agosto 02, 2007

Elogio do Sud Express

Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tem­po, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no pa­pel e outro no coração. Não havia ro­mances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interes­ses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens noc­turnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos apro­ximarmos de Hendaye. Velho Sud Ex­press. Não há melancolia nenhuma nes­ta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado so­bre os rios, despertando memórias. E ve­lho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se pas­savam ao passageiro mais próximo.

Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos ho­téis, nem restaurantes de «comida de fu­são» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigi­lância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.

Velho Sud Express (1877), museu vi­vo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a me­nos nos vinte e seis dias de viagem—a va­lidade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que che­ga a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emi­grações, exílios e viagens de Verão.

Aliás, vínhamos e íamos com os emi­grantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indica­ções, com guias comprados com antece­dência de meses (estudados ao porme­nor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo pa­ra a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holan­da. Paris no regresso, só, para cumprir ro­teiro. Mas, no regresso, aquelas carrua­gens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passa­do vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).

Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oi­tenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receo­sos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verda­de — feitas bem as contas -, era mais difí­cil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atra­vessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007

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