministro. O congresso que reuniu no Porto uma parte do "socialismo europeu", além do "amigo americano" (e da bela Ségolène Royale, que com Sócrates constitui o par ideal dessa Europa que se livra da penumbra) serviu para mostrar aos portugueses que existe uma ideia de esquerda que não ruiu. E qual é essa ideia? Salvo erro, a ideia é ser de esquerda. Preto no branco.

De tudo o que aconteceu no congresso floresceu sobretudo a ideia do "modelo social europeu" como coroa de glória da "generosidade europeia" e da "fraternidade das nações". Também aqui estamos todos de acordo é necessário repensar "o modelo", que, recorde-se, vive permanentemente atrapalhado com as armadilhas da vida real e das contas dos Estados e dos seus défices. Sobretudo quando se verifica que a Europa quer um "modelo social" para uso próprio, mas está indisponível para pagá-lo com honradez e honestidade. Trata-se apenas de "boa consciência".

Confrontado com a realidade, José Sócrates é de esquerda metade da semana; e faz desvios de direita quando os contabilistas o assaltam. Assim, também eu. A única diferença é que o primeiro-ministro se sente na obrigação de insistir em que é de esquerda porque se define a si mesmo como "de esquerda".

2. O Ministério da Educação, que - se tivesse juízo - devia suspender os trabalhos da famigerada TLEBS, prepara-se para, segundo o semanário "Expresso", exigir aos professores que tenham uma "boa expressão oral e escrita do Português". Não se trata de uma exigência, bem vistas as coisas, mas de uma evidência não se compreende que um professor use deficientemente a sua língua. Mas enfim. Para isso, o Ministério devia arrumar a própria casa. Pode começar por vigiar muitos dos manuais que são distribuídos anualmente pelas escolas e, para variar, verificar a ortografia e a sintaxe dos seus técnicos superiores. E lançar o debate sobre o ensino do Português.

in Jornal de Notícias - 11 Dezembro 2006

dezembro 10, 2006

A grande Ilha de África

Era um terraço, o mais belo terraço que já vi em África. Vazio, rectangular, limpo, aberto para a noite e para a chu­va. Viam-se os minaretes das mesquitas, a cruz da grande igreja, os coqueiros das ruas, as arcadas das praças; e, mal chega­va a madrugada, as luzes dos carros que atravessavam as estradas do litoral, as estátuas abandonadas junto do passeio marítimo, exemplos de arte nova total­mente deslocados no tempo, no espaço, no mapa, na história. Viam-se os ca­miões do outro lado do canal, na peque­na estrada junto das salinas de onde vi­nha aquele manso cheiro de podridão que o vento arrastava por onde queria. Viam-se os esconderijos de areia, o chão de mármore diante de um museu, as ruas de terra batida por onde, sem fazer ruído — às cinco, seis da madrugada —, chegava o rapaz que abria o café Âncora d'Ouro.

Eu ouvira falar daquele café, pela primeira vez, a milhares de quilómetros de distância – em Londres. Rui Knopfli, um dos nossos grandes poetas, falara-me dele nesse almoço num restaurante tailandês, a dois passos de Belgrave Square, em que me contara como ele próprio lá chegara pela primeira vez, atravessando o canal de barco com a sua maleta cheia de amostras de medicamentos, e como ficara comovido com a luz intensa, bran­ca e ocre diante do azul profundo do mar. Quarenta anos depois eu fiz esse mesmo caminho para visitar o Âncora d'Ouro, o café onde Rui Knopfli vira Jorge de Sena escrever (numas folhas timbradas da Olympic Airways) o poe­ma «Camões na Ilha de Moçambique», não muito longe do lugar onde Tomás António Gonzaga, o poeta de Marília de Dirceu, morreria, no degredo, em 1819. Knopfli, que escreveria um dos mais be­los livros portugueses sobre África, A ilha de Próspero (juntemos-lhe O País dos Outros e Mangas Verdes com Sal), havia de reunir em O Monhé das Cobras, o seu livro de despedida, algumas das recor­dações desses seus tempos de África (os jardins da sua Lourenço Marques, as fo­tografias de Kok Nam, as ruas onde a noite não terminava, as amizades pro­fundas) - mas nenhum lugar como o café Âncora d'Ouro, no centro da ilha de Moçambique, resumia tanto esse en­contro com o Indico.

