dezembro 30, 2006

Luta de classes em Lisboa


O cronista foi ao XL e voltou. Gostou do que comeu, acha que os bifes eram bons e ficou com umas dúvidas.

Alguns dos meus conhecidos vão muito ao XL e regalam-se, gabam-lhe o aprumo, a decoração e os bifes e souflés. Parece-me bem. Sempre gostei de gente satisfeita, embora a designação seja deficiente: lembra aquela gente empertigada, muito agradada com a vida, sim, contente de se mostrar alegre e refastelada. Não é pecado, claro; mas aborrece-me – não por eles, mas pela vida.

Alguns dos meus amigos vão de vez em quando ao XL e trazem-me notícias, regressam de estômago aveludado, uma parte da sua satisfação preenche-me. Há restaurantes sobre os quais não vale a pena dizer muito – nem pouco. Eles existem, as suas portas encaminham-nos para um mundo gastronómico onde quase nada merece críticas, onde quase nada nos impressiona mas onde o que nos impressiona não devia impressionar. O XL é bom. O XL é um dos bons restaurantes de Lisboa. E, no entanto, ele é um caso que tem pouco a ver com a alta gastronomia propriamente dita, mas muito mais com o ambiente, a decoração, a porta semi-encerrada diante de uma das esquinas do Parlamento, os pratos que aveludam o estômago e, perdoem-me ir buscar este conceito tão antigo, com a luta de classes. Refiro-me às classes altas entre si – a A contra a B, a B contra a A, em recontros por vezes fatais. Eu sou do tempo em que o XL tinha como grande novidade os seus bifes, os seus pedaços de foie gras e tutano (oh, tempo maravilhoso do tutano) e a “potato skin” fritinha, que fazia as delícias dos consumidores com menos de quarenta anos nessa Lisboa burguesa de então, farta de comer bem nos restaurantes dos pais e avós – mas que precisava de juntar os prazeres do estômago pouco educado com o loiro acetinado das surfistas (e windsurfistas, muito mais deliciosas) de meia idade, e a ideia de que podia haver velinhas acesas nas mesas. Elas lá estão, as velinhas, em candelabros maiores; eles lá estão, os bifes variados de boa carne e de corte razoável com os seus molhos (preparados para a média burguesia que não gosta de nervo, de gordurinha ou de peça inteira, e que se recusa a fazer molhos em casa); ele lá está, o souflé elegante, fascinante, evocando o “jantar a dois” com um bom vinho de uma lista muito, muito acima do “razoável” – tocando as franjas do “quase muito bom”, com boas incursões espanholas.

Tudo isso vai bem e lamento que nem toda a gente se comova diante dos ovos Viridiana e ache as magníficas gambazinhas panadas com arroz de tomate uma invenção recente.
Cumpre-me, para ser sincero, dizer o seguinte: os bifes são bons. Ponto. Os camarões são bons. O camembert panado lembra-me o “camembert rebozado” preparado por Biscuter para o melhor detective galego-catalão a trabalhar em Barcelona, Pepe Carvalho. O “foie gras” é bom e devia merecer mais dedicação da cozinha e da clientela. As batatas fritas são batatas fritas.
Eu, nestes restaurantes, não levo bloco de notas – limito-me a participar. Por exemplo, participo naquele jogo que se estabelece à entrada, quando aparece um senhor a perguntar se “têm reserva”; sabe-se que é necessária a reserva, evidentemente, mas que a primeira pergunta seja feita com o ar de quem está a vigiar a entrada num exclusivo clube de golfe na Florida, já me parece estranho, porque estamos na Calçada da Estrela e o XL não é o Le Bistrot de Nova Iorque. Tanto mais que, no Le Bistrot, tanto me dão a mesa a mim como a Robert de Niro, desde que eu tenha feito reserva e Robert de Niro também (eu até lhe dava lugar à minha mesa, porque ele não fala assim tanto, e seria uma conversa agradável). No XL pode acontecer que um “famoso” tenha precedência sobre um cidadão comum, o que me parece original. Aos turistas estrangeiros, aliás, permitem-se-lhes coisas estranhas, como beberem demais, fazerem barulho demais, com o argumento, explicado por um criado, de que “eles gastam muito dinheiro” e pagam bem pelas garrafas. Se é assim, estamos falados.

Portanto, nota vá lá, positiva, para o cardápio equilibrado e para a carta de vinhos; quanto ao serviço, acho que toma certas liberdades, considerando o que se paga por uma noite bem passada a comer bifes.

À lupa
Carta de vinhos: * * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * *
Acolhimento: *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 41
Vinhos tintos: 135
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 30
Espumantes e champanhes: 12

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: difícil na zona, mas com serviço próprio
Adequado levar crianças: não
Área de não-fumadores: não
Reserva: imprescindível
Preço médio: 45 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

XL
Calçada da Estrela, 57
Lisboa
Tel: 213 956 118Encerra aos domingos.

in Revista Notícias Sábado – 30 Dezembro 2006