janeiro 27, 2007

O Quixote em Matosinhos


No reino do peixe e do marisco, existe um belo restaurante de carne, que propomos esta semana.

Um leitor (J.D.G.) prega-me, por mail, um sermão brutal e, provavelmente, merecido: que não tenho dito mal de restaurantes, que me tenho desfeito em elogios e que isso é motivo para desconfiar. Esclarecimento gratuito ao leitor: eu próprio tenho desconfiado. Acontece que tenho ido a restaurantes que me têm agradado (a maior parte) ou a alguns que não me têm desiludido. Se o leitor quer sangue, tê-lo-á, apesar de terminar a sua carta com uma mensagem particularmente enternecedora: "Matosinhos, provavelmente onde se come melhor no País." Nisso, concordamos: entre Leça e Matosinhos estão alguns restaurantes que vale a pena visitar (o primeiro dos restaurantes desta secção, há cerca de um ano, foi em Leça, aliás).

Os restaurantes de Matosinhos lembram-me dias de Verão da minha infância, quando o meu pai me queria impressionar com experiências aqui e ali – e pude, pois, frequentar duas ou três casas que figuram entre os clássicos da zona. Volto amiúde para testar a memória e para recuperar um ou outro sabor – e quase nunca saio desiludido: há restauran­tes que confirmam a infância ou a adolescência, não têm de ser experiências avassaladoras.

Desta vez fui a Matosinhos por "indicação diplomá­tica" em busca do Sancho Panza — que encontrei fixado nas paredes da casa, em citações do 'Quijote'. É uma decoração sem pretensões, iluminação sim­ples, entrada discreta — e aroma a pecado. Ou seja, a carne — se bem que, entre as especialidades da casa se encontrem uma sopa rica do mar, o tradicio­nal lombo de bacalhau assado na brasa ou com espargos e molho de cerveja preta ou ainda "al Pil Pil" (é diante de um "bacalao al pil pil" que Vázquez Montalbán põe Pepe Carvalho para começar o seu romance 'As Termas', passado em ambiente de dietas assassinas), e ainda o tamboril nas modalidades de espetada com gambas ou servido com alho e tou­cinho, ou o polvo à lagareiro.

Seja, pois. Mas eu ia às carnes, que no Sancho Panza, de ressonâncias espanholas ou espanholizantes (com, repito, cervantinas citações nas suas paredes), estão distri­buídas por 'chuleton' de boi, 'entrecôte' duplo de boi, o tradicional 'cochinillo', o ainda mais tradicional mas nunca menosprezável 'chateau-briand', além de secretos de porco preto (uma invasão completamente irracional nos nossos restaurantes), da alheira de caça com ovo e grelos e do churrasco variado à Sancho Panza (composto por 'entrecôte', lombo, alheira e secretos e o que houver), onde há mão do 'jefe' Alejandro, um argentino, 'porteño', que comanda a cozinha.

Começámos por um 'albariño' espanhol para acom­panhar pequenas entradas (entre elas uma linguicinha espanhola e pimentos Padrón) e logo metemos caminho para um tinto notável (criado por um dos zeladores da tradição do Veja Sicília). O Sancho Panza tem na sua carta três brancos e quinze tintos de Espanha ('albariños', 'del Duero', Rioja, Toro e Costes del Segres), além de três "cavas" apropriadas. O tinto acompanhou um 'chuleton', recomendado pelo anfitrião, Carlos Andrade, que foi sendo grelhado na chapa, à mesa. Nada de espe­cial, na verdade, mas muito saboroso – corte exem­plar, tempero 'sencillo', gordura de boi para grelhar, excelentes, e hoje cada vez mais raras, batatas fritas de lei, algumas delas devidamente empoladas, a mostrar carácter, e legumes salteados, no ponto.

De sobremesa, derretemo-nos diante de um bom crepe preparado com manteiga (cujo uso se notava, para desagradar a dietistas), massa suave, maçã laminada e 'ron viejo', que foi servido com um Porto Ramos Pinto – outras propostas seriam as tartes de maracujá ou de maçã, a mousse de menta com chocolate, o bolo de brigadeiro ou o toucinho-do-céu. Ficam para a próxima.

Nas mesas em redor, um grupo de futebolistas onde divisei um Anderson de muletas, um Lucho González em vésperas de um bom golo e um Lucas Mareque ainda por estrear, respirava-se apetite. É quanto, às vezes, me basta.

O Sancho que mante­nha as suas portas abertas, que lá me terá mais vezes.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 47
Vinhos brancos: 24
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 22
Champanhes: 8
Aguardentes & Conhaques: 8

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 35 euros

SANCHO PANZA
Rua do Godinho, 287
4450-149 Matosinhos
Tel: 22 937 90 96
Encerra às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 27 Janeiro 2007