outubro 29, 2007

O terror em Angola

O nascimento de uma nação regista sempre um rasto de crueldade e de horrores. Quando a independência está ligada a um processo revolucionário e a uma guerra civil, o número e o género de barbaridades têm tendência a aumentar – aprendemos bastante com eles acerca do género humano.

A década de setenta foi pródiga em estatísticas dessa natureza. Angola não foi excepção, por outros motivos que não têm apenas a ver com a guerra colonial ou com a guerra civil. O livro “A Purga da Angola”, de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus (edição Asa), é um documento impressionante sobre os acontecimentos que se sucederam ao “27 de Maio de 1977”, e abre com esta declaração chocante: “Por estranho que pareça, as atrocidades cometidas no Chile de Pinochet, se comparadas com o que se passou, de 1977 a 1979, no país de Agostinho de Neto, assumem modestas proporções. E o mais chocante é que, no caso de Angola, nem sequer atingiram inimigos, mas sim membros da própria família política.”

Não está em causa saber da bondade ou da “pureza de ideais” dos chamados fraccionistas ou “nitistas” (referência ao papel de Nito Alves, dirigente do MPLA, fuzilado pelo próprio partido); o que impressiona no livro, como já impressionava no conhecimento dos factos antes de eles terem sido coligidos em livro (mas murmurados na imprensa, reunidos em depoimentos avulsos e em memórias e testemunhos pessoais publicados aqui e ali), são a natureza, o alcance e o método com que o assassínio, a tortura, os fuzilamentos sumários, as prisões arbitrárias foram praticados durante os dois anos que durou a purga que envolveu o partido no poder em Luanda. Números são coisas vacilantes, mas é fácil chegar aos mais de 30 000 mortos que resultaram da perseguição aos “fraccionistas”.

As mortes de José Van Dunem, Nito Alves, Sita Valles (e do seu irmão Ademar), João Jacob Caetano e de muitos e muitos outros, estão rodeadas – ainda hoje e apesar dos testemunhos existentes – de mistério e de surpresas que se acumulam. A matança ordenada pelas autoridades não poupou inocentes que se sabia serem inocentes e que nunca estiveram implicados em qualquer tipo de conspiração; testemunhos orais (que eu próprio conhecia e que este livro menciona com a correspondente gravidade documental) falam de famílias chacinadas, do chão das prisões coberto de sangue onde chapinhavam presos que não sabiam de que eram acusados, de presos enterrados vivos ou metralhados junto às valas onde os seus cadáveres seriam escondidos, de angolanos decapitados ou golpeados à catanada. O registo menciona de tudo um pouco, desde homens lançados de aviões ou de ravinas, de fuzilamentos arbitrários, até sessões de tortura aplicada com crueldade indescritível. Sita Valles, ex-militante comunista portuguesa, é um dos nomes dessa lista, abandonada pelo seu partido de origem e fuzilada pelos vencedores de 27 de Maio. A sua história dramática, bem como a do seu marido, José Van Dunem, encontra ainda o pormenor dramático (publicado neste livro) de ter sido morta depois de dar à luz um bebé de que não se conhece o paradeiro – e depois de ter sido obrigada a abandonar um filho com apenas quatro meses de idade.

Passados trinta anos não está em causa enumerar a lista dos culpados, dos criminosos ou dos seus cúmplices. Algum género de justiça deve ser feito para que a crueldade tenha um nome e a história não se contente em justificar as atrocidades. Não se trata de apontar um dedo acusador; esse está apontado há muito. Trata-se, também, de não esquecer.

Na época, em Portugal, em nome da ideologia e da “razão de Estado”, os crimes e as perseguições foram silenciados e, até, apoiados. Apenas Natália Correia, solitária e heróica, em plena Assembleia, chamou a atenção para esse imenso “gulag angolano”. São trinta anos de silêncio conveniente.

in Jornal de Notícias – 29 Outubro 2007

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outubro 27, 2007

Grande desejo de delicadeza


Um restaurante japonês de Lisboa fornece um bom argumento para falar de Scarlett Johansson. Há argumentos para tudo.

Outono, Outono: as primeiras chuvas vão e vêm, ainda ligeiras, ainda suaves - o céu, de cinza, relembra o de 'Lost in Translation', o filme onde quase todos os homens se apaixonaram por aque­la Scarlett Johansson perdida entre um quarto de hotel, uma noite de pesadelo e um marido idiota, para não falarmos do sempre magnífico Bill Murray, que se esforçava por não morrer de tédio em Tóquio. Escolham outra pessoa qualquer para falar de cinema – eu prefiro as personagens, os cli­mas e os cenários. E o clima de 'Lost in Translation' não tem a ver com meteorologia mas sim com uma ideia do absurdo que se vive quan­do não precisamos nada dele.

Comem nada, no filme. É uma pena. Scarlett Johansson havia de ficar bonita a trincar uma fatia de sashimi.

Outra coisa inteiramente diferente é a experiên­cia de Anthony Bourdain, o chef do luso-nova-iorquino Les Halles, quando vai ao Japão (a experiência está descrita em 'A Cook's Tour', um livro que não me canso de recomendar) e lhe preparam um jantar de duas dezenas de pratos e quatro gueixas, algures nas montanhas – um lugar ligeiramente próximo do paraíso depois de uma jornada cansativa. Alguém nos massaja os ombros, alguém canta – numa varanda de onde ainda se vêem cerejeiras em flor –, alguém nos cede o lugar, alguém nos recebe. E, depois, um prato subtil, um desenho no coração do prato, uma fotografia de anjos descendo sobre lagos onde há flores, sombras, penumbras, que sei eu. Poesia pura. A comida às vezes devia ser assim, apenas um desenho que só a curiosidade permi­te destruir, romper, refigurar, recompor.

