Elogio do Sud Express
Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tempo, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no papel e outro no coração. Não havia romances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interesses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens nocturnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos aproximarmos de Hendaye. Velho Sud Express. Não há melancolia nenhuma nesta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado sobre os rios, despertando memórias. E velho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se passavam ao passageiro mais próximo.
Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos hotéis, nem restaurantes de «comida de fusão» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigilância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.
Velho Sud Express (1877), museu vivo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a menos nos vinte e seis dias de viagem—a validade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que chega a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emigrações, exílios e viagens de Verão.
Aliás, vínhamos e íamos com os emigrantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indicações, com guias comprados com antecedência de meses (estudados ao pormenor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo para a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holanda. Paris no regresso, só, para cumprir roteiro. Mas, no regresso, aquelas carruagens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passado vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).
Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oitenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receosos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verdade — feitas bem as contas -, era mais difícil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atravessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007
Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos hotéis, nem restaurantes de «comida de fusão» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigilância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.
Velho Sud Express (1877), museu vivo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a menos nos vinte e seis dias de viagem—a validade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que chega a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emigrações, exílios e viagens de Verão.
Aliás, vínhamos e íamos com os emigrantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indicações, com guias comprados com antecedência de meses (estudados ao pormenor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo para a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holanda. Paris no regresso, só, para cumprir roteiro. Mas, no regresso, aquelas carruagens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passado vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).
Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oitenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receosos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verdade — feitas bem as contas -, era mais difícil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atravessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.
in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007
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