janeiro 05, 2007

Da série "A Noite, o que é?" [31 - 40]

A NOITE, O QUE É? 31.
A meio da noite, nem todas as perguntas são inquietas. Há umas mais do que outras, mas eu pergunto invariavelmente pelo que mudou a minha vida — uma varanda sobre a tarde, sobre o mundo, sobre a relva do mundo, as árvores magníficas, o riso, cheiro do café, os livros, a estrada dos coqueiros, a cor do mar. O que tranquiliza a noite, depois, são os sonhos em que encontro as coisas que amo.

A NOITE, O QUE É? 32.
As noites duram meses, pequena medida para a vida toda que nos aguarda. Por vezes, um relâmpago no meio do Inverno é tudo o que lembramos desse tempo de espera; mas há mais: duas frases, um mapa estendido na mesa, promessas. O que brilha mais na noite nunca tem nome certo, nessas alturas pouco importa o resto, tudo o resto.

A NOITE, O QUE É? 33.
Abrir um caderno {The night writing} e escrever pela noite fora, enquanto não chega o Inverno. Nunca se escreve tudo, nunca se chega ao fim. Agora, que olho os teus olhos, sei como se começa a escrever pela noite fora, como se ouvem os ruídos, como se ouve a respiração. Ao recuperá-la, não se perde de novo, não se adormece sem ouvir essa voz a que sempre se pertenceu. A noite é isto, afinal, chegar e partir, enfrentar as horas, esperar.

A NOITE, O QUE É? 34.
Quando eu chegar, alguma coisa chegou antes de mim. Visitarei a relva da grande tarde, a sombra das árvores, a mesa das refeições. Serei aguardado enquanto durar o meu coração. Entretanto, oiço a voz como uma recordação, o último gesto dos aeroportos.

A NOITE, O QUE É? 35.
Não há nenhum nome em nenhum lado do céu. Três estrelas que ficam deitadas, três estrelas que se erguem no escuro, consoante o hemisfério. Muitas vezes, a tarefa do astrónomo amador resume-se a ver o mundo de um lado e do outro, a vigiar coincidências e amostras. Mas acaba por regressar sempre àquela posição ideal: sentado numa varanda, imaginando o mais suave dos ventos. A isto chama-se promessa, também; dormir quando não há mais nada a dizer, só nessa altura.

A NOITE, O QUE É? 36.
Encho a vida inteira de recados. Metade dela esperei por isto, haver uma razão qualquer para mudá-la. Um dia disse: «Traz-me de volta à terra.» Não sabia que tinha de procurá-la onde estavam a simplicidade, as estradas onde nos perdemos, o aroma do café, o grande bosque junto do mar, os ruídos dos animais a meio da noite. Quando a noite vem, fria, deste lado do mar, fico sem refúgios, sem música, sem nome. Até que um nome ou o teu rasto aparece, iluminando tudo, juntando-se às estrelas que costumamos descrever, alinhadas, ora deitadas ora erguidas como uma promessa.

A NOITE, O QUE É? 37.
Enquanto escrevo, reescrevo quase tudo. Sem isso não escreveria, sem essa luz, essa escada para a beira do mar. Já não posso escrever sozinho, sem ouvir a voz que atravessa as ondas, o riso que vem do meio das árvores, do meio da noite.

A NOITE, O QUE É? 38.
Por vezes, mais uma memória da chuva dentro das paredes da casa, luz, conversas, silêncios, risos, hábitos. As coisas vêm ter connosco numa língua estranha, delirante, quando não conseguimos dormir por algum motivo. Volto atrás. Volto sempre atrás, nestes dias, reconstituindo frases e retratos e esse último instante de despedidas. A noite regressa. Duas noites, dois mares.

A NOITE, O QUE É? 39.
Nunca mais dormi. Nunca mais a noite foi noite nem o dia lhe trouxe mais luz.

A NOITE, O QUE É? 40.
Por mais que eu desvie os olhos, a noite aproxima-se, vem, parte. É um problema de fusos horários, de música, de amnésia ou de memória. Isto só acontece num certo momento, como um raio verde, um fragmento. Durante a noite enumeram-se coisas sem sentido. Houve uma manhã em que fomos mudar a vida inteira, entrando pelas repartições, tomando decisões, isso deve acontecer sempre de manhã; a noite reserva-se para isto mesmo, imagens que ficam presas às pontas dos dedos. Por mais que eu desvie os olhos, é isso que vejo, evito dormir para não deixar de ver.

Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"

Nota: Anteriores "A NOITE, O QUE É?": 1 a 10, 11 a 20, 21 a 30