dezembro 18, 2006

Uma entidade nada regular

Quando apareceu a chamada Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) chamei à atenção, nestas páginas, para a semelhança com o projecto brasileiro do Conselho de Jornalismo que o Governo Lula tentou fazer aprovar no Congresso de Deputados para disciplinar e vigiar a Imprensa. O Conselho de Jornalismo brasileiro, no entanto, nem por sombras se poderia comparar à ERC - ele tinha, na sua génese, um intuito censório e provocador que, aliás, era compreensível dada a natureza leninista do Partido dos Trabalhadores e o carácter do próprio presidente, que chegou a expulsar um jornalista do "The New York Times", coisa que não acontecia no Brasil desde os tempos da ditadura. Lula bebeu nos mestres e o segundo mandato é promissor em tentativas de amordaçar e intimidar a imprensa.

Portugal seria outra coisa. É, definitivamente, outra coisa. Já aqui, há duas semanas, insisti que não é possível atribuir intenções censórias nem a Augusto Santos Silva, o ministro responsável pela criação da ERC, nem aos membros da ERC, sobretudo ao seu presidente Azeredo Lopes.

Acontece, no entanto, que existe na ERC uma vontade indómita e generosa de fazer pedagogia e de actuar para nosso bem. Ambas as coisas só devem praticar-se a pedido. Ou seja, ninguém pediu à ERC para nos dar aulas de deontologia; e ninguém requereu a sua bondade explícita.

Ao criticar, e nos termos que o fez, quer o jornal "Público" (por ter publicado um texto), quer um colunista seu (autor de artigos de opinião), quer o seu director (por ter autorizado a publicação do texto), a ERC exorbitou e ultrapassou as suas competências e limites de acção. Se não o fez, então é porque essas competências são exageradas.

Imagine-se que, um dia, um colunista deste jornal publica um texto onde, de acordo com os parâmetros da ERC, há alguns erros e "perigos", além de excessos de linguagem. Sem que ninguém lho peça, a ERC invectiva o director do "Jornal de Notícias" que não devia ter publicado o artigo e, mais, que o jornal não pode publicar artigos dessa natureza, mesmo sob o guarda-chuva de "artigo de opinião". Ora, acontece que a lei geral - que é a que se deve reconhecer - prevê o recurso aos tribunais para dirimir casos em que alguém se sente ofendido por um texto de jornal. Ela tem funcionado, algumas vezes com atraso, mas tem funcionado. A possibilidade de existir um "tribunal intermédio" ou "especial" para tratar destes casos, propor ralhetes aos jornalistas e publicar sermões (com finíssima marca ideológica, como aconteceu no caso do "Público") ao director do jornal e aos autores dos textos, é um grave precedente e uma porta aberta à ingerência na política editorial dos jornais (e das rádios ou televisões) por parte de entidades externas aos mesmos. Ora, quem manda nos jornais? Não pode ser essa entidade externa.

Por mais competentes que sejam os membros da ERC - e certamente que o são -, ninguém lhes pediu (excepto o governo ou outras instâncias de poder) que ministrem lições não solicitadas.

Se aplicarmos a regra à imprensa em geral, chamo a atenção da ERC para erros de palmatória de jornalistas de política, parcialidade no tratamento de matérias de natureza internacional, falhas na admissão de foras-de-jogo num encontro de futebol ou, vá lá, critérios discutíveis em matéria de crítica literária, por exemplo. Ah, o que haveria a dizer!

Mas, nesta como noutras matérias, ou acreditamos na liberdade de imprensa (e até na liberdade de publicar matérias condenáveis que os tribunais avaliarão), ou não acreditamos de todo. Dizem-me que não se pode atacar a honorabilidade dos membros da ERC nesta matéria. É verdade; mas quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele. E ser lobo da imprensa não é propriamente uma actividade feliz.

in Jornal de Notícias - 18 Dezembro 2006