Do terraço da casa onde fiquei du­rante uma temporada via esse traçado das ruas. Na altura (há dez anos), a velha Pousada não tinha vidros nem água corrente, e a balaustrada que acompanhava o passeio marítimo por onde se chegava à Fortaleza de S. Sebastião – um belo monumento em ruínas, a aguardar re­construção – tinha sido despedaçada pela guerra, pela incúria, pelo sol e pelas tem­pestades.

O Âncora d'Ouro servia um pão de sal perfeito logo pela manhã, antes de chegarem os jogadores de damas e de dominó que vinham comentar fute­bol e beber cerveja. Havia canções de Roberto Carlos no interior, uma vendedeira de mangas sentada à porta; e, de­pois, os passeantes das arcadas - por en­tre lojas de tecidos, uma agência de via­gens, duas mercearias e um templo evangélico, miúdos que corriam de bici­cleta até à praia. O xeique Abdurrazaque Djamú, imã de uma das mesquitas, vinha sentar-se à minha mesa para me falar dos tempos dourados da ilha; outras vezes ia eu procurá-lo, ou à mesquita ou onde ou­via o ruído da sua motorizada, que era um remendo de peças de várias gerações.

A ilha de Moçambique nunca desa­pareceu das minhas memórias. Nem Djamú, nem Abassane, nem Ali Daúdo, nem Muhamad, nem outros amigos da época, que me contaram como o mar se cansara de ser azul e viera repousar entre a ilha e as margens do Mossuril. A velha estátua de Camões continua de pé, voltada para o Indico e para o ilhéu das Cobras, homenageando o Camões verdadeiro que ali viveu.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2006

dezembro 09, 2006

Futebol de mesa


O cronista foi visitar um dos clássicos frequentados por gente do futebol. Veio de lá satisfeito e promete continuar a ronda pelas bancadas.

Escrevo esta crónica depois do fim-de-semana em que houve o Sporting-Benfica deste mês de Dezembro. O Solar dos Nunes está em festa, noto-o pelos sorrisos, piadas, conversas, leitura de jornais e olhares sarcásticos. Se Joel Neto, o cronista oficial do Sporting nesta revista, fosse lá, decerto que seria chamado para a sobremesa. E era bem feito. Vê-se pêlos rostos que há ali con­fiança, apoplexias, determinação, digestivos clás­sicos e vinhos fatais.

Prezo muito os restaurantes onde há gente de futebol - não por causa do futebol, evidentemen­te, mas porque é gente que raramente vai em can­tigas, em se tratando do estômago. Em grande parte deles há cartas de vinhos colossais e os for­nos trabalham com generosidade. A cada vitória do clube da casa, o restaurante transforma-se em claque organizada, gritante, eufórica e com vontade de servir bem. Há charu­tos no ar, um perfume de confiança gastronómica em que quase tudo sai bem.

Uma das vezes sorriram-me com vontade (a águia desafiando o dragão, se me entendem), mas não me comovi; são muitos anos de combate e ganhá­mos no sábado seguinte. Voltei depois, com intui­tos vingativos, mas o Benfica tinha ganho um jogo qualquer. Havia cabrito no forno, açorda de alho, costeletas de borrego – para quê tergiversar?

Dito isto, vamos à bancada central ver como ali­nham as equipas para este confronto. Supremos de cherne e supremos de tamboril; não gosto da ideia de "supremos", mas são bons real­mente, e servidos com generosidade, polvilhados com coentros e acompanhados de gambas - eis uma ideia para começar. Bacalhaus, abundantes: ou com açorda de alho, saboroso, ou à lagareiro ou ainda à bracarense (Narcisa), sem falar de pastelinhos ou pataniscas, que já lá as provei. Bem bom, tal como o arroz de polvo com filetes, o caldo de cação ou a parrilhada de peixes, abundantes. Se ao lombo de cherne com poejos eu tirava os poejos, trata-se de mania minha, tal como ao caldo de robalo com os mesmos.

