janeiro 02, 2007

Viajar para combater a desilusão

Quem leu Na Patagónia, de Bruce Chatwin, e ficou indiferente? Não falo de literatura – falo da viagem, da sensação de perda absoluta ao atravessar o estreito de Magalhães, o pórtico da «terra incógnita», mais até do que o da Terra do Fogo. Bruce Chatwin abandonou tudo para se dedicar à escrita – e à viagem. Os seus livros são o testemunho dessa vontade inesgotável de narrar, de contar, de desenhar as aventuras da descoberta. De alguma maneira, Chatwin foi um dos últimos românticos – e sabia que os caminhos do coração conheciam os caminhos da perdição. Por isso, a Patagónia que nos legou é o retrato mais cru da Patagónia vista por olhos europeus, registada nos seus cadernos Moleskine. Mas isso é apenas literatura.

De alguma maneira, a sul do estreito de Magalhães fica um território sobre o qual são inesgotáveis as coisas para dizer. É antes de chegar lá que fica a viagem fantástica através da Patagónia e dos seus desertos, das escarpas andinas, dos lagos que enfrentam o gelo azulado das colinas, das cidades erguidas nos sopés das mon­tanhas, da estepe repousante que lembra.

A terra pura e as ventanias que ar­rastam a poeira da superfície. Estepe, vegetação rasteira, os Andes, o deserto cor­tado pelo vento — e as histórias mantidas pela tradição tehuelche, a dos índios que habitavam uma parte do deserto argenti­no -, tal é a paisagem que recordo da Patagónia. É o cenário para todas as alucinações, se lhes juntarmos a fantasia dos escritores que a percorreram em busca do desconhecido. Facilmente imagino his­tórias sobre estes lugares: descubro sem­pre alguém que se refugia neste silêncio, defendendo-se da sua própria vida.

Há, hoje em dia, nas margens do tu­rismo tradicional, hipóteses de tomar o caminho da aventura. Bariloche e Perito Moreno (El Calafate) são os epicentros dessa romagem pela Patagónia oficial: re­comendo que se tomem os atalhos, aque­les que chegam a El Bolsón, os que atra­vessam os lagos entre o Chile e a Ar­gentina, as estradas secundárias que le­vam a aldeias nos picos das montanhas, os caminhos de terra que transportam a memória desses passeantes e peregrinos solitários que, enganados pela miragem dos «mares do Sul» e dos paraísos meri­dionais, descobriram a neve e o calor da Patagónia - e o seu silêncio.

Num mundo cada vez mais ocupado pelo ruído das ofertas, Mempo Girardinelli, escritor argentino do Chaco (esse triângulo entre Corrientes, as estradas para Buenos Aires e o Paraguai), escreveu um roteiro de viagem entre a sua cidade de Resistência (coração do Chaco que as­sistiu às guerras de generais enlouquecidos, e que permanece abandonado a caminho do Norte, dos alcantilados que levam à Bolívia) e a Patagónia derradeira, fria; ele assinala que os lugares têm uma respiração ousada consoante se procura a felicidade ou se desespera de a encontrar. Conheci, lá, no Sul, personagens cativantes que ti­nham abandonado tudo para se fixar nos desertos daquele hemisfério. Girardinelli (autor de um romance policial publicado entre nós), ensina-nos que viajar é com­bater a desilusão e enfrentar os nossos demónios esquecidos.

Eu, que imaginei várias vezes a figura romântica de Charles Darwin à proa do HMS Beagle, navegan­do nos mares do Sul, cruzando as suas es­pumas negras em busca de uma ordem para o universo (de onde resultou um dos mais fulgurantes exemplos de aventura da curiosidade humana, que é A Origem dos Espécies), imagino-o também encarando o território da terra dos gigantes (os patagones) como um demónio da nossa civilização. E, se nunca mais fui o mesmo depois de ter visitado esta parte do mun­do, isso deve-se ao facto de ter aí aban­donado os meus próprios demónios e o medo da desilusão. Ao atravessar o estrei­to de Magalhães, fui obrigado a reconhe­cer que a terra não tinha barreiras.

In Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2007