agosto 06, 2007

Desconfiar dos cidadãos

A ideia foi lançada pelo anterior presidente da República, Jorge Sampaio, e dizia respeito a "medidas de natureza fiscal e de natureza penal que devem ser introduzidas no combate à corrupção". O discurso, assim redondo e com rimas irregulares, é reconhecível à distância. Basicamente, queria dizer o seguinte o Estado pode inverter o ónus da prova para combater a corrupção. A introdução da "inversão do ónus da prova" para crimes económicos servia para que "a justiça e a moralidade fossem repostas" no país. É da imprensa da época, de Outubro de 2005.

Eu tenho algum receio sobre o conjunto a justiça e a moralidade, quando invocadas a par, trazem-me sempre à memória fragmentos da nossa história, recente ou mais antiga, em que a caça às bruxas se sucedeu ao pedido, desesperado, de moralidade e justiça.
É evidente que o então presidente não defendia a caça às bruxas nem a onda de denuncismo que os habituais profetas da desgraça (em cujo número me incluo) previam poder aparecer. Mas o demónio aparece onde menos se espera e o melhor é não lhe abrir o caminho.

Num outro discurso da época, Jorge Sampaio mencionou os cidadãos que "enriquecem sem se ver donde lhe vem tanta riqueza". Ora, isso representa um problema em que as autoridades fiscais não precisam de se esforçar muito para deslindar o caso - mas a suspeita sobre o enriquecimento não pode transformar todo o enriquecimento em ilícito. Esta demagogia popular seria grave ao mencionar que "fulano terá de passar a fazer prova da proveniência lícita dos seus bens". Em que circunstâncias? Quando a administração fiscal for, de bairro em bairro, inventariar piscinas, automóveis, jardins, antenas parabólicas, garagens? Quando receber denúncias de "cidadãos honestos"? Quando os funcionários do SEF passassem a ter de perguntar aos passageiros dos voos vindos da América do Sul se já tinham pago as férias na República Dominicana? Seja como for, a teoria ficou enunciada, com honestos adeptos e gente de boa-vontade a aplaudir. Tenho medo da gente de boa-vontade.

Seja como for, o actual presidente da República enviou para o Tribunal Constitucional o decreto que alterou a Lei Tributária; essa alteração permite que a administração fiscal passe a ter acesso às contas bancárias de um contribuinte que reclame ou tente impugnar uma decisão das Finanças; além disso, o fisco passaria a ter possibilidade de aceder às mesmas contas bancárias (sem necessidade de aviso ou autorização), no caso de haver um atraso na declaração de rendimentos. Voltando à inversão do ónus da prova, o fisco poderia também denunciar ao Ministério Público um contribuinte cujos "sinais exteriores de riqueza" não sejam "compatíveis" com a sua declaração de rendimentos.

Longe de mim discutir questões de natureza fiscal e tributária; limito-me a aceitar o juízo do meu contabilista e dos funcionários das Finanças, que até têm sido atenciosos. Mas o princípio incomoda. E em matéria de leis, devemos estar atentos aos princípios que as permitem e as autorizam. Porque, usando este princípio - mesmo que para fins geralmente positivos ou para benefício do Estado democrático - podemos criar leis injustas e perniciosas, que colocam em perigo os direitos dos cidadãos, a sua liberdade, o direito à privacidade e à vida pessoal.

Acho, portanto, que o Presidente agiu bem ao manifestar dúvidas sobre o decreto. Pode acontecer que o Tribunal Constitucional esteja de acordo com o parecer da Comissão dos Assuntos Constitucionais do parlamento, que deu o assunto por pacífico. Mas isso não implica que seja uma lei justa ou correcta e que não deixe de atentar contra os direitos dos cidadãos. Sonegar impostos é uma atitude que deve ser punida. Mas o princípio de que se deve suspeitar dos cidadãos é muito perigoso.

in Jornal de Notícias - 6 Agosto 2007

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