O terror em Angola
A década de setenta foi pródiga em estatísticas dessa natureza. Angola não foi excepção, por outros motivos que não têm apenas a ver com a guerra colonial ou com a guerra civil. O livro “A Purga da Angola”, de Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus (edição Asa), é um documento impressionante sobre os acontecimentos que se sucederam ao “27 de Maio de 1977”, e abre com esta declaração chocante: “Por estranho que pareça, as atrocidades cometidas no Chile de Pinochet, se comparadas com o que se passou, de 1977 a 1979, no país de Agostinho de Neto, assumem modestas proporções. E o mais chocante é que, no caso de Angola, nem sequer atingiram inimigos, mas sim membros da própria família política.”
Não está em causa saber da bondade ou da “pureza de ideais” dos chamados fraccionistas ou “nitistas” (referência ao papel de Nito Alves, dirigente do MPLA, fuzilado pelo próprio partido); o que impressiona no livro, como já impressionava no conhecimento dos factos antes de eles terem sido coligidos em livro (mas murmurados na imprensa, reunidos em depoimentos avulsos e em memórias e testemunhos pessoais publicados aqui e ali), são a natureza, o alcance e o método com que o assassínio, a tortura, os fuzilamentos sumários, as prisões arbitrárias foram praticados durante os dois anos que durou a purga que envolveu o partido no poder em Luanda. Números são coisas vacilantes, mas é fácil chegar aos mais de 30 000 mortos que resultaram da perseguição aos “fraccionistas”.
As mortes de José Van Dunem, Nito Alves, Sita Valles (e do seu irmão Ademar), João Jacob Caetano e de muitos e muitos outros, estão rodeadas – ainda hoje e apesar dos testemunhos existentes – de mistério e de surpresas que se acumulam. A matança ordenada pelas autoridades não poupou inocentes que se sabia serem inocentes e que nunca estiveram implicados em qualquer tipo de conspiração; testemunhos orais (que eu próprio conhecia e que este livro menciona com a correspondente gravidade documental) falam de famílias chacinadas, do chão das prisões coberto de sangue onde chapinhavam presos que não sabiam de que eram acusados, de presos enterrados vivos ou metralhados junto às valas onde os seus cadáveres seriam escondidos, de angolanos decapitados ou golpeados à catanada. O registo menciona de tudo um pouco, desde homens lançados de aviões ou de ravinas, de fuzilamentos arbitrários, até sessões de tortura aplicada com crueldade indescritível. Sita Valles, ex-militante comunista portuguesa, é um dos nomes dessa lista, abandonada pelo seu partido de origem e fuzilada pelos vencedores de 27 de Maio. A sua história dramática, bem como a do seu marido, José Van Dunem, encontra ainda o pormenor dramático (publicado neste livro) de ter sido morta depois de dar à luz um bebé de que não se conhece o paradeiro – e depois de ter sido obrigada a abandonar um filho com apenas quatro meses de idade.
Passados trinta anos não está em causa enumerar a lista dos culpados, dos criminosos ou dos seus cúmplices. Algum género de justiça deve ser feito para que a crueldade tenha um nome e a história não se contente em justificar as atrocidades. Não se trata de apontar um dedo acusador; esse está apontado há muito. Trata-se, também, de não esquecer.
Na época, em Portugal, em nome da ideologia e da “razão de Estado”, os crimes e as perseguições foram silenciados e, até, apoiados. Apenas Natália Correia, solitária e heróica, em plena Assembleia, chamou a atenção para esse imenso “gulag angolano”. São trinta anos de silêncio conveniente.
in Jornal de Notícias – 29 Outubro 2007
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