Sonho muitas vezes com o Japão. Não com Tóquio mas com a poesia de Bashô, aquelas três intermináveis e curtíssimos versos que imitam o som da clepsidra, o do vento nos bosques, o das nuvens rodeando as montanhas – e lá aparece Scarlett Johansson, saindo de um comboio, entrando num templo. Um dos templos à nossa disposição em Lisboa pode ser o Assuka. Exagero meu. Mas compreende-se: o "sushi to sashimi", um misto de ambos, anda pelos 17 euros, o que não é muito se tivermos em conta que é uma introdução a essa delicadeza oriental do peixe cortado com curial inteligência. Mas quem não gosta de peixe cru? Pois pode ir ao Assuka na mesma. Há magníficas espetadas de frango, de salmão ou de gambas (panadinhas), além das especialidades da casa: "hiyashi chuka", a sala­da de algas, tomate, ovo, pepino, soja e carne; "sukiyaki", as tirinhas de carne de vaga grelhada, e acompanhadas de arros; "tonkatsu", um pana­do com arroz; "yakiniku", tirinhas de vaca para grelhar à mesa ou no balcão; e, finalmente, os fritos, "tempura", de vegetais, gambas e lula. Não há desculpas para não ir a um restaurante japonês, com o argumento decisivo de que se trata de uma cozinha delicada, com uma fritura em tempo rápido, incisiva.

Para além disso, há raviolis de gambas em vapor, frango frito ("tori karaage") ou salteado com alho francês, massa fresca salteada ("tori yakisoba") ou legumes salteados com gambas, sopa de algas e tofu ("miso shiru"), além da magnífica beringela grelhada com molho de miso. Saltemos.

Há, nesta cozinha – voltemos ao princípio – uma delicadeza temperamental (penso nisso sempre que vejo os cozinheiros a manejar as suas facas com destreza assassina, muito meticulosa, capazes de cortar uma ervilha ao meio para efeitos decorativos). Deve comer-se com calma, concentração – e tempo. Sabendo que a refeição não termina ali; pelo contrário, ali começa; a digestão é suavíssima e os médi­cos recomendam-na, muito adeptos dos peixes crus, cheios de ómega-3.

No final, terminando o chá (uma escolha acerta­da), o sakê ou a cerveja japonesa, podemos medi­tar sobre a majestade das coisas belas e perfeitas, como esses poemas de Bashô, o mestre dos mes­tres. Ele nunca escreveu com mais de três versos, essa medida essencial de toda a poesia – quer dizer, de toda a vida. Ao Assuka, pois. Ainda por cima, tem take-away.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 15
Vinhos brancos: 6
Portos & Madeiras: 2
Uísques: 6

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 20 Euros

ASSUKA
Rua São Sebastião, 150
1050-209 Lisboa
Tel: 213 149 345
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 27 Outubro 2007


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Os mariquinhas do fair-play

1. Gostei muito de ver jogar o Braga contra o Bolton e temo dizer que o resultado foi injusto. Toque de bola: foi bom ver aquele manuseio diante da área adversária, uma espécie de valsa redundante com dois disparos fatais, o de César Peixoto e o final, de Jailson, no meio de outros passos de dança. Os práticos dirão o evidente: que foi curto o resultado. É verdade, porque os próximos dois jogos são perigosos – mas eu ficaria triste se não o dissesse: gostei de ver jogar o Braga. Como a leveza dos golos (insuficientes) do Atlético de Madrid; repararam?

2. Escandalizaram-se os medricas do “fair-play” com a decisão do FC Porto, que anunciou que vai “deixar de colocar a bola fora para que os jogadores adversários sejam assistidos”. Raul Meireles disse o essencial: há quem se aproveite do “fair-play”. Há sempre um Dida metido na história, se bem que o FC Porto já registasse casos de malandrice – na altura, classificada como congénita, quando Paulinho Santos saiu de maca a piscar o olho a Rodolfo Moura. Já perdeu uma eliminatória, contra o Bayern, por ausência de “fair-play” dos alemães. Se bem que não existam equivalências morais, a decisão do FC Porto é arriscada no país dos medricas do “fair-play”.
Frequentemente (para quem vê jogos pela televisão ou escuta os relatos da rádio) há comentadores que falam de “faltas inteligentes” ou de faltas simuladas que são justificadas “pela muita experiência” do jogador que se atia para o chão mal pressente uma corrente de ar. A história das “faltas inteligentes” é irritante; as faltas e penaltis arrancados “com inteligência” deviam ser punidas com cartão vermelho. Sigam o exemplo do râguebi, onde não se fingem mariquices dessas.
Portanto, o FC Porto faz bem em anunciar que não há chances para burlões. Mas isso implica uma responsabilidade acrescida para o clube: a de não fingir as suas próprias “falsas faltas”. É uma responsabilidade, mas é um desafio lançado de alto e com sentido de oportunidade.

3. O FC Porto empatou com o Marselha num jogo que poderia ter ganho sem penalti. Mas bola na trave, já se sabe, é bola mal chutada. Não conta. Jesualdo Ferreira, no final, como um mestre – que é –, explicou por que razão “as coisas” tinham corrido assim. Ele tem razão, mas eu preferia que explicasse “as coisas” antes do jogo. É talvez uma tarefa difícil, mas é possível; basta ver como aconteceram “as coisas” em jogos anteriores. J. A. Camacho, no Benfica, fez uma coisa parecida quando disse que o Benfica não ganhava porque a bola não entrava. É, como escrevi na semana passada, o cúmulo da honestidade; mas eu preferia que Jesualdo tivesse o dom da antevisão – e os mandasse meter a bola na baliza. Com “fair-play”, se possível; ou à bruta, se necessário.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 27 Outubro 2007

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outubro 22, 2007

O telemóvel do procurador

A entrevista do senhor Procurador-Geral da República ao semanário “Sol” é digna de ser lida. Tenho por ele grande simpatia – nasceu no interior, foi estudar na universidade, subiu a pulso, toda a gente sabe que gosta de coisas decentes como comer, ler ou viajar (nos tempos que correm e com as “figuras públicas” que temos, não é nada mau). É um percurso sério, e o procurador-geral também tem um currículo sério.

