Portugal mal amado
O caso de Maria João Pires é inteiramente diferente. Ao contrário da larguíssima maioria dos portugueses, a pianista poderia viver onde quisesse - no rigor gelado das ilhas Spitzberg ou na civilizada Suíça, bem mais perto de públicos que valorizam o seu trabalho. Escolheu, no entanto, viver nos arredores de Castelo Branco, em Belgais, onde criou um centro destinado ao estudo da artes que, contando com o seu empenhamento, o seu dinheiro e os seus amigos, necessitaria também de apoio do Estado. O projecto de Belgais é mais do que interessante. Num país onde a "cultura literária" domina claramente a "cultura científica", a "cultura artística" ou o ensino das artes têm sido menosprezados e ignorados. É raríssimo encontrar uma escola pública que possa ensinar música, por exemplo. As artes ou são um luxo desprezado ou uma excepção sobrevalorizada. A ideia de Belgais é, por isso, generosa.
Acontece, porém, segundo entendi, que o dinheiro de Maria João Pires e os apoios do Estado (cerca de dois milhões de euros) não bastavam. Era necessário mais. Isso constitui um problema sério no país que tem dificuldade em gerir fundos tão pequenos como os atribuídos a uma direcção-geral ou ao pelouro da cultura de uma autarquia. Maria João Pires acha que isso, não conseguir levar adiante o projecto de Belgais, a levou a ser vítima "de uma verdadeira uma tortura" e que precisava de "fugir dos malefícios de Portugal".
Como se sabe, é fácil ser-se vítima em Portugal, sobretudo quando se tem uma ideia errada ou deficiente do país. O discurso de Maria João Pires acaba por ser banalizado e por corresponder a uma forma de ressentimento muito vulgar hoje em dia, demasiado marcada ideologicamente. Poucas pessoas estarão em condições de dizer a Maria João Pires o que Maria João Pires devia fazer nas suas exactas circunstâncias. Mas houve pessoas que estiveram em circunstâncias semelhantes e que tomaram outra atitude. Maria João Pires tem toda a liberdade de ir viver para Salvador - e mais toda a legitimidade e todo o direito. Pessoalmente, acho uma posição sensata e digna. Mas eu iria e não me queixaria da Pátria, essa ingrata.
Muitos intelectuais e os artistas têm digníssimos desejos de transformar Portugal num lugar mais agradável e onde a arte, a ciência e a cultura tenham um papel diferente na vida dos cidadãos. Querem fazê-lo porque acham bom e decente para o país. Infelizmente, uma parte deles tem pressa demais e outra parte sente-se iluminada diante da turba ou desiludida quando o país revela a sua face e as suas impossibilidades. O despeito e o ressentimento são as menos nobres reacções, nessas circunstâncias. Mesmo que sinceras.
No fim de contas, em Salvador vive-se muito melhor do que em Castelo Branco.
Jornal de Notícias - 31 Julho 2006