Venha a segunda parte, não nos detenhamos em minudências - até por­que, convenhamos, só nos peixes (são frescos e devem pedir-se também cozidos, "com todos") o Solar dos Nunes já marcou alguns golos. Vamos, pois, para o segundo tempo: carnes. Havia um clássico, a 'fondue', que não provei, nem o naco do lombo "à matador"; mas entretive-me com as costeletas de cordeiro, muito suculentas e simples, com o cabritinho no carvão (um pro­cesso sempre polémico de deglutir o bicho, mas enfim), rojões saborosos, e muitas carnes no car­vão: tournedó, espetada, picadinho, 'rumpsteak' (na tábua), lombinhos de porco preto, escalopes de novilho, o que quisermos. Nesta matéria, estamos diante da grandiloquência dos bons mate­riais – no Solar, a carne não é fraca, ao contrário do que diriam os teólogos. E eles cairiam, redon­dos, ao ver a carta de caça, que eu ainda reservo para futuras incursões: perdiz frita à moda de Serpa ou na cataplana, arroz de lebre, lombinhos de javali ou de veado, coelho bravo ao alhinho e outras sugestões para amantes e amadores de actividades venatórias.

Depois de uma tarte de requeijão, de um pão de rala, de uma sericaia elvense, de um torrão de Évora e de uma encharcada, tudo de ressonâncias alentejanas (o requeijão também...), consultei com os olhos a magnânima biblioteca de digesti­vos, controlando aguardentes, conhaques e 'whiskies'. Estavam lá todos, alinhados e rodando de mesa em mesa. Isto sim, pareceu-me ambiente de futebol.

Hei-de voltar, nem que seja no final do campeo­nato. Para os confortar, evidentemente, que eu sou uma pessoa generosa.

À LUPA
Vinhos: * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 120
Vinhos brancos: 50
Portos & Madeiras:12
Uísques: 32
Aguardentes &Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 28 euros

RESTAURANTE SOLAR DOS NUNES
Rua dos Lusíadas. N° 70
1300 - Lisboa
Telefone: 21 364 73 59
Encerra aos domingos.
Está aberto até às O2hOO

in Revista Notícias Sábado – 9 Dezembro 2006

Agora, que descobriram Quaresma

1. Na verdade, como estava demonstrado antes, a entra­da das equipas portuguesas no "negócio europeu" está re­servada a poucas. Neste caso, ao F. C. Porto, que nem começou da melhor maneira – uma campanha iniciada com um Jesualdo que tenta­va livrar-se do molho holan­dês que Adriaanse deixara no Dragão. Era bom que Sporting e Benfica tivessem pas­sado, sim; mas a Champions é para campeões.

2. É normal. Sabe-se, agora, lendo os jornais, que Quares­ma ressuscitou – mesmo mui­to antes de ter fenecido. Os idólatras nacionais, muito ocupados a inventarem estre­las fabricadas em dois jogos, nutriam por Quaresma uma antipatia que rondava o pe­queno e mal disfarçado ra­cismo – murmuravam contra o seu feitio, porque, no caso de Quaresma, que é cigano, ele tinha mais a provar do que os outros. Que fosse pre­to, seria ainda absolvido, mas havia o feitio, esse peca­do; nada como lançar a des­confiança sobre o número sete mais talentoso a jogar no futebol português. Nunca vi tamanha ginástica para encontrar defeitos em Ricardo Quaresma; se o F. C. Porto sofria de "Andersondependência", era má opção de­dicar-se à "Quaresmodependência", porque o miúdo era egoísta, individualista, não trabalharia para a equipa. Jesualdo pô-lo a trabalhar para a equipa como antes ele já trabalhara; pô-lo a sorrir depois de cada golo; e Quaresma corria para Vítor Baía, mostran­do a alegria de um miúdo, de um talento raro. Para entrar na selecção, tem o caminho quase cortado; Scolari inventará obstáculos e vai lan­çá-lo apenas se esgotar as hipó­teses de ganhar com os seus sa­cristães – se queimar Quaresma não faz mal. Mas o miúdo está aí; duas bolas ao poste contra o Arsenal provo­caram um ruído absurdo nessa má-consciência nacional dos comentadores. Certo que bola ao poste é, naturalmente, bola mal chutada – porque convém que ela entre. Mas entrará, há-de en­trar. Nem que seja para que Qua­resma se possa vingar do peque­no racismo lusitano.

3. O caso Nuno Assis e os seus desenvolvimentos mostram que, como convém, ninguém pode estar acima da lei. Doping é doping, até à última letra da palavra, que não honra ninguém – mas que se perdoa a um atleta, pelo menos por princípio. A manigância de­cretada pela Federação para ar­quivar o "caso Nuno Assis" contrasta com a mão pesada revela­da noutros casos. "A Bola" de on­tem gritava "Vingança!". É ver­dade. O prejudicado por estas manigâncias é Nuno Assis. Ele que procure saber porquê.