O essencial da entrevista é muito positivo, sobretudo quando dá conta de algumas das suas e nossas inquietações, nomeadamente sobre a violência na escola e a violência sobre os velhos. Não é admissível que as autoridades continuem a mostrar tamanha passividade acerca das agressões a professores ou a estudantes, perpretadas por alunos que poucas vezes são denunciados ou por medo ou por inércia diante da passividade e indiferença gerais. É bom, aí, que Pinto Monteiro cite o antigo mayor de Nova Iorque a propósito da “tolerância zero”: tolerância zero diante do intolerável. A violência sobre os velhos é outro capítulo silencioso dessa vergonha clandestina e doméstica, sobretudo porque se trata de pessoas que não se podem queixar, que poucas vezes são ouvidos pela imprensa e pela televisão, ocupadas com “a juventude” e os imbecis. Os maus tratos a velhos são intoleráveis, como a violência sobre crianças, como a violência sobre os indefesos. Mesmo quando, diante desse quadro, o Procurador-Geral desvaloriza a violência sobre as mulheres (porque se podem queixar e porque é um assunto em relação ao qual a imprensa está, felizmente, atenta), ele é sensato. E mostra ser um homem atento. Outro dos pontos positivos da entrevista é, evidentemente, a condição de “arguido”, assunto a que já se tinha referido numa entrevista à RTP – o país está cheio de arguidos inocentes. E a condição de arguido pôde estender-se por anos, sem que o processo judicial seja concluído e sem que a máquina judicial acelere e divulgue resultados e conclusões.

No entanto, de toda a entrevista resultaram mais públicos dois pontos: primeiro, quando o Procurador-Geral revela existirem “condes, viscondes, marqueses e duques” no Ministério Público e no aparelho judicial; depois, quando diz desconfiar que o seu telemóvel possa estar sob escuta. Naturalmente, a corporação protestou: se há condes, viscondes, marqueses e duques, convinha que soubéssemos quem são. Problema de corporação.

Agora, a questão das escutas telefónicas parece-me intrigante. Repare-se: não se trata de um cavalheiro qualquer a referir arbitragens de futebol nem de um anónimo a falar de corrupção. Foi o Procurador-Geral da República a declarar que, provavelmente, está sob escuta. Isso é preocupante. Deve indignar-nos e a PGR deve entregar o telemóvel do seu responsável máximo para ser devidamente inspeccionado (se possível, por um laboratório estrangeiro).

Todos os portugueses de boa-fé querem saber quem pode estar a escutar o Procurador-Geral da República; porque quem pôs sob escuta o PGR, pode colocar sob escuta o presidente da República, o primeiro-ministro, os inspectores da Judiciária ou – o que é pior, muito pior, absolutamente pior – qualquer um de nós. Defendemos, como pessoas decentes, que as escutas só podem ser ordenadas por um juiz; algum juiz autorizou que o senhor Procurador fosse colocado sob escuta? Com que pretexto? Saber se ele, afinal, vai à caça ou come bacalhau? Naquele contexto, da entrevista, o episódio parecia inocente. Mas não é. Os magistrados querem que o procurador se desdiga por razões profissionais; é com eles. Eu só quero ser esclarecido porque acho que as escutas telefónicas, o segredo de justiça e a posse de demasiadas informações são coisas perigosas. Porque se nenhum juiz ou MP ordenou essas escutas, então é porque elas foram possíveis por ordem de alguém superior. Isso é tremendo. Temos de saber tudo sobre o assunto.

in Jornal de Notícias – 22 Outubro 2007

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outubro 20, 2007


Ir ao Nobre (agora no Montijo) é, para o cronista, uma visita ao passado. À melhor parte do passado.

Estendamo-nos um pouco pela metafísica e coloque-se a interrogação: o que é uma coisa que para nós é mais do que ela mesma? Eu respondo: um vinho, a memória de um lugar, um livro per­dido, um rosto, uma palavra, e até um restaurante. Por exemplo, ao beber um certo vinho nada justi­fica que ele seja tão eminentemente caro, tão raro, tão procurado; o que nele se prolonga e nos pro­longa é a sua memória, o que ele evoca na sua his­tória e em nós mesmos (na nossa vida, na nossa perdição). A mesma coisa num restaurante – um restaurante é um restaurante é um restaurante é um restaurante é um restaurante, e por aí fora. Mas, para além disso, é uma memória incerta, vadia, incapazes que somos de o traduzir numa fórmula e numa definição. Em primeiro lugar, por­que nada é igual num restaurante, de um dia para o outro, de uma refeição para outra, de um minu­to para outro. Depois, porque um restaurante (salvo as excepções animais de certas almas) nunca é apenas o restaurante; é o seu chefe de mesa, o seu escanção, se o tiver, os seus criados, o seu 'chef’ ou a sua cozinheira, os seus donos, o que já comemos lá noutra altura, o que comeremos um dia, mais tarde.

Portanto, a minha vida, em certos restaurantes, cruza-se com a minha memória; e, no caso de O Nobre, com a melhor parte da minha memória, naquela zona dela em que estive sentado à mesa, rodeado de um magnífico chefe de mesas, de um grupo de bons criados, de uma cozinha superlati­va, de dois donos de quem sempre gostei muito. Por isso, qualquer referência ao O Nobre há-de vir ter comigo em pontas de pés, silenciosamente, alegremente, festivamente, com o seu rasto de sabores e de desvarios, de devaneios sentimentais e de achados que nunca consegui classificar. Por exemplo, quando dona Justa lançava o aviso sobre a próxima chegada de "cascas" ou "casulos", vindos de Macedo de Cavaleiros, prenúncio certo de almoçarada; e lá íamos em peregrinação. Coisas que só ali, como aquela massinha (macarrão largo, no ponto) cozinhada num caldo de feijão encarna­do, para acompanhar uns lombinhos na grelha. Coisa doméstica e familiar, no velho O Nobre, da velha Rua das Mercês, na Ajuda. Depois da Ajuda, a experiência com o espaço da Expo e das Torres de Lisboa correu mal, matéria que não é da minha conta, mas que não teve a ver com a qualidade das comidas.

