agosto 20, 2007

A credibilidade do anonimato

Tudo começou quando o presidente do Benfica anunciou, com a compreensiva cobertura da imprensa, que tinha descoberto à porta de sua casa um dossier “anónimo” com “informações relevantes” sobre o fantástico mundo do futebol e, em especial, sobre o “apito dourado”. Os “incertos”, como se usa escrever nos autos, não quiseram entregar o seu documento à polícia, aos tribunais ou ao governo; confiavam mais no presidente do Benfica, que lhes oferecia mais garantias. Assim vai o mundo.

Seja como for, e munido de uma delegação à altura e devidamente empertigada, o cavalheiro entregou o dossier “anónimo” às autoridades, exigindo esclarecimentos, investigação, fuzilamentos, moral nas ruas, paz nos balneários, castigos, açoites, castidade no lar e denúncias públicas. As autoridades fizeram-lhe a vontade e o novo procurador-geral da República, que conhece bem a imprensa, mencionou a vontade de fazer justiça por todos os meios. Pôs a polícia a ler.

Ora, como se sabe, um dossier “anónimo” é um dossier que não tem assinatura: ou lhe falta assinatura, pura e simplesmente, ou a apagaram para que seja “anónimo”. Por exemplo: alguém pode elaborar um dossier “anónimo” e, para lhe dar credibilidade (imagine-se!), é necessário retirar-lhe a assinatura; imagino que, se a tivesse, ninguém ligaria. Sem assinatura (esse sinal infame que indica o nome do acusador, do denunciante, do queixoso, do mentiroso, da vítima ou do interessado), o documento ganha muito mais credibilidade.

Entretanto, apareceu um novo dossier “anónimo”, agora em papel timbrado da PJ; a sua origem pode, portanto, ser diferente do primeiro, mas nada o garante porque anonimato é anonimato. De qualquer modo, as autoridades, postas diante dessa evidência, têm de apreciá-lo, porque não é possível desprezar um dossier “anónimo” e apaparicar o outro. Há, como se sabe, uma ética do tratamento do dossiers “anónimos”; faz parte da originalidade portuguesa – se ligas a um, tens de ligar a outro; se lês um, tens de ler o outro, e assim por diante, até não haver espaço nos arquivos da Procuradoria ou lugar nas primeiras páginas dos jornais.

O que eu faria e o que o leitor faria é, provavelmente, diferente do que está a ser feito, mas há pormenores que nos ultrapassam. Evidentemente que na base do “anonimato voluntário” poisam mais facilmente a mentira, o interesse, o embuste, a pataratice, a impostura e até o medo. A assinatura não está lá; mas a marca do forjador permanece, o albardeiro deixou-a.

Simplesmente, procuradores, polícias, investigadores anónimos e diligentes funcionários dos departamentos criminais, em vez de chamarem o pessoal do CSI de Las Vegas, para encontrarem impressões digitais, manchas de uísque, pingos de sardinha e de caldeirada, ou cabelos sujos, sentam-se nos seus gabinetes (vá lá, é uma imagem literária), ajeitam os óculos, empilham uma série de blocos para apontamentos ao lado de uma dúzia de lápis afiados, e iniciam a leitura. Fazendo a vontade aos autores dos dossiers “anónimos”, ou a quem lhes retirou a assinatura, deixam na opinião pública a ideia de que a denúncia anónima, a falta de escrúpulos, a chantagem pessoal e a literatura de vingança mais abjecta são instrumentos da justiça ou da procura da verdade.

É evidente que este exemplo pode frutificar. Ele pode trazer benefícios evidentes quer à indústria de entretenimento, quer ao negócio do papel impresso. Centenas de autores de dossiers “anónimos” estão disponíveis para continuar este trabalho e para exigir leitores na polícia e nos gabinetes de investigação criminal. Romancistas falhados, burladores profissionais, delatores de vizinhos, mentirosos encartados ou patifes banais estão agora autorizados a escrever os seus textos. Vinte, trinta páginas bastam para aceder à glória. É uma alegria. O dossier “anónimo” está na moda. Convido-vos à escrita.

in Jornal de Notícias - 20 Agosto 2007

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