dezembro 10, 2006

A grande Ilha de África

Era um terraço, o mais belo terraço que já vi em África. Vazio, rectangular, limpo, aberto para a noite e para a chu­va. Viam-se os minaretes das mesquitas, a cruz da grande igreja, os coqueiros das ruas, as arcadas das praças; e, mal chega­va a madrugada, as luzes dos carros que atravessavam as estradas do litoral, as estátuas abandonadas junto do passeio marítimo, exemplos de arte nova total­mente deslocados no tempo, no espaço, no mapa, na história. Viam-se os ca­miões do outro lado do canal, na peque­na estrada junto das salinas de onde vi­nha aquele manso cheiro de podridão que o vento arrastava por onde queria. Viam-se os esconderijos de areia, o chão de mármore diante de um museu, as ruas de terra batida por onde, sem fazer ruído — às cinco, seis da madrugada —, chegava o rapaz que abria o café Âncora d'Ouro.

Eu ouvira falar daquele café, pela primeira vez, a milhares de quilómetros de distância – em Londres. Rui Knopfli, um dos nossos grandes poetas, falara-me dele nesse almoço num restaurante tailandês, a dois passos de Belgrave Square, em que me contara como ele próprio lá chegara pela primeira vez, atravessando o canal de barco com a sua maleta cheia de amostras de medicamentos, e como ficara comovido com a luz intensa, bran­ca e ocre diante do azul profundo do mar. Quarenta anos depois eu fiz esse mesmo caminho para visitar o Âncora d'Ouro, o café onde Rui Knopfli vira Jorge de Sena escrever (numas folhas timbradas da Olympic Airways) o poe­ma «Camões na Ilha de Moçambique», não muito longe do lugar onde Tomás António Gonzaga, o poeta de Marília de Dirceu, morreria, no degredo, em 1819. Knopfli, que escreveria um dos mais be­los livros portugueses sobre África, A ilha de Próspero (juntemos-lhe O País dos Outros e Mangas Verdes com Sal), havia de reunir em O Monhé das Cobras, o seu livro de despedida, algumas das recor­dações desses seus tempos de África (os jardins da sua Lourenço Marques, as fo­tografias de Kok Nam, as ruas onde a noite não terminava, as amizades pro­fundas) - mas nenhum lugar como o café Âncora d'Ouro, no centro da ilha de Moçambique, resumia tanto esse en­contro com o Indico.

Do terraço da casa onde fiquei du­rante uma temporada via esse traçado das ruas. Na altura (há dez anos), a velha Pousada não tinha vidros nem água corrente, e a balaustrada que acompanhava o passeio marítimo por onde se chegava à Fortaleza de S. Sebastião – um belo monumento em ruínas, a aguardar re­construção – tinha sido despedaçada pela guerra, pela incúria, pelo sol e pelas tem­pestades.

O Âncora d'Ouro servia um pão de sal perfeito logo pela manhã, antes de chegarem os jogadores de damas e de dominó que vinham comentar fute­bol e beber cerveja. Havia canções de Roberto Carlos no interior, uma vendedeira de mangas sentada à porta; e, de­pois, os passeantes das arcadas - por en­tre lojas de tecidos, uma agência de via­gens, duas mercearias e um templo evangélico, miúdos que corriam de bici­cleta até à praia. O xeique Abdurrazaque Djamú, imã de uma das mesquitas, vinha sentar-se à minha mesa para me falar dos tempos dourados da ilha; outras vezes ia eu procurá-lo, ou à mesquita ou onde ou­via o ruído da sua motorizada, que era um remendo de peças de várias gerações.

A ilha de Moçambique nunca desa­pareceu das minhas memórias. Nem Djamú, nem Abassane, nem Ali Daúdo, nem Muhamad, nem outros amigos da época, que me contaram como o mar se cansara de ser azul e viera repousar entre a ilha e as margens do Mossuril. A velha estátua de Camões continua de pé, voltada para o Indico e para o ilhéu das Cobras, homenageando o Camões verdadeiro que ali viveu.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2006