Lembro-me de um dos grandes jantares nesse velho O Nobre, da Ajuda, com Manuel Vázquez Montalbán, para quem eu, José e Justa Nobre pre­parámos um menu a propósito, que terminou numa degustação de digestivos amplamente destrutiva. Jantar magnífico em que Montalbán se ergueu num brinde inesquecível: "À liberdade, à beleza e a Sharon Stone." Aplaudamos. Onde quer que Manolo esteja, lembrar-se-á das três coi­sas. Recordam-se do célebre "apagão" que pôs uma parte de Portugal às escuras, por causa de umas cegonhas displicentes? Estava eu no O Nobre (o da Expo), e choveu sobre o rio. Agora, para pôr as memórias em dia, é preciso atravessar o Tejo, jus­tamente, e rumar à praça de touros do Montijo para encontrarmos a mesma mesinha cheia de entrada apetitosas, dos mexilhões aos peixinhos da horta, dos embutidos aos carapauzinhos de escabeche, antes de chegarem as duas sopas do pódio: a de crustáceos em massa folhada e a de santola (que continua a ser servida na própria casca). Sou um saudosista; a seguir, o lombo de robalo "à Justa", uma das glórias de família; depois, outras glórias: a perna de cabrito no forno, a empada de caça, o carré de borrego, o bacalhau em crosta de broa, o pato com azeitonas ou – ah, quem me dera – as saudades da perdiz à convento de Alcântara, momento de paragem no velho O Nobre da Ajuda, um prato de referência do Dr. Mário Soares, seu frequentador em regime de lugar cativo.

Peço desculpa mas sou mau juiz no O Nobre. Reconheço o sabor, o tempero, a dedicação e o ar travesso de dona Justa na sua cozinha – isso basta-me para recordar alguns dos melhores momentos da minha vida. Uma sensação de tranquilidade que nenhum desaire há-de anular ou diminuir. E fico em silêncio. O silêncio dos inocentes.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
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Acolhimento: * * *
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Ruído da sala: * * *
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Garrafeira
Vinhos tintos: 115
Vinhos brancos: 56
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 30 Euros

O NOBRE
Avenida de Olivença (junto à praça de touros)
2870-108 Montijo
Tel: 212 317 511
Encerra às terças-feiras

in Revista Notícias Sábado – 20 Outubro 2007


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Camacho, Deco e as pessoas normais

1. José António Camacho deu uma entrevista enigmática ao "Mais Futebol" para tentar esclare­cer as massas sobre as intenções e as incógnitas do Benfica, ou seja, a sua participação na Champions e a conquista do campeonato. No fundo, Camacho é uma das principais vítimas do Benfica e merece que tenhamos alguma pena dele. Ou que tentemos com­preender a sua angústia: regres­sado ao Benfica depois de um pe­ríodo feliz (ganhou uma Taça, o que não foi mau para o clube), nunca se viu tão pouco entusias­mo e tão pouca fé. A prova é que ele não consegue explicar desai­res nem justificar empates senão com o argumento mais conve­niente a qualquer clube de bairro: "A bola não entrou." Há muito tempo que ninguém era tão ho­nesto no futebol português por­que, como se sabe, só se ganham jogos quando há golos, e só há golos quando a bola entra na bali­za dos adversários. Por isso, quando Luís Filipe Vieira apareceu a manifestar apoio a Camacho, este quase se indignou e esclare­ceu que não precisava de apoios de ninguém. Como o compreen­do. Não é ele a precisar de apoio: é a bola que precisa de solidarieda­de. Essa bola nefanda e orgulhosa que não entra na baliza. Aí está como tudo se explica, afinal. Apoiem a bola, e ela acabará por entrar.

2. Porque é que Camacho é vítima do Benfica? Porque, habituado a ser campeão em Julho e Agosto, antes de o campeonato começar, o Benfica estranha que a bola não cumpra logo a sua obrigação des­de a primeira jornada, confirmando o seu direito natural a obter o troféu sob os aplausos da pátria inteira. Isto, como qualquer "pessoa nor­mal", Camacho não entende. Ele julgava que era preciso trabalhar, formar uma equipa, jogar bem. Mas não. Parece que agora a estratégia é fazer filmes, queixar-se na Imprensa, pôr-se em bicos de pés, evocar as glórias e ocupar as pri­meiras páginas do "Record" e de "A Bola" (o que é facílimo); isso dá di­reito ao campeonato. Camacho não entende esta evidência. Em Portugal, parece um marciano.

3. Deco, afirmou anteontem que os jogadores de futebol tinham o direi­to de sair à noite e de se divertirem "como as pessoas normais". Que, como quaisquer funcionários de uma empresa, tinham o direito de andar pela noite desde que, às nove da manhã, estivessem no seu local de trabalho. Tenho muitas dúvidas. Quando uma equipa ganha os jo­gos, nenhum adepto no seu pleno juízo está disponível para protestar; ao primeiro empate, todos são tes­temunhas do desvario dos noitibós. Portanto, Deco tem razão no es­sencial e falha redondamente no essencial, ao mesmo tempo. Aliás, jogador com juízo não devia co­mentar o assunto. Eles não são "como as pessoas normais".

In Topo Norte – Jornal de Notícias – 20 Outubro 2007

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outubro 15, 2007

"Fascismo nunca mais"

O episódio da Covilhã merece mais do que reflexão; merece um nadinha de riso. Certamente que não estão de todo explicadas as inconvenientes regras do relacionamento interpessoal entre os sindicalistas a os polícias locais, que parece terem optado, há muito, por manter uma certa informalidade no modo como combinam os espaços para cada uma das entidades: os sindicatos fazem os seus protestos e organizam as suas manifestações de acordo com uma lei restritiva e “repressiva” promulgada por um dos governos de Vasco Gonçalves, e a polícia mantém-se no seu lugar ou, pelo menos, avança dois ou três passos inofensivos.

Seja como for, não parece “legal” que os agentes da autoridade, no seu caminho para a Câmara da Covilhã, a pé, paulatinamente, se tenham decidido por uma paragem na sede do sindicato para beberem um café e trocarem umas palavras sobre a anunciada e prometida manifestação de protesto contra o primeiro-ministro. Mas é assim que as coisas se passam; na Covilhã e em outros lugares portugueses. Em declarações publicadas pela imprensa, uma testemunha dos factos insistiu nessa informalidade: “A Covilhã é uma cidade pequena, toda a gente se conhece.” Em Portugal também. Os polícias devem ter avisado os seus conhecidos do sindicato: “Vejam lá, não desatem a insultar o primeiro-ministro, isso só dá problemas.”