4. O Sporting entrou numa que­bra de ritmo, que já se esperava. Dezembro é a primeira grande avaliação e o Sporting, que ain­da não conseguiu construir uma equipa-tipo, mudando de sema­na para semana, revela algumas fragilidades tonitruantes, a principal das quais é a sua virtude essencial: a juventude da equipa. Curiosamente, Fernando Santos surpreendeu: onde se esperava uma equipa de trincos, construí­da à semelhança do que ele pró­prio fez no F. C. Porto e no Spor­ting, o Benfica tem atacado - embora não pelos seus atacan­tes. Katsouranis tem sido uma peça essencial, Simão mantém o ritmo. O próximo exame é no Carnaval. Longe, ou perto, vá o agoiro.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 9 Dezembro 2006

dezembro 04, 2006

Fazer-nos bem a todo o custo

Seria injusto proceder a juízos e processos de intenção contra o ministro Augusto Santos Silva a propósito das medidas que o governo tenciona tomar para a comunicação social. Como frequentemente se descobre, as televisões têm um poder excessivo sobre todos nós. Não é por culpa das televisões; é por nossa culpa e é por culpa das elites que deveriam ter pensado duas vezes antes de se associarem à televisão da canalha. E a televisão da canalha está aí todos os dias.

Não é nenhum dos canais em especial - é a televisão e o seu poder de transformar em agressão e abjecção tudo ou quase tudo aquilo em que toca. Também é verdade que podemos ser injustos quando se toma a parte pelo todo; a televisão é um bem essencial para a nossa civilização, tanto quanto uma ameaça. Falar sobre ela é caminhar sobre o fio da navalha todo o discurso sobre a televisão está marcado pela tentação da censura e podemos admiti-lo à vontade. É normal que assim seja depois de ver programas abjectos, de ver os nossos filhos manipulados por telenovelas grotescas, de assistir a telejornais tendenciosos, de vermos a invasão da esfera pública pela pornografia, de ouvir erros de gramática, de ouvir jornalistas ignorantes, de ver "figuras públicas" servirem-se do ecrã - enfim, de assistir à transformação da televisão em janela para o pior que há na vida inteira. Nessas condições, qualquer um de nós sente uma pequena inclinação para a censura.

É certo que podemos censurar em casa, no recato das coisas domésticas. Por exemplo a novela "Morangos com Açúcar" mostra uma jovem palerma que telefona a alguém a pedir droga porque os pais vão divorciar-se. Teremos de ser compreensivos? Ou, como pedem os pedagogos, reuniremos a família e tentaremos explicar que aquilo é um exagero? Às dez da manhã, uma televisão mostra a promoção de um filme para maiores de 18 anos, justamente quando a minha filha vê um programa infantil. Fazer o quê? E os anúncios agressivos e pobres de espírito? E a substituição, no cabo, do excelente GNT pela triste e miserável Rede Record?

Epifenómenos como o "Bar da TV", "A Cadeira do Poder", as agressões do Big Brother, o "arrastão de Carcavelos", os directos na Cova da Moura ou no Aquaparque, mostraram como a televisão é um instrumento que cai sempre nas piores mãos. Daí que existam sempre tentativas de moderar o seu poder e de ditar leis especiais que a obriguem a sujeitar-se ao poder político (a ERC é um braço do poder político, convenhamos) ou à vontade de "gente mais esclarecida". Mas a televisão da canalha, a televisão abjecta está aí independentemente da vontade do ministro - e não se remove por decreto.

Infelizmente, as leis especiais que contrariam a lei geral são sempre perigosas. Certamente que o ministro Santos Silva não quer ser censor. Ele é contra os golpes de estado constitucionais (tanto ele nos alertou contra o golpe de estado que seria a eleição de Cavaco). Acredito na sua boa fé. E até, vamos lá (estou a ser sincero, pese a piada sobre Cavaco), na sua generosidade. Infelizmente, nestes casos, uma coisa leva à outra.

