janeiro 08, 2007

A vida grandiosa e a vidinha

Um dos fenómenos mais desconcertantes na "grande política" portuguesa - por oposição aos que, humildemente, se dedicam à "pequena política", ou seja, a tratar dos assuntos concretos e visíveis - é a quantidade de hermeneutas especializados em perscrutar as mais subtis mensagens enviadas pelo primeiro-ministro para o presidente da República e vice-versa. Nesse quase paraíso da "grande política", desde as gravatas do senhor Presidente até ao eventual desalinho na marrafa do senhor primeiro-ministro, tudo serve para prever o alcance de um "facto político". Trata-se de uma especialização exemplar, antes reservada à arquitectura das primeiras páginas do "Expresso", sobretudo na época em que Soares era presidente e Cavaco era primeiro-ministro um jantar aqui, uma frase ali, um gesto desusado, uma ida ao Pulo do Lobo, e teríamos a crise instalada.

O tempo mudou. O terrível centro do eleitorado, que votou Sócrates e não deixou de votar Cavaco, baralhou as contas e a vida dos que sobreviviam graças aos maus humores do presidente e do primeiro-ministro.

A guerrilha entre São Bento e Belém faz parte do resto do provincianismo português e da herança republicana que o dr. Soares não queria deixar morrer. Mário Soares sempre explicou, com meridiana clareza, que não se tratava de coabitação mas de permanente tentativa de assassinato. É esta a razão pela qual o semipresidencialismo oscila entre o sorriso nas escadarias de Belém e a facada nas costas de um dos cavalheiros. Essa vastíssima saudade dos tempos de Soares & Cavaco e do inerente mercado político que criou, levou muitos analistas a glosar vezes sem conta as mensagens de Natal de São Bento e de Belém, não só "à procura de assunto" (que existe) mas também à procura de mistério (que não existe). Ora, não é caso para tanto.

Foi tudo às claras e como se segue. Cavaco vestiu a pele do presidente da República eleito e disse o mais elementar acabaram as desculpas (como tinham acabado na derradeira fase de Guterres e no concubinato de Santana Lopes), vamos tratar de acabar com a campanha eleitoral. O primeiro-ministro disse, salvo erro, coisa semelhante, tendo em conta que o seu papel não pode reduzir-se a anunciar periodicamente o paraíso mas o de permitir que ele seja possível para quem o quiser. Paraíso é uma maneira de dizer, evidentemente.Ou seja, ainda vamos tratar da vidinha. E a vidinha é isto que se sabe. A perspectiva pode não ser a mais agradável para os traficantes de ilusões, mas é a vidinha.

Por muito que custe admitir, tanto Sócrates como Cavaco foram, ainda que em circunstâncias diferentes, eleitos por causa da vidinha e não por saberem de cor "Os Lusíadas". Os portugueses têm uma grande dificuldade em adaptar-se a ela, mas, lamento informar, não há outra coisa na vida pública.

A vida grandiosa, efervescente e cheia de glória, é matéria individual - na vida pública quer-se decência. Foi isso que o Presidente, como era seu dever, veio dizer.

2. Parece que, nos últimos tempos - um ano, salvo seja - setenta ou oitenta ou cem mil almas desertaram do país e foram para o estrangeiro procurar melhor modo de vida. Trata- -se de bastante gente a decidir arriscar a pele e procurar melhor vida noutras paragens. O governo, naturalmente, achará que é uma traição por parte desses cidadãos que se recusam a testemunhar as luminosas etapas do crescimento português e as grandes reformas estruturais. O próprio eng.º João Cravinho já partiu. Felicitemo-lo.

in Jornal de Notícias - 8 Janeiro 2007