Para os responsáveis do sindicato, como para alguns constitucionalistas citados a propósito, o aviso revestir-se-ia de algum condicionamento da liberdade de expressão dos sindicalistas que aguardavam o primeiro-ministro à porta da escola Frei Heitor Pinto. Eles não deveriam ter sido avisados. Fiquemos por aí, porque é comovente.

É evidente que há sempre a história de Pedro e o Lobo. Ao fim de alguns alarmes, que se revelaram falsos, ninguém acreditava que vinha aí o lobo a sério. Com o caso da Covilhã passa-se coisa semelhante. Os manifestantes gritaram “fascismo nunca mais”, pretendendo aludir às ameaças à liberdade de expressão e de manifestação. Em Lisboa, durante essa manhã, políticos da oposição e dirigentes sindicais ocuparam os fóruns da rádio e as páginas da internet clamando alto e bom som contra a ameaça. A liberdade estaria em perigo e era preciso ir para a rua; no mínimo, subir à serra para combater na Covilhã. Cavalheiros que consideram Cuba um prodígio de democracia pluralista e que têm a Coreia do Norte na conta de um regime democrático, ou que acham que na Venezuela não se passa nada (é apenas o “socialismo do século XXI”), apareceram na televisão a bradar contra “a ameaça” que estaria a sitiar os sindicalistas da Região Centro.

Desculpem regressar à história de Pedro e o Lobo, mas é semelhante. O caso da Covilhã não tem a ver com o procedimento vergonhoso da directora da DREN (a tal que atende denúncias por SMS e vigia blogues e jornais), que deveria ter sido desautorizado pelo primeiro-ministro ou, pelo menos, por um ministério da Educação envergonhado. É um caso de província devidamente aproveitado pelo sindicato. A “grave intimidação” não passou de uma novela de costumes provinciana, tal como a situação de José Rodrgues dos Santos é bem capaz de não atingir a condição de escândalo – e de se ficar por um combate de egos desavindos.

No fundo, o desenlace é risível e constitui uma quase derrota dos que se preocupam com a causa da liberdade de informação, de expressão e de opinião. A história deste protesto fica com um ar folclórico. O que se fez foi aproveitar justas e fundadas preocupações sobre a tomada do aparelho de Estado por diligentes denunciantes e pequenos inquisidores, para valorizar a acção dos profissionais do protesto. É uma pena. Eles nunca aprenderam nada com a história de Pedro e o Lobo.

in Jornal de Notícias – 15 Outubro 2007

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outubro 13, 2007

Lua cheia


O Mezzaluna é um dos bons restaurantes italianos de Lisboa. Gentil, bem-educado, 'cool', com talento e respeito.

Já se sabe que não sou fundamentalista à mesa; apenas mantenho os princípios que me parecem ser os mais agradáveis. Deixem-me ser um nadinha "autobiográfico": um desses princí­pios a que não ligo tem a ver com a presença do vinho à refeição. Por exemplo: sentemo-nos diante de um bacalhau com grão. "Vai tomar vinho, evidentemente." Ou prostremo-nos, em adoração, diante de um cabrito no forno, um dos pontos de excelência da nossa cozinha: "E o vinho, tinto, vai ser qual?" Não mencionemos, já, esse truque de nos ofere­cer vinho tinto como se fosse o único que exis­te (sabemos, "vinho é tinto", frase fantástica num país que já produz muito bons vinhos brancos). Ora, independentemente do gosto por vinhos, acontece comigo que a comida ita­liana, ou as pastas, sobretudo, me levam a beber vinho tinto. Há entre uma coisa e outra uma ligação certamente fortuita na minha memória visual ou gustativa (e que suspeito que tem, também, a ver com o cinema), que me leva a associar um vinho tinto para as massas suculentas.

No Mezzaluna caí na tentação – e fiz bem, porque as massas são boas, porque a cozinha não tem arrebiques nem arrogâncias, porque o ambiente é bonito, porque, enfim, se come muito razoavelmente e porque, ao conhecer esta cozinha, somos transportados para o universo de um 'chef pouco pretensioso, viajante, com raízes napolitanas e nova-iorquinas (entre Itália e Long Island), capaz do mais simples e do mais atrevido. Não há, na verdade, muita complexidade – basta qualidade e espírito crítico, inteligência e atrevi­mento. São esses factores que estão presentes na escolha ou do 'penne' com 'radicchio', alho, porco preto e vinagre balsâmico, ou da incursão lusitana da farinheira que recheia as coxinhas de frango.

A generalidade dos cozinheiros estran­geiros tenta sempre uma aproximação à cozinha portuguesa, o que resulta muito bem quando se trata de provar o cosmopolitismo da nossa cozinha "mais mediterrânica", ou mais vinda do sul; Michele Guerrieri abstém-se de dar lições nessa matéria, preferindo deter-se na vasta gramá­tica, também ela mediterrânica e levantina, da cozinha da sua infância e adolescência, com a contribuição do talento para inventar e dispor os ingredientes. Tanto nos rolinhos de beringelas recheadas com queijo como nos 'penne all’ arrabbiata' com cogumelos se nota essa fusão (essa sim, verdadeira fusão) entre a memória e a experiência, entre o cânone e a vontade de agradar sem fugir à obrigação de uma cozinha séria, feita de alguma exigência. Já dei exemplos dessa simplicidade e desse talen­to – para mim, o suficiente. Mas convém recitar mais um pouco dessas sugestões do Mezzaluna, como as folhas de alho francês recheadas de morcela de arroz, mozarella e tomate com grelos salteados, o peito de pato com molho de ameixas, a costeleta no forno, os medalhões de lombo, e os excelentes risotos, que recomendo; alguns deles são um primor de preparação e de condimento, de textura e daquela pastosidade cheia de pecado, queijo e tentação (peça aqueles que mais vão com o seu estômago e paladar, e não se arrependerá). Os risotos permitem inven­ções quase delirantes (recentemente, no Fasano, em São Paulo, assisti ao delírio de uma carta que apresentava exemplares de abóbora com lingui­ça, de feijão com fios de carne-de-sol, ou de espi­nafres com enchidos do Venetto, todos eles exce­lentes).

