dezembro 02, 2006

Comida lá de casa


Em Campo de Ourique, Lisboa, um restaurante familiar, pequeno, com sabores domésticos e simples. Onde tudo é feito à vista do nosso apetite: A Trempe

Considerando as coisas como elas são: mais de metade das doenças, disfunções, perturbações, maus hábitos e falhas do chamado aparelho digestivo devem-se ao facto de as pessoas recorrerem ao "mau almoço". Não me alongarei na matéria.

Mesmo o facto de escrever sobre restaurantes há alguns anos não me faz ignorar o essencial da minha actividade digestiva: eu gosto, realmente, é de comer em casa. Confesso que, muitas vezes, aguardo o final do dia para poder regressar a casa – e jantar. Jantar em paz. Jantar coisas insuportavelmente domésticas, simples, banais, fáceis. E mágicas, afinal. Sou um pequeno-burguês sem remissão, na verdade. Gosto de coisas banais como essas: jantar em casa, cozinhar em casa, tomar o café enquanto o Telejornal tardio me indispõe contra o mundo (ou seja, os clubes de futebol, os ministros, as oposições, os comentadores e a meteorologia), preparar a bebida da noite, pensar em adormecer ou em trabalhos tardios.

Glórias das coisas pequeno-burguesas, "comer em casa" é um acto de resistência contra a banalização do "comer fora", que deveria ser uma festa, um acontecimento e, vá lá, um luxo. Não é mais assim. Hoje falo-vos, por isso, do A Trempe, um restaurante "doméstico", familiar (pai, mãe, filho, filha), tranqui­lo e pequeno – na doméstica e casual Campo de Ourique, o bairro do senhor Fernando Nogueira Pessoa, situado exactamente em frente da casa onde o Poeta viveu os últimos vinte anos da sua vida. Há ali ressonâncias alentejanas, um rasto de Alentejo (garrafeira essencialmente alentejana, aliás, onde eu insisto sempre para incluir os clássicos do Douro e do Dão) - mas perdoa-se.

Na mesa há sempre um prato de salada (alface, tomate, cebola, pimentos, azeite, sal e vinagre) em vez do pacotinho de manteiga. Obrigado por isso, ó Trempe. Juntamente com a salada, há chamuças estaladiças e bem fritas, rodelinhas de fumados e pão. Essencial. Não me alongarei no capítulo dos peixes frescos – são frescos (o cherne, a garoupa, o peixe-espada, o lin­guado) e servidos a preceito: batata, legumes bem cozinhados, azeite bom. Reclamo a superioridade moral e ética das favas da casa: o tachinho é bem ser­vido, com enchidos – mas à parte vêm não apenas a salada mas a travessinha de carnes fritas ou grelha­das. O cozido alentejano (quando o há) é muito bom, com grão resplandecente e os legumes da ordem; os secretos são muito bem temperados e vêm com esparregado verdadeiro – há clientes da casa verdadeiramente viciados; o caril de camarão é adequadíssimo, cremoso, delicado; há, periodicamente, uma feijoada "à transmontana" de efeitos perigosos, muito completa; uns escalopes de vitela, na brasa, escorregadios e saborosos, tenrinhos; pataniscas de bacalhau com arroz de feijão muito, muito acertado, igualmente cremoso, caseiro.

A comida é "a de todos os dias", numa lista curta e contida, onde há baca­lhaus, peixes frescos, carnes grelhadas disponíveis em permanência – só os clientes "de todos os dias" têm acesso aos pratos especiais, que têm dias certos (pergunte pelas favas!), à excepção das magníficas sardi­nhas que fazem toda a temporada da Primavera & Verão em regime de rodízio: uma pessoa pede sardi­nhas, vem um pratinho, depois esgota-se aquele e vem outro, por aí fora – com saladinha de pimentos e alface, mais do que apropriada. Sabe qual o prato que mais espero? Além da pescada cozida com todos (minha obsessão fatal), é a vitela à moda de Vigo, ou viguesa: tiras de vitela estufada, tenrinha, em molho verdadeiro, com arroz oriental perfumado e umas batatas (em tranches largas e generosas, quase em talhadas) fritas na hora.

Se a isto acrescentarmos a sericaia com ameixas de Elvas, estamos falados - às vezes é como comer em casa. O serviço (do Flávio e da Rute) é informal, simpático, sorridente, afável e generoso. Às vezes trazem o frasquinho de flor de sal, ou pimentinhos de salmoura e picante, ou torresminhos quentes, ou apenas a sua boa disposição. Gosto bastante. Às vezes aparecem apetites famosos: escritores, cineastas (António Pedro Vasconcelos, por exemplo), o eng.a Murteira Nabo e empresá­rios, gente de embaixadas. É um segredo mantido em segredo. Ou era, até aqui.

À LUPA
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 92
Vinhos brancos: 34
Vinhos verdes: 5
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 10
Aguardentes & Conhaques: 12
Champanhes & Espumantes: 1

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área não fumadores: não
Reserva: muito conveniente ao jantar
Preço médio: 15 euros

RESTAURANTE A TREMPE
R. Coelha da Rocha. M/13
1250-087 Lisboa
Tel: 21 3909118
Encerra ao domingo

in Revista Notícias Sábado – 2 Dezembro 2006