Da série "Noite, o que é?" [21 - 30]
A NOITE, O QUE É? 21.
Mesmo sem olhar à volta, vejo quase sempre as mesmas coisas: as sombras, a relva, a varanda, as árvores que amo, o sabor da cerveja, do café, os aromas, os primeiros sons, a luz que entrava pela janela, um livro, a cozinha. Os olhos. A primeira voz. A recordação é sempre em ponto mais pequeno, como um esconderijo, uma revelação a salvo, como um segredo, um eclipse, a floresta de pinheiros, os pés nus no chão. E então conto os dias, conto as noites, o que inventamos, o que nos espera. A casa da minha vida fica aí, nesse retrato. A voz da minha vida. Tudo se escreve numa língua desconhecida, sem gramática, sem frio.
A NOITE, O QUE É? 22.
A meio da noite pergunto se posso dizer esse nome. Quando adormecer será perto dele, segredo dos segredos, relâmpago dos relâmpagos. A casa da minha vida, a vida da minha vida. Penso nisso também, é por ela que desperto a meio da noite e já não faço perguntas. Rodeado de calendários, sonho com o tempo das florestas, os caminhos que levam aos jardins, as tardes de calor caindo sobre a relva, coisas que me dizem esse nome.
A NOITE, O QUE É? 23.
Quase nada. Sons vindos das matas, trabalhos leves, flores — plantas — que se compram à beira da estrada para plantar depois. Elas crescerão de Verão a Verão, hão-de conhecer o sentido da palavra solstício, o sentido da palavra equinócio, o sentido da palavra que espera a altura de ser dita. Há uma grande ventania neste lado do mundo, neste lado do mar. Chove, arrumo jornais e folhas de papel, há uma certa brutalidade nisto tudo, mas a verdade é que tudo o que tenho pertence agora a esse dicionário: uma mesa, o cheiro da erva, o ruído que vem de dentro de casa. Se não durmo, se a noite se estende, é porque as coisas me acordam de cada vez que isto acontece.
A NOITE, O QUE É? 24.
Os primeiros dias são tristes, as primeiras noites, há ainda qualquer coisa sem nome a rodear a vigília, livros amontoados, perdidos, poemas soltos, nenhum respira verdadeiramente. Penduradas sobre a varanda, as trepadeiras, o jasmim, o café, o pão, os passos às primeiras horas do dia, as primeiras coisas vindas da janela aberta, sempre aberta. Tudo o resto é aquele silêncio onde os olhos ficam mais perdidos, aquilo de que raramente sabemos dizer o nome.
A NOITE, O QUE É? 25.
Muitas vezes, esperar que o frio passe, que a noite propriamente dita vá de um lado a outro, que os cigarros acabem, que o silêncio não se perceba mais. Esperam-se muitas coisas, nessa altura: a voz, os olhos, a cor dos olhos, aquilo que ficou, aquilo que será, uma nova vida. Escreve-se devagar, cada palavra tem um som, uma letra, um mapa. Lembro as plantas, a tarde, o anoitecer antes da noite verdadeira. Lembro de ficar acordado à espera.
A NOITE, O QUE É? 26.
Entre dois mares, entre dois climas, entre as árvores. Quando chove, de noite, precisamos mais de saber onde está o rosto que mais se ama — é uma coisa que ainda não tem nome, essa imagem que protege do vazio. Mais tarde, quando chega, traz consigo toda a madrugada.
A NOITE, O QUE É? 27.
Não conseguir dormir longe dessa sombra, dos ruídos da noite, estradas solitárias, nomes desiguais, designações. Como uma tempestade, a noite termina à hora a que acordo, demasiado tarde para ouvir esses ruídos, demasiado cedo para falar.
A NOITE, O QUE É? 28.
Revelações de quase todos os dias: onde é a tua casa, onde fica esse lugar em que te sentes próximo da terra, próximo do céu (quando o céu está mais próximo da terra), próximo de ti? Há um destino errante na tua vida, olhas para ele quando a noite se mantém em silêncio, como se fosse um reencontro. E depois fazes a pergunta: onde é a tua casa, onde é o teu lugar, onde adormeces no meio das árvores, onde nasce o teu dia? E as imagens voltam, como o cenário diante de uma varanda debaixo desse céu do sul: Cassopo, Fénix, Grou, Centauro, o Cruzeiro do Sul, Mimosa e Acrux. Estrelas de outro mar.
A NOITE, O QUE É? 29.
Esperar. Se não ouvir essa voz, a impressão de que toda a vida foi em vão, desordenada, sem varandas sobre a tarde, sem música, sem riso, sem vagas no mar. É por isso que, muitas vezes, nos encontramos nos sonhos.
A NOITE, O QUE É? 30.
Há um momento qualquer em que fico mais comovido. Lembro-me de uma coisa ou de outra, coisas vagamente sem importância, sem certeza e sem razão. Então, passo por vários mapas onde gostaria de viajar, de levar a noite em passeio.
Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"
Mesmo sem olhar à volta, vejo quase sempre as mesmas coisas: as sombras, a relva, a varanda, as árvores que amo, o sabor da cerveja, do café, os aromas, os primeiros sons, a luz que entrava pela janela, um livro, a cozinha. Os olhos. A primeira voz. A recordação é sempre em ponto mais pequeno, como um esconderijo, uma revelação a salvo, como um segredo, um eclipse, a floresta de pinheiros, os pés nus no chão. E então conto os dias, conto as noites, o que inventamos, o que nos espera. A casa da minha vida fica aí, nesse retrato. A voz da minha vida. Tudo se escreve numa língua desconhecida, sem gramática, sem frio.
A NOITE, O QUE É? 22.
A meio da noite pergunto se posso dizer esse nome. Quando adormecer será perto dele, segredo dos segredos, relâmpago dos relâmpagos. A casa da minha vida, a vida da minha vida. Penso nisso também, é por ela que desperto a meio da noite e já não faço perguntas. Rodeado de calendários, sonho com o tempo das florestas, os caminhos que levam aos jardins, as tardes de calor caindo sobre a relva, coisas que me dizem esse nome.
A NOITE, O QUE É? 23.
Quase nada. Sons vindos das matas, trabalhos leves, flores — plantas — que se compram à beira da estrada para plantar depois. Elas crescerão de Verão a Verão, hão-de conhecer o sentido da palavra solstício, o sentido da palavra equinócio, o sentido da palavra que espera a altura de ser dita. Há uma grande ventania neste lado do mundo, neste lado do mar. Chove, arrumo jornais e folhas de papel, há uma certa brutalidade nisto tudo, mas a verdade é que tudo o que tenho pertence agora a esse dicionário: uma mesa, o cheiro da erva, o ruído que vem de dentro de casa. Se não durmo, se a noite se estende, é porque as coisas me acordam de cada vez que isto acontece.
A NOITE, O QUE É? 24.
Os primeiros dias são tristes, as primeiras noites, há ainda qualquer coisa sem nome a rodear a vigília, livros amontoados, perdidos, poemas soltos, nenhum respira verdadeiramente. Penduradas sobre a varanda, as trepadeiras, o jasmim, o café, o pão, os passos às primeiras horas do dia, as primeiras coisas vindas da janela aberta, sempre aberta. Tudo o resto é aquele silêncio onde os olhos ficam mais perdidos, aquilo de que raramente sabemos dizer o nome.
A NOITE, O QUE É? 25.
Muitas vezes, esperar que o frio passe, que a noite propriamente dita vá de um lado a outro, que os cigarros acabem, que o silêncio não se perceba mais. Esperam-se muitas coisas, nessa altura: a voz, os olhos, a cor dos olhos, aquilo que ficou, aquilo que será, uma nova vida. Escreve-se devagar, cada palavra tem um som, uma letra, um mapa. Lembro as plantas, a tarde, o anoitecer antes da noite verdadeira. Lembro de ficar acordado à espera.
A NOITE, O QUE É? 26.
Entre dois mares, entre dois climas, entre as árvores. Quando chove, de noite, precisamos mais de saber onde está o rosto que mais se ama — é uma coisa que ainda não tem nome, essa imagem que protege do vazio. Mais tarde, quando chega, traz consigo toda a madrugada.
A NOITE, O QUE É? 27.
Não conseguir dormir longe dessa sombra, dos ruídos da noite, estradas solitárias, nomes desiguais, designações. Como uma tempestade, a noite termina à hora a que acordo, demasiado tarde para ouvir esses ruídos, demasiado cedo para falar.
A NOITE, O QUE É? 28.
Revelações de quase todos os dias: onde é a tua casa, onde fica esse lugar em que te sentes próximo da terra, próximo do céu (quando o céu está mais próximo da terra), próximo de ti? Há um destino errante na tua vida, olhas para ele quando a noite se mantém em silêncio, como se fosse um reencontro. E depois fazes a pergunta: onde é a tua casa, onde é o teu lugar, onde adormeces no meio das árvores, onde nasce o teu dia? E as imagens voltam, como o cenário diante de uma varanda debaixo desse céu do sul: Cassopo, Fénix, Grou, Centauro, o Cruzeiro do Sul, Mimosa e Acrux. Estrelas de outro mar.
A NOITE, O QUE É? 29.
Esperar. Se não ouvir essa voz, a impressão de que toda a vida foi em vão, desordenada, sem varandas sobre a tarde, sem música, sem riso, sem vagas no mar. É por isso que, muitas vezes, nos encontramos nos sonhos.
A NOITE, O QUE É? 30.
Há um momento qualquer em que fico mais comovido. Lembro-me de uma coisa ou de outra, coisas vagamente sem importância, sem certeza e sem razão. Então, passo por vários mapas onde gostaria de viajar, de levar a noite em passeio.
Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"
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