Fazer-nos bem a todo o custo
Seria injusto proceder a juízos e processos de intenção contra o ministro Augusto Santos Silva a propósito das medidas que o governo tenciona tomar para a comunicação social. Como frequentemente se descobre, as televisões têm um poder excessivo sobre todos nós. Não é por culpa das televisões; é por nossa culpa e é por culpa das elites que deveriam ter pensado duas vezes antes de se associarem à televisão da canalha. E a televisão da canalha está aí todos os dias.
Não é nenhum dos canais em especial - é a televisão e o seu poder de transformar em agressão e abjecção tudo ou quase tudo aquilo em que toca. Também é verdade que podemos ser injustos quando se toma a parte pelo todo; a televisão é um bem essencial para a nossa civilização, tanto quanto uma ameaça. Falar sobre ela é caminhar sobre o fio da navalha todo o discurso sobre a televisão está marcado pela tentação da censura e podemos admiti-lo à vontade. É normal que assim seja depois de ver programas abjectos, de ver os nossos filhos manipulados por telenovelas grotescas, de assistir a telejornais tendenciosos, de vermos a invasão da esfera pública pela pornografia, de ouvir erros de gramática, de ouvir jornalistas ignorantes, de ver "figuras públicas" servirem-se do ecrã - enfim, de assistir à transformação da televisão em janela para o pior que há na vida inteira. Nessas condições, qualquer um de nós sente uma pequena inclinação para a censura.
É certo que podemos censurar em casa, no recato das coisas domésticas. Por exemplo a novela "Morangos com Açúcar" mostra uma jovem palerma que telefona a alguém a pedir droga porque os pais vão divorciar-se. Teremos de ser compreensivos? Ou, como pedem os pedagogos, reuniremos a família e tentaremos explicar que aquilo é um exagero? Às dez da manhã, uma televisão mostra a promoção de um filme para maiores de 18 anos, justamente quando a minha filha vê um programa infantil. Fazer o quê? E os anúncios agressivos e pobres de espírito? E a substituição, no cabo, do excelente GNT pela triste e miserável Rede Record?
Epifenómenos como o "Bar da TV", "A Cadeira do Poder", as agressões do Big Brother, o "arrastão de Carcavelos", os directos na Cova da Moura ou no Aquaparque, mostraram como a televisão é um instrumento que cai sempre nas piores mãos. Daí que existam sempre tentativas de moderar o seu poder e de ditar leis especiais que a obriguem a sujeitar-se ao poder político (a ERC é um braço do poder político, convenhamos) ou à vontade de "gente mais esclarecida". Mas a televisão da canalha, a televisão abjecta está aí independentemente da vontade do ministro - e não se remove por decreto.
Infelizmente, as leis especiais que contrariam a lei geral são sempre perigosas. Certamente que o ministro Santos Silva não quer ser censor. Ele é contra os golpes de estado constitucionais (tanto ele nos alertou contra o golpe de estado que seria a eleição de Cavaco). Acredito na sua boa fé. E até, vamos lá (estou a ser sincero, pese a piada sobre Cavaco), na sua generosidade. Infelizmente, nestes casos, uma coisa leva à outra.
Ele quer fazer-nos bem a todo o custo. É uma tarefa meritória. Infelizmente, e ainda que o Dr. Azeredo Lopes (presidente da ERC) seja, além de uma pessoa de bem, um nome acima de qualquer suspeita em matéria de censura, eu preferiria que aceitassem as reservas e as críticas - e as ponderassem. O pior que há é gente esclarecida que quer fazer-nos bem a todo o custo. E acredite, Augusto Santos Silva (estou a dirigir-me ao sociólogo e não ao ministro), há exemplos bastantes de censura que começou por vontade de nos fazer bem a todo o custo.
in Jornal de Notícias - 4 Dezembro 2006
Não é nenhum dos canais em especial - é a televisão e o seu poder de transformar em agressão e abjecção tudo ou quase tudo aquilo em que toca. Também é verdade que podemos ser injustos quando se toma a parte pelo todo; a televisão é um bem essencial para a nossa civilização, tanto quanto uma ameaça. Falar sobre ela é caminhar sobre o fio da navalha todo o discurso sobre a televisão está marcado pela tentação da censura e podemos admiti-lo à vontade. É normal que assim seja depois de ver programas abjectos, de ver os nossos filhos manipulados por telenovelas grotescas, de assistir a telejornais tendenciosos, de vermos a invasão da esfera pública pela pornografia, de ouvir erros de gramática, de ouvir jornalistas ignorantes, de ver "figuras públicas" servirem-se do ecrã - enfim, de assistir à transformação da televisão em janela para o pior que há na vida inteira. Nessas condições, qualquer um de nós sente uma pequena inclinação para a censura.
É certo que podemos censurar em casa, no recato das coisas domésticas. Por exemplo a novela "Morangos com Açúcar" mostra uma jovem palerma que telefona a alguém a pedir droga porque os pais vão divorciar-se. Teremos de ser compreensivos? Ou, como pedem os pedagogos, reuniremos a família e tentaremos explicar que aquilo é um exagero? Às dez da manhã, uma televisão mostra a promoção de um filme para maiores de 18 anos, justamente quando a minha filha vê um programa infantil. Fazer o quê? E os anúncios agressivos e pobres de espírito? E a substituição, no cabo, do excelente GNT pela triste e miserável Rede Record?
Epifenómenos como o "Bar da TV", "A Cadeira do Poder", as agressões do Big Brother, o "arrastão de Carcavelos", os directos na Cova da Moura ou no Aquaparque, mostraram como a televisão é um instrumento que cai sempre nas piores mãos. Daí que existam sempre tentativas de moderar o seu poder e de ditar leis especiais que a obriguem a sujeitar-se ao poder político (a ERC é um braço do poder político, convenhamos) ou à vontade de "gente mais esclarecida". Mas a televisão da canalha, a televisão abjecta está aí independentemente da vontade do ministro - e não se remove por decreto.
Infelizmente, as leis especiais que contrariam a lei geral são sempre perigosas. Certamente que o ministro Santos Silva não quer ser censor. Ele é contra os golpes de estado constitucionais (tanto ele nos alertou contra o golpe de estado que seria a eleição de Cavaco). Acredito na sua boa fé. E até, vamos lá (estou a ser sincero, pese a piada sobre Cavaco), na sua generosidade. Infelizmente, nestes casos, uma coisa leva à outra.
Ele quer fazer-nos bem a todo o custo. É uma tarefa meritória. Infelizmente, e ainda que o Dr. Azeredo Lopes (presidente da ERC) seja, além de uma pessoa de bem, um nome acima de qualquer suspeita em matéria de censura, eu preferiria que aceitassem as reservas e as críticas - e as ponderassem. O pior que há é gente esclarecida que quer fazer-nos bem a todo o custo. E acredite, Augusto Santos Silva (estou a dirigir-me ao sociólogo e não ao ministro), há exemplos bastantes de censura que começou por vontade de nos fazer bem a todo o custo.
in Jornal de Notícias - 4 Dezembro 2006
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