Finalmente, duas palavras para o essencial da sala, não sem mencionar uma carta de vinhos plausível e correcta, e uma lista de sobremesas onde o chocolate e o tiramisu se podem aplaudir. A sala é simples, como a cozinha do Mezzaluna; e, tal como a cozinha do Mezzaluna, é bonita, 'cool', de tons suaves, e apetitosa. Depois, a clientela é vasta; às vezes, não merece o lugar, porque pode ser ruidosa. A culpa não é de Guerrieri nem do Mezzaluna, mas da cidade, que é assim. Vale a pena o sacrifício.

À Lupa
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Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 64
Vinhos brancos: 23
Colheitas tardias, moscatéis e aperitivos: 8
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 14

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: necessária
Preço médio: 25 Euros

MEZZALUNA
Rua Artilharia 1, n.º 16
1099-061 Lisboa
Tel. 21 3879944
Encerra aos domingos e sábados ao almoço

in Revista Notícias Sábado – 13 Outubro 2007


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outubro 11, 2007

Portugueses que atravessaram o mundo

Oiço uma música. Aliás, só a ouviria horas depois, ainda antes de sair de Caracas em direcção ao Norte – o meu so­nho era chegar à Venezuela andina, a Merida, onde um grupo de portugueses se ins­talara perto da cordilheira, repetindo os passos dos primeiros exploradores da ba­cia do Amazonas, no século XVIII. Uma coisa não tem a ver com a outra, mas na minha imaginação reescrevo a chegada dos portugueses aos Andes, vindos de La Guaira, o porto que servia de entrada dos emigrantes que chegavam à Venezuela, como se repetissem a mesma comoção de Pedro Teixeira, um dos mais misteriosos e fascinantes militares portugueses do Brasil.

Descobri-o às portas do Pará, numa viagem de carro que me levou de São Luiz do Maranhão a Belém do Pará num dia de meteorologia variável: saí de São Luiz com um sol branco e azulado, e entrei com chuva nas florestas do Sul do Pará. Novecentos quilómetros de estrada ruim. A certa altura, no meio de um agua­ceiro, como uma aparição fantástica mis­turando-se à neblina, havia uma estátua. Um quilómetro depois tinha convencido o meu companheiro de viagem a retro­ceder para saber mais daquela estátua: a do capitão Pedro Teixeira, responsável pela expulsão dos franceses do Maranhão, fun­dador de Belém do Pará e, vim a saber de­pois, o aventureiro que, em 1637 – acom­panhado de meia centena de soldados portugueses e de mil índios – delimitou to­da a bacia amazónica, entre o Pará e o actual Equador – onde, diz-se, plantou uma árvore para comemorar a travessia e dar um toque humano às florestas desabitadas daquela geografia. Ou seja, navegou pelo Grande Rio, tomando todos os territórios para, graças a ele, se estabelecer a sobera­nia portuguesa sobre a Amazónia. Morre­ria em 1641, como capitão-mor do Grão-Pará e depois de uma vida de guerreiro, de aventureiro e de herói viajante.

Trezentos e cinquenta anos depois re­fiz essa viagem em homenagem a Pedro Teixeira e subi o Amazonas num navio que levava o seu nome. Ao ver os picos nublados e verde-escuros da Venezuela andina, lembrei-me dos portugueses que, também trezentos anos depois de Pedro Teixeira, atravessaram vales e florestas para se estabelecerem num território ad­verso, desconhecido e que hoje é incerto.

Por isso ouvi essa música em Caracas, há uns meses – era uma pequena orquestra que tocava «música do Caribe», ritmos do Panamá, da Venezuela, da Colômbia, do Equador. Todos os músicos eram portu­gueses, reunidos num palco de circunstân­cia, sorrindo, vestidos como as velhas or­questras de baile. Nunca como nessas circunstâncias admiro os portugueses, imaginando-os a chegar a La Guaira de­pois de uma grande travessia do Atlânti­co. Deviam conhecer La Guaira, o prin­cipal porto venezuelano. A bem dizer, na zona das praias, refugio de fim-de-semana para quem vem de Caracas. Há muitos anos, La Guaira era, também, o principal ponto de entrada de emigração. Um dos emigrantes que conheci, o Sr. Segismun­do, veio dos Açores, de Ponta Delgada, nesses anos longínquos, creio que numa das derradeiras viagens do Santa Maria. É um homem bom e divertido. E imagi­no-o, micaelense (ainda hoje conserva o sotaque admirável), enfrentando os trópi­cos em La Guaira vestido como se es­tivesse no Inverno europeu, de sobretudo, ainda mal refeito dos dias passados no na­vio; fosse como fosse, era preciso encontrar trabalho.

Ao fim de um dia em La Guaira, visitando as tabernas, cum­primentando os portugueses que ia encontrando, despedindo-se dos que regres­savam, Segismundo (que mais tarde seria aquilo que nós chamamos «um próspero comerciante»), fez o seu primeiro negócio na Venezuela: vendeu o sobretudo, ga­nhou algum dinheiro local; ou seja, reco­meçou a vida. E, como muitos outros por­tugueses, dispôs-se a atravessar o Cerro Ávila e a chegar onde chegam a ambição, a coragem, o sonho e o desejo de aventura dos que atravessam o mundo para plantar uma árvore no coração da Amazónia.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2007

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outubro 08, 2007

O fim de Bush e o campo liberal

Estão a terminar anos de suplício para a consciência liberal; o fim desse período concluir-se-á com o adeus ao consulado de George W. Bush nos EUA. Durante os últimos sete anos, depois do 11 de Setembro, essa consciência liberal ficou refém de um terror que não podia negar, do terrorismo que aumentou as suas actividades e de uma reacção desajustada cujas consequências não pôde prever, além de ter sido prisioneira das atitudes do presidente americano e dos delírios de uma série de ambiciosos conselheiros que viam o mundo como um laboratório para o seu fundamentalismo cristão.

