outubro 11, 2007

Portugueses que atravessaram o mundo

Oiço uma música. Aliás, só a ouviria horas depois, ainda antes de sair de Caracas em direcção ao Norte – o meu so­nho era chegar à Venezuela andina, a Merida, onde um grupo de portugueses se ins­talara perto da cordilheira, repetindo os passos dos primeiros exploradores da ba­cia do Amazonas, no século XVIII. Uma coisa não tem a ver com a outra, mas na minha imaginação reescrevo a chegada dos portugueses aos Andes, vindos de La Guaira, o porto que servia de entrada dos emigrantes que chegavam à Venezuela, como se repetissem a mesma comoção de Pedro Teixeira, um dos mais misteriosos e fascinantes militares portugueses do Brasil.

Descobri-o às portas do Pará, numa viagem de carro que me levou de São Luiz do Maranhão a Belém do Pará num dia de meteorologia variável: saí de São Luiz com um sol branco e azulado, e entrei com chuva nas florestas do Sul do Pará. Novecentos quilómetros de estrada ruim. A certa altura, no meio de um agua­ceiro, como uma aparição fantástica mis­turando-se à neblina, havia uma estátua. Um quilómetro depois tinha convencido o meu companheiro de viagem a retro­ceder para saber mais daquela estátua: a do capitão Pedro Teixeira, responsável pela expulsão dos franceses do Maranhão, fun­dador de Belém do Pará e, vim a saber de­pois, o aventureiro que, em 1637 – acom­panhado de meia centena de soldados portugueses e de mil índios – delimitou to­da a bacia amazónica, entre o Pará e o actual Equador – onde, diz-se, plantou uma árvore para comemorar a travessia e dar um toque humano às florestas desabitadas daquela geografia. Ou seja, navegou pelo Grande Rio, tomando todos os territórios para, graças a ele, se estabelecer a sobera­nia portuguesa sobre a Amazónia. Morre­ria em 1641, como capitão-mor do Grão-Pará e depois de uma vida de guerreiro, de aventureiro e de herói viajante.

Trezentos e cinquenta anos depois re­fiz essa viagem em homenagem a Pedro Teixeira e subi o Amazonas num navio que levava o seu nome. Ao ver os picos nublados e verde-escuros da Venezuela andina, lembrei-me dos portugueses que, também trezentos anos depois de Pedro Teixeira, atravessaram vales e florestas para se estabelecerem num território ad­verso, desconhecido e que hoje é incerto.

Por isso ouvi essa música em Caracas, há uns meses – era uma pequena orquestra que tocava «música do Caribe», ritmos do Panamá, da Venezuela, da Colômbia, do Equador. Todos os músicos eram portu­gueses, reunidos num palco de circunstân­cia, sorrindo, vestidos como as velhas or­questras de baile. Nunca como nessas circunstâncias admiro os portugueses, imaginando-os a chegar a La Guaira de­pois de uma grande travessia do Atlânti­co. Deviam conhecer La Guaira, o prin­cipal porto venezuelano. A bem dizer, na zona das praias, refugio de fim-de-semana para quem vem de Caracas. Há muitos anos, La Guaira era, também, o principal ponto de entrada de emigração. Um dos emigrantes que conheci, o Sr. Segismun­do, veio dos Açores, de Ponta Delgada, nesses anos longínquos, creio que numa das derradeiras viagens do Santa Maria. É um homem bom e divertido. E imagi­no-o, micaelense (ainda hoje conserva o sotaque admirável), enfrentando os trópi­cos em La Guaira vestido como se es­tivesse no Inverno europeu, de sobretudo, ainda mal refeito dos dias passados no na­vio; fosse como fosse, era preciso encontrar trabalho.

Ao fim de um dia em La Guaira, visitando as tabernas, cum­primentando os portugueses que ia encontrando, despedindo-se dos que regres­savam, Segismundo (que mais tarde seria aquilo que nós chamamos «um próspero comerciante»), fez o seu primeiro negócio na Venezuela: vendeu o sobretudo, ga­nhou algum dinheiro local; ou seja, reco­meçou a vida. E, como muitos outros por­tugueses, dispôs-se a atravessar o Cerro Ávila e a chegar onde chegam a ambição, a coragem, o sonho e o desejo de aventura dos que atravessam o mundo para plantar uma árvore no coração da Amazónia.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2007

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