Ele quer fazer-nos bem a todo o custo. É uma tarefa meritória. Infelizmente, e ainda que o Dr. Azeredo Lopes (presidente da ERC) seja, além de uma pessoa de bem, um nome acima de qualquer suspeita em matéria de censura, eu preferiria que aceitassem as reservas e as críticas - e as ponderassem. O pior que há é gente esclarecida que quer fazer-nos bem a todo o custo. E acredite, Augusto Santos Silva (estou a dirigir-me ao sociólogo e não ao ministro), há exemplos bastantes de censura que começou por vontade de nos fazer bem a todo o custo.

in Jornal de Notícias - 4 Dezembro 2006

dezembro 02, 2006

Comida lá de casa


Em Campo de Ourique, Lisboa, um restaurante familiar, pequeno, com sabores domésticos e simples. Onde tudo é feito à vista do nosso apetite: A Trempe

Considerando as coisas como elas são: mais de metade das doenças, disfunções, perturbações, maus hábitos e falhas do chamado aparelho digestivo devem-se ao facto de as pessoas recorrerem ao "mau almoço". Não me alongarei na matéria.

Mesmo o facto de escrever sobre restaurantes há alguns anos não me faz ignorar o essencial da minha actividade digestiva: eu gosto, realmente, é de comer em casa. Confesso que, muitas vezes, aguardo o final do dia para poder regressar a casa – e jantar. Jantar em paz. Jantar coisas insuportavelmente domésticas, simples, banais, fáceis. E mágicas, afinal. Sou um pequeno-burguês sem remissão, na verdade. Gosto de coisas banais como essas: jantar em casa, cozinhar em casa, tomar o café enquanto o Telejornal tardio me indispõe contra o mundo (ou seja, os clubes de futebol, os ministros, as oposições, os comentadores e a meteorologia), preparar a bebida da noite, pensar em adormecer ou em trabalhos tardios.

Glórias das coisas pequeno-burguesas, "comer em casa" é um acto de resistência contra a banalização do "comer fora", que deveria ser uma festa, um acontecimento e, vá lá, um luxo. Não é mais assim. Hoje falo-vos, por isso, do A Trempe, um restaurante "doméstico", familiar (pai, mãe, filho, filha), tranqui­lo e pequeno – na doméstica e casual Campo de Ourique, o bairro do senhor Fernando Nogueira Pessoa, situado exactamente em frente da casa onde o Poeta viveu os últimos vinte anos da sua vida. Há ali ressonâncias alentejanas, um rasto de Alentejo (garrafeira essencialmente alentejana, aliás, onde eu insisto sempre para incluir os clássicos do Douro e do Dão) - mas perdoa-se.

Na mesa há sempre um prato de salada (alface, tomate, cebola, pimentos, azeite, sal e vinagre) em vez do pacotinho de manteiga. Obrigado por isso, ó Trempe. Juntamente com a salada, há chamuças estaladiças e bem fritas, rodelinhas de fumados e pão. Essencial. Não me alongarei no capítulo dos peixes frescos – são frescos (o cherne, a garoupa, o peixe-espada, o lin­guado) e servidos a preceito: batata, legumes bem cozinhados, azeite bom. Reclamo a superioridade moral e ética das favas da casa: o tachinho é bem ser­vido, com enchidos – mas à parte vêm não apenas a salada mas a travessinha de carnes fritas ou grelha­das. O cozido alentejano (quando o há) é muito bom, com grão resplandecente e os legumes da ordem; os secretos são muito bem temperados e vêm com esparregado verdadeiro – há clientes da casa verdadeiramente viciados; o caril de camarão é adequadíssimo, cremoso, delicado; há, periodicamente, uma feijoada "à transmontana" de efeitos perigosos, muito completa; uns escalopes de vitela, na brasa, escorregadios e saborosos, tenrinhos; pataniscas de bacalhau com arroz de feijão muito, muito acertado, igualmente cremoso, caseiro.

A comida é "a de todos os dias", numa lista curta e contida, onde há baca­lhaus, peixes frescos, carnes grelhadas disponíveis em permanência – só os clientes "de todos os dias" têm acesso aos pratos especiais, que têm dias certos (pergunte pelas favas!), à excepção das magníficas sardi­nhas que fazem toda a temporada da Primavera & Verão em regime de rodízio: uma pessoa pede sardi­nhas, vem um pratinho, depois esgota-se aquele e vem outro, por aí fora – com saladinha de pimentos e alface, mais do que apropriada. Sabe qual o prato que mais espero? Além da pescada cozida com todos (minha obsessão fatal), é a vitela à moda de Vigo, ou viguesa: tiras de vitela estufada, tenrinha, em molho verdadeiro, com arroz oriental perfumado e umas batatas (em tranches largas e generosas, quase em talhadas) fritas na hora.

Se a isto acrescentarmos a sericaia com ameixas de Elvas, estamos falados - às vezes é como comer em casa. O serviço (do Flávio e da Rute) é informal, simpático, sorridente, afável e generoso. Às vezes trazem o frasquinho de flor de sal, ou pimentinhos de salmoura e picante, ou torresminhos quentes, ou apenas a sua boa disposição. Gosto bastante. Às vezes aparecem apetites famosos: escritores, cineastas (António Pedro Vasconcelos, por exemplo), o eng.a Murteira Nabo e empresá­rios, gente de embaixadas. É um segredo mantido em segredo. Ou era, até aqui.

À LUPA
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 92
Vinhos brancos: 34
Vinhos verdes: 5
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 10
Aguardentes & Conhaques: 12
Champanhes & Espumantes: 1

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área não fumadores: não
Reserva: muito conveniente ao jantar
Preço médio: 15 euros

RESTAURANTE A TREMPE
R. Coelha da Rocha. M/13
1250-087 Lisboa
Tel: 21 3909118
Encerra ao domingo

in Revista Notícias Sábado – 2 Dezembro 2006

Faz parte do espectáculo

1. O Sporting-Benfica já não é o que era. Como dizem os "misters", é só mais um jogo, e Fernando Santos até insistiu em que não era decisivo. Não era. Se o Benfica perdesse, fi­cava a boa distância dos vizi­nhos da Segunda Circular; se o Sporting perdesse, o F. C. Porto podia estender mais a fita métrica a separá-lo do se­gundo lugar. Paulo Bento comportou-se com decência: assumiu que o Sporting era fa­vorito. Fez bem; isso dá ânimo e deita por terra aqueles trei­nadores que estão sempre a fazer o papel de coitadinhos, muito humildes e pobrezi­nhos. Gosto de treinadores ar­rogantes e não me importo de ouvir Manuel José a esgani­çar-se, no Egipto, a dizer que é o melhor do Mundo. Faz parte do espectáculo. O Benfica ga­nhou. Tirem as conclusões.

2. Dito isto, o jogo foi bom e o Benfica provou que fez bom fu­tebol a partir do terceiro minu­to, quando Ricardo Rocha mar­cou. O Sporting sofreu de uma doença chamada Sporting: jo­garam como miúdos queixinhas, de beicinho e aceitando o destino.

3. A polícia fez buscas no está­dio do Benfica e parece que en­controu o que não devia encon­trar: armas (e algumas drogas na casa de um membro da claque), entre outras coisas ile­gais. O fenómeno não é fenó­meno e não é novo, sequer, por mais que se inclinem para este tom – com ares de sociólogo - os dirigentes desportivos. As claques são fundamentais, fa­zem parte da aparelhagem fes­tiva dos jogos. Há amigos meus e comentadores encartados que têm sempre armado o seu dis­curso contra as claques e que as indicam como principal inimigo do espectáculo. Não são. Fazem parte do espectáculo, como as lu­zes, os golos, os falhanços e as vaias. Infelizmente, não é possível exigir um atestado de bom com­portamento e de elevada inteli­gência a cada um dos membros das claques. Mas é possível obri­gá-los a cumprir a lei e a puni-los por desacatos, assaltos, crimes como o incitamento ao racismo ou o consumo e a distribuição de drogas ilegais. Nenhum clube pode encobrir esse enevoado de más re­lações. Os clubes também deviam precaver-se. Mas uma cousa é cer­ta, se me entendem: cada clube tem as claques que tem. Faz parte do espectáculo.

4. Tenho duas campanhas pes­soais, até ao final da época. Uma, em defesa de Cristiano Ronaldo contra as manigâncias e os maus humores de Scolari, o amargo. A outra consiste em relembrar ao F.C. Porto que Diego joga no Werder Bremen. No primeiro caso, Scolari teve de recorrer ao "Benuron" de novo: o miúdo marcou novo golo ao serviço do Manchester. Ataca-o, Scolari, ataca-o. Ataca-o, que ele marca. Faz parte do espectáculo.

5. No segundo caso, Diego foi de novo distinguido como uma peça essencial no Werder Bremen. O que não servia no Dra­gão, serve para os teutões. Mas, claro, eles não sabem jogar à bola. Eu obrigava Co Adriaanse a indemnizar os adeptos do F. C. Porto.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 2 Dezembro 2006