A invasão do Iraque constituiu um momento crucial da história contemporânea. Todos aqueles que viram nos atentados do 11 de Setembro um sinal da barbárie e uma ameaça à coexistência pacífica, acabaram por ser traídos pelas sucessivas mentiras da administração americana sobre o “arsenal” de armas de destruição massiva ao dispor de Saddam Hussein. Se a retórica de George W. Bush era sobretudo defensiva, a quantidade de erros acumulados durante a invasão do Iraque e no restabelecimento de um estado de direito no Afeganistão não podem ser desculpados de forma leviana. Tanto a actual administração americana como os seus ideólogos têm de ser responsabilizados por esses equívocos e por terem abusado da boa-fé de milhões. É uma lei da história e da política. E foram esses erros, equívocos e desleixos que mais contribuiram para atacar o campo liberal nos últimos anos.

George W. Bush é um empecilho à afirmação da democracia e da consciência liberais – e um instrumento acessível para o anti-americanismo primário. A direita e o centro-direita precisam de livrar-se desse empecilho para recuperarem a credibilidade que saiu beliscada do confronto com os velhos fantasmas do anti-americanismo, o único pilar que sobrou à esquerda tradicional depois da queda do império soviético. Precisam, também, de se livrar dos neo-conservadores e da sua tralha religiosa para regressarem ao cânone do liberalismo tradicional e do conservadorismo europeu; e precisam de livrar-se da tralha neo-liberal para voltarem a ser liberais, intensamente liberais, livremente liberais.

Chegou a hora de assumir que as doutrinas de George W. Bush para o seu país são antiliberais – e, para o mundo, mostraram que são desleixadas.

Não se percebe como, na história das ideias do último quartel do século XX, um termo tão expressivo e tão belo, “liberal” (reproduzo as palavras de Bernard Henri-Levy no seu último ensaio sobre a América), pôde ser tão enxovalhado pela esquerda e pela direita; ele diz respeito a uma consciência livre da cidadania, a uma independência de carácter que é herdeira dos cavalheiros e das ideias que no século XIX forjaram as nossas sociedades democráticas; diz respeito ao primado da liberdade, dos direitos dos cidadãos e do rigor republicano sobre o interesse absoluto do Estado e o prolongamento dos interesses de casta. Isso é ser liberal no nosso velho mundo.

O fim do consulado de George W. Bush não colocará um ponto final no anti-americanismo. Novos fantasmas se erguerão para mitigar a fome de totalitarismo e de horror. Mas é uma oportunidade para que o campo liberal procure novas soluções para problemas inteiramente novos colocados pelas sociedades contemporâneas: comportamentos individuais, atitudes colectivas, liberdade de escolha. Com o fim do neo-conservadorismo americano é provável que possamos falar de novo do que nos importa: ser conservador, ser liberal. Recuperar-se-á, provavelmente, uma parte da liberdade de crítica, hipotecada na conjuntura que dominou os dois mandatos de George W. Bush.

Ou seja: não se podem combater os fantasmas antiliberais com recursos que lembram o antiliberalismo clássico da direita.

in Jornal de Notícias – 8 Outubro 2007

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outubro 06, 2007

Regresso a Espanha


Que haja Galiza, Catalunha, Andaluzia, Castela, Astúrias – é problema deles, dos espanhóis. No Mesón Andaluz, isso não tem grande importância. É tudo bom.

Sou do tempo em que a Parede ainda tinha mais aspecto de "pequena vila" do que hoje – em que mantém felizmente esse aspecto. Ser "do tempo" de seja o que for é muito saudável, ao con­trário do que manda a ideologia oficial, que rotula essa expressão como própria de há dois séculos. Nesses anos de "pequena vila", entre o Limo Verde e a Ribeiro, a Casa dos Queques e o Eduardinho (vão lá, para entenderem), o centro da Parede ador­mecia muito cedo e o Mesón Andaluz, estacionado no primeiro andar de uma rua que descia (ou subia) rente ao mercado local, era um oásis por diversos motivos. Retenho o principal deles: era o restaurante de cozinha espanhola onde se ia comer não apenas o que Ilídio de Almeida apresentava – mas também tudo o que nós imaginávamos que poderia ser a cozinha espanhola, antes das autono­mias, dos regionalismos e das suas saborosas dife­renças. Era Espanha. E nós tínhamos vivido de cos­tas voltadas para Espanha durante muito tempo. Não nos importávamos com as diferenças entre o tempero andaluz e os pratos suculentos do Norte, conquanto as sevilhanas que se ouviam ininterrup­tamente nos despertassem para esse mundo de gado, bodegas silenciosas ou festivas, alhambras e planícies, touros e tapas servidas na "barra".

Pessoalmente, a minha adolescência foi passada em terras de fronteira. Desde criança, muito cedo, o espanhol foi a minha segunda língua – e o gale­go a seguir, uma contingência. Pouco se me dá que não seja correcto dizer "o espanhol" e que eu deva dizer "o castelhano". Problema deles. Espanha, isso sim, interessa-me: dos picos das Astúrias e do seu litoral, ao azul triunfal do Mediterrâneo andaluz ou valenciano, passando pela velha Castela, pelo silêncio devastador da Extremadura, pelas eleva­ções catalãs – é Espanha. O resto é problema deles. Que se entendam.

Volto – numa noite de final de Verão, já tardia – ao Mesón Andaluz, instalado já não na Parede mas no CascaiShopping. A curiosidade pelo "pulpo de feira" da minha adolescência foi satisfeita: rode­las generosas de polvo, macio e sedoso, com umas pedrinhas de sal, colorau e azeite, o zénite de uma simplicidade comovente. Muito bom. O "pulpo de feira" é uma arte que convém realçar porque assenta numa cozedura simples do polvo, que deve conservar a sua pele gelatinosa, ser cortado dose a dose, e o único tempero permitido é esse: sal, colo­rau e azeite. Por menos do que isso, uma persona­gem de Fernando Assis Pacheco tornou-se assassina, se bem que preferisse as "empanadas" no forno. Torradinhas, mexilhões e calamares vieram a seguir. Outro aplauso. Os calamares, sem aquela gabardina obesa e desnecessária que vemos por aí, apenas passados no ligeiro polme de farinha e fritos em óleo claríssimo, perfeitos. São cerca de quarenta tapas suculentas, amostra da cozinha de "barra" e das suas possibilidades, desde as pataniscas de gambas ao presunto cortado como convém e é exigível, dos pimentinhos Padrón às saladas e almôndegas.

