A grande Ilha de África
Era um terraço, o mais belo terraço que já vi em África. Vazio, rectangular, limpo, aberto para a noite e para a chuva. Viam-se os minaretes das mesquitas, a cruz da grande igreja, os coqueiros das ruas, as arcadas das praças; e, mal chegava a madrugada, as luzes dos carros que atravessavam as estradas do litoral, as estátuas abandonadas junto do passeio marítimo, exemplos de arte nova totalmente deslocados no tempo, no espaço, no mapa, na história. Viam-se os camiões do outro lado do canal, na pequena estrada junto das salinas de onde vinha aquele manso cheiro de podridão que o vento arrastava por onde queria. Viam-se os esconderijos de areia, o chão de mármore diante de um museu, as ruas de terra batida por onde, sem fazer ruído — às cinco, seis da madrugada —, chegava o rapaz que abria o café Âncora d'Ouro.
Eu ouvira falar daquele café, pela primeira vez, a milhares de quilómetros de distância – em Londres. Rui Knopfli, um dos nossos grandes poetas, falara-me dele nesse almoço num restaurante tailandês, a dois passos de Belgrave Square, em que me contara como ele próprio lá chegara pela primeira vez, atravessando o canal de barco com a sua maleta cheia de amostras de medicamentos, e como ficara comovido com a luz intensa, branca e ocre diante do azul profundo do mar. Quarenta anos depois eu fiz esse mesmo caminho para visitar o Âncora d'Ouro, o café onde Rui Knopfli vira Jorge de Sena escrever (numas folhas timbradas da Olympic Airways) o poema «Camões na Ilha de Moçambique», não muito longe do lugar onde Tomás António Gonzaga, o poeta de Marília de Dirceu, morreria, no degredo, em 1819. Knopfli, que escreveria um dos mais belos livros portugueses sobre África, A ilha de Próspero (juntemos-lhe O País dos Outros e Mangas Verdes com Sal), havia de reunir em O Monhé das Cobras, o seu livro de despedida, algumas das recordações desses seus tempos de África (os jardins da sua Lourenço Marques, as fotografias de Kok Nam, as ruas onde a noite não terminava, as amizades profundas) - mas nenhum lugar como o café Âncora d'Ouro, no centro da ilha de Moçambique, resumia tanto esse encontro com o Indico.
Do terraço da casa onde fiquei durante uma temporada via esse traçado das ruas. Na altura (há dez anos), a velha Pousada não tinha vidros nem água corrente, e a balaustrada que acompanhava o passeio marítimo por onde se chegava à Fortaleza de S. Sebastião – um belo monumento em ruínas, a aguardar reconstrução – tinha sido despedaçada pela guerra, pela incúria, pelo sol e pelas tempestades.
O Âncora d'Ouro servia um pão de sal perfeito logo pela manhã, antes de chegarem os jogadores de damas e de dominó que vinham comentar futebol e beber cerveja. Havia canções de Roberto Carlos no interior, uma vendedeira de mangas sentada à porta; e, depois, os passeantes das arcadas - por entre lojas de tecidos, uma agência de viagens, duas mercearias e um templo evangélico, miúdos que corriam de bicicleta até à praia. O xeique Abdurrazaque Djamú, imã de uma das mesquitas, vinha sentar-se à minha mesa para me falar dos tempos dourados da ilha; outras vezes ia eu procurá-lo, ou à mesquita ou onde ouvia o ruído da sua motorizada, que era um remendo de peças de várias gerações.
A ilha de Moçambique nunca desapareceu das minhas memórias. Nem Djamú, nem Abassane, nem Ali Daúdo, nem Muhamad, nem outros amigos da época, que me contaram como o mar se cansara de ser azul e viera repousar entre a ilha e as margens do Mossuril. A velha estátua de Camões continua de pé, voltada para o Indico e para o ilhéu das Cobras, homenageando o Camões verdadeiro que ali viveu.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2006
Eu ouvira falar daquele café, pela primeira vez, a milhares de quilómetros de distância – em Londres. Rui Knopfli, um dos nossos grandes poetas, falara-me dele nesse almoço num restaurante tailandês, a dois passos de Belgrave Square, em que me contara como ele próprio lá chegara pela primeira vez, atravessando o canal de barco com a sua maleta cheia de amostras de medicamentos, e como ficara comovido com a luz intensa, branca e ocre diante do azul profundo do mar. Quarenta anos depois eu fiz esse mesmo caminho para visitar o Âncora d'Ouro, o café onde Rui Knopfli vira Jorge de Sena escrever (numas folhas timbradas da Olympic Airways) o poema «Camões na Ilha de Moçambique», não muito longe do lugar onde Tomás António Gonzaga, o poeta de Marília de Dirceu, morreria, no degredo, em 1819. Knopfli, que escreveria um dos mais belos livros portugueses sobre África, A ilha de Próspero (juntemos-lhe O País dos Outros e Mangas Verdes com Sal), havia de reunir em O Monhé das Cobras, o seu livro de despedida, algumas das recordações desses seus tempos de África (os jardins da sua Lourenço Marques, as fotografias de Kok Nam, as ruas onde a noite não terminava, as amizades profundas) - mas nenhum lugar como o café Âncora d'Ouro, no centro da ilha de Moçambique, resumia tanto esse encontro com o Indico.
Do terraço da casa onde fiquei durante uma temporada via esse traçado das ruas. Na altura (há dez anos), a velha Pousada não tinha vidros nem água corrente, e a balaustrada que acompanhava o passeio marítimo por onde se chegava à Fortaleza de S. Sebastião – um belo monumento em ruínas, a aguardar reconstrução – tinha sido despedaçada pela guerra, pela incúria, pelo sol e pelas tempestades.
O Âncora d'Ouro servia um pão de sal perfeito logo pela manhã, antes de chegarem os jogadores de damas e de dominó que vinham comentar futebol e beber cerveja. Havia canções de Roberto Carlos no interior, uma vendedeira de mangas sentada à porta; e, depois, os passeantes das arcadas - por entre lojas de tecidos, uma agência de viagens, duas mercearias e um templo evangélico, miúdos que corriam de bicicleta até à praia. O xeique Abdurrazaque Djamú, imã de uma das mesquitas, vinha sentar-se à minha mesa para me falar dos tempos dourados da ilha; outras vezes ia eu procurá-lo, ou à mesquita ou onde ouvia o ruído da sua motorizada, que era um remendo de peças de várias gerações.
A ilha de Moçambique nunca desapareceu das minhas memórias. Nem Djamú, nem Abassane, nem Ali Daúdo, nem Muhamad, nem outros amigos da época, que me contaram como o mar se cansara de ser azul e viera repousar entre a ilha e as margens do Mossuril. A velha estátua de Camões continua de pé, voltada para o Indico e para o ilhéu das Cobras, homenageando o Camões verdadeiro que ali viveu.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2006
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