agosto 13, 2007

Madeleine

Há uma tendência geral, portuguesa ou não, para termos opiniões acerca de tudo – de economia a teologia, passando por arquitectura e literatura, discutimos tudo com grande paixão, pouco discernimento, quase nenhum estudo e muito empenhamento. Fazemo-lo com opiniões fortes. Mas, ao invés de as opiniões estarem assentes em estudo, em reflexão e em dados exactos e indiscutíveis, há um predomínio da “certeza absoluta” na opinião – e a certeza absoluta é, quase sempre, inimiga da verdade. Sobretudo quando a investigação não chega ao fim.

Se voltarmos a ler, a esta distância, todas as opiniões sobre o caso Casa Pia, certamente que sorriremos diante de tantas certezas absolutas. O episódio foi desmoralizador para o país; pelas suas revelações, pelas suspeitas com ou sem confirmação, pelo grau de ressentimento revelado e pelos subterrâneos que mostrou a céu aberto. Passado este tempo, o insuportável banho-maria em que se encontra o julgamento faz prever o pior. Haverá gente com a vida injustamente destruída (já há), e haverá culpabilidades nunca assumidas. A pulverização do caso pela imprensa – que, em parte, tomou “a verdade” como problema de fé – contribuiu para este desfecho. Outros casos são o de Joana, a criança cujo corpo nunca foi descoberto, e da sua mãe Leonor Cipriano – e o de Madeleine McCann.

É inteiramente justificado que a opinião pública estabeleça comparações entre os dois casos; no primeiro, o corpo da criança não apareceu mas um julgamento de 72 horas resolveu a questão da culpabilidade; no segundo, o corpo da criança não apareceu ao fim de 100 dias de investigação, e as autoridades acabam de anunciar que o trabalho está longe do fim, além de que a criança McCann estará morta.

Toda a gente de bom-senso sabe que, em matéria de investigação criminal, não se pode falar de segredo. Deve, antes, falar-se de sigilo policial. Está vários degraus acima.

Ora, também no caso McCann tivemos opiniões sobre tudo. Uma sumptuosa legião de especialistas em canídeos, de psiquiatras e pedopsiquiatras, de criminalistas, de advogados ou de comentadores de assuntos de média, aparece nas televisões a toda a hora. Justifica-se. Eles cumprem o seu ofício e eu estou mais tolerante com eles e com o assunto, sobretudo porque ao fim de cem dias não há sinais da criança inglesa.

Há gente que se indigna com o “circo mediático” criado em torno do caso McCann. Vejamos: há gente que se indigna com tudo, é a sua especialidade. Mas, convinha que lhes perguntássemos, lá, de onde contemplam a multidão de simples pessoas interessadas em saber o que ocorreu com a criança (justamente porque pode ocorrer com outras crianças), o que queriam que acontecesse ou que se fizesse. Que mantivéssemos a calma.

Nós mantemos. Mas são cem dias sem resultados visíveis. Claro que comparamos com o caso de Joana. Claro que toda a gente acha uma injustiça não ter havido a mesma onda de solidariedade com Joana (embora, que me perdoem os “especialistas em média”, sejam casos diferentes). Mas são cem dias. Não se pede à Polícia Judiciária que envie o seu director explicar tudo o que se passa – para pôr fim à onda de rumores, às teorias da conspiração e à maledicência habitual. Mas alguma coisa devia ser feita. Algumas contas deviam ser prestadas.

Por muito que as autoridades julguem que o país é idiota, as pessoas já sabem o que são “fugas de informação”, como se organizam, com que objectivos se programam, e quem as promove. E, portanto, como surgem as ondas que estabelecem probabilidaes de culpa aqui ou ali, consoante as necessidades. A polícia deve fazer o seu trabalho com a tranquilidade possível. Mas não me parece que uma eventual pressão da opinião pública seja criticável ou, sequer, injusta. É naturalíssima e compreensível.

in Jornal de Notícias – 13 Agosto 2007

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