Abreviemos. Veio então a empada de perdiz: a massa estava estaladiça e saborosa, os legumes salteados sabiam a legumes, o recheio de perdiz era generoso, estava "de chuparse los dedos". Um bife inteiro e carnívoro afastou-nos por ins­tantes do convívio com os mortais, porque rescendia e conservava todos os sucos. Umas costeletas de cordeiro encaminharam-se então para a nossa mesa, pezinho ante pezinho, arras­tando batatinhas salteadas. Não houve tempo para 'callos a Ia madrilena', para uma favada, para uma paelha ou para o 'cochinillo' – há tempo. Nas sobremesas, eu sou conservador e tinha saudades das 'natillas' do Mesón: esta­vam iguais, perfeitas, cremosas, desenhadas naquele amplo prato cheio de promessas.

Por instantes, voltei aos meus sabores ibéricos de outros tempos. Diz-se que o amor adolescen­te é feito de repetições, do regresso ao mesmo lugar; talvez – já não me lembro. Mas se isso é verdade, e falando de estômago, o Mesón continua a ser esse lugar. Ah, esquecia-me: e com uma carta de vinhos que sugere a união ibérica, fantástica.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 316
Vinhos brancos: 56
Espumantes & Champanhes: 16
Aguardentes portuguesas: 114
Colheitas tardias e moscatéis: 14
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 24

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil, no Shopping
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: não é necessária
Preço médio: 20 Euros

MESÓN ANDALUZ
CascaiShopping, loja 1089 - Alcabideche
Tel. 214 600 659
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 6 Outubro 2007


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outubro 01, 2007

Afinal, quem votou em Menezes?

Paula Teixeira da Cruz anunciou que, caso Menezes vencesse as eleições internas do partido, as elites iriam abandonar o PSD. Ora, as elites já o tinham abandonado. Estavam na sala-de-espera, aguardando por 2011, a meio do segundo ciclo de Sócrates. A eleição de Menezes é, por isso, uma surpresa para os bons espíritos.

Por isso, há lições fatais a retirar destas eleições. A primeira delas: as “elites” estavam convencidas de que o partido iria perder as eleições de 2009 e que, portanto, não valia a pena contrariar uma lei do destino; o melhor seria ir aguentando as coisas, fazendo negócios com o regime, seguir a lógica do bloco central (agora tu, depois eu), uma vez que José Sócrates fez pelo PSD aquilo que o PSD não foi, no poder, capaz de fazer pela sua base eleitoral: tomar iniciativas importantes na área das finanças, do ensino, da reforma da administração. Para quê incomodar-se a enumerar princípios, se Sócrates e os socialistas tinham tomado para si uma parte do programa da direita? A resposta seria simples: deixemos que Marques Mendes se ocupe do partido, de mansinho, trate das quotas, vá equilibrando as distritais, vá perdendo e ganhando no parlamento, até chegar a hora. Os “notáveis” do PSD iriam tratando da vidinha, reservando lugar na sala-de-espera, acenando uma vez por outra quando a crise batesse à porta de Sócrates. As “elites” estavam convencidas de que existe uma ordem natural das coisas e de que o eleitorado acabaria por se cansar de Sócrates e dos socialistas (mesmo que mais cedo se canse dos socialistas do que de Sócrates). Nessa altura, eles acenariam mais alto e regressariam. Limitar-se-iam a agradecer a Marques Mendes os serviços prestados, mas segredar-lhe-iam que o seu tempo tinha passado.

A segunda lição a retirar é que há uma diferença acentuada entre o eleitorado do PSD e a sua base de militantes. Tal como acontece no PS, o eleitorado flutua, retrai-se ou entusiasma-se, empresta a crédito o seu voto – mas não quer compromissos. Compreendo-se. Parte substancial do eleitorado do PSD votou Sócrates nas últimas eleições. Quando o PS julgava que tinha o negócio garantido, conferiu a dura realidade: o eleitorado tinha concedido apenas um empréstimo; por isso o PS perdeu as autárquicas e as presidenciais. Esse eleitorado flutuante, inteligente, que não vê grande saídas profissionais no sistema, nem garantias à esquerda, vota PS ou PSD consoante lhe convém e consoante aprecia, ou não, o líder do momento. Sócrates caíra-lhe nas graças; era preciso esperar por outra figura. Esse eleitorado, ao contrário do que se pensa, compara, faz contas, toma notas, dispõe-se a ser cativado, conhece o seu valor. Sabe que o seu voto conta e está disposto a negociá-lo. Mas esse eleitorado pouco se confunde com a base de militantes do PS ou do PSD. Cavaco compreendeu-o quando, em 1994, começou a estar cansado das distritais, das concelhias e dos barões do seu partido – porque o seu apoio era mais vasto. Se os socialistas ainda não o compreenderam, trata-se de burrice.

Por isso, compreender eleição de Menezes, explicá-la, é entrar nesse mundo conturbado que está para além das nobres ideias das “elites”, que aguardavam na sala-de-espera do partido, emolduradas ou adormecidas nos pedestais. As “bases” desse PSD profundo perceberam o cenário e viam em Marques Mendes uma liderança irrisória – o que é pena mas é a vida; e arriscaram. O “risco Menezes” deixa-os disponíveis para depois de 2009; se as “elites” querem futuro para depois de 2009, que apareçam. O eleitorado espera. Mas as “bases” têm pressa e não gostam de ser enganadas.

PS – O Dr. Mário Soares, que é um homem cheio de visões, diz que a eleição de Menezes é uma desgraça para o PSD. Todos estamos habituados às suas desgraças. O paraíso e o inferno estão cheios delas.

in Jornal de Notícias – 1 de Outubro 2007

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