Portugueses que atravessaram o mundo
Oiço uma música. Aliás, só a ouviria horas depois, ainda antes de sair de Caracas em direcção ao Norte – o meu sonho era chegar à Venezuela andina, a Merida, onde um grupo de portugueses se instalara perto da cordilheira, repetindo os passos dos primeiros exploradores da bacia do Amazonas, no século XVIII. Uma coisa não tem a ver com a outra, mas na minha imaginação reescrevo a chegada dos portugueses aos Andes, vindos de La Guaira, o porto que servia de entrada dos emigrantes que chegavam à Venezuela, como se repetissem a mesma comoção de Pedro Teixeira, um dos mais misteriosos e fascinantes militares portugueses do Brasil.
Descobri-o às portas do Pará, numa viagem de carro que me levou de São Luiz do Maranhão a Belém do Pará num dia de meteorologia variável: saí de São Luiz com um sol branco e azulado, e entrei com chuva nas florestas do Sul do Pará. Novecentos quilómetros de estrada ruim. A certa altura, no meio de um aguaceiro, como uma aparição fantástica misturando-se à neblina, havia uma estátua. Um quilómetro depois tinha convencido o meu companheiro de viagem a retroceder para saber mais daquela estátua: a do capitão Pedro Teixeira, responsável pela expulsão dos franceses do Maranhão, fundador de Belém do Pará e, vim a saber depois, o aventureiro que, em 1637 – acompanhado de meia centena de soldados portugueses e de mil índios – delimitou toda a bacia amazónica, entre o Pará e o actual Equador – onde, diz-se, plantou uma árvore para comemorar a travessia e dar um toque humano às florestas desabitadas daquela geografia. Ou seja, navegou pelo Grande Rio, tomando todos os territórios para, graças a ele, se estabelecer a soberania portuguesa sobre a Amazónia. Morreria em 1641, como capitão-mor do Grão-Pará e depois de uma vida de guerreiro, de aventureiro e de herói viajante.
Trezentos e cinquenta anos depois refiz essa viagem em homenagem a Pedro Teixeira e subi o Amazonas num navio que levava o seu nome. Ao ver os picos nublados e verde-escuros da Venezuela andina, lembrei-me dos portugueses que, também trezentos anos depois de Pedro Teixeira, atravessaram vales e florestas para se estabelecerem num território adverso, desconhecido e que hoje é incerto.
Por isso ouvi essa música em Caracas, há uns meses – era uma pequena orquestra que tocava «música do Caribe», ritmos do Panamá, da Venezuela, da Colômbia, do Equador. Todos os músicos eram portugueses, reunidos num palco de circunstância, sorrindo, vestidos como as velhas orquestras de baile. Nunca como nessas circunstâncias admiro os portugueses, imaginando-os a chegar a La Guaira depois de uma grande travessia do Atlântico. Deviam conhecer La Guaira, o principal porto venezuelano. A bem dizer, na zona das praias, refugio de fim-de-semana para quem vem de Caracas. Há muitos anos, La Guaira era, também, o principal ponto de entrada de emigração. Um dos emigrantes que conheci, o Sr. Segismundo, veio dos Açores, de Ponta Delgada, nesses anos longínquos, creio que numa das derradeiras viagens do Santa Maria. É um homem bom e divertido. E imagino-o, micaelense (ainda hoje conserva o sotaque admirável), enfrentando os trópicos em La Guaira vestido como se estivesse no Inverno europeu, de sobretudo, ainda mal refeito dos dias passados no navio; fosse como fosse, era preciso encontrar trabalho.
Ao fim de um dia em La Guaira, visitando as tabernas, cumprimentando os portugueses que ia encontrando, despedindo-se dos que regressavam, Segismundo (que mais tarde seria aquilo que nós chamamos «um próspero comerciante»), fez o seu primeiro negócio na Venezuela: vendeu o sobretudo, ganhou algum dinheiro local; ou seja, recomeçou a vida. E, como muitos outros portugueses, dispôs-se a atravessar o Cerro Ávila e a chegar onde chegam a ambição, a coragem, o sonho e o desejo de aventura dos que atravessam o mundo para plantar uma árvore no coração da Amazónia.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2007
Descobri-o às portas do Pará, numa viagem de carro que me levou de São Luiz do Maranhão a Belém do Pará num dia de meteorologia variável: saí de São Luiz com um sol branco e azulado, e entrei com chuva nas florestas do Sul do Pará. Novecentos quilómetros de estrada ruim. A certa altura, no meio de um aguaceiro, como uma aparição fantástica misturando-se à neblina, havia uma estátua. Um quilómetro depois tinha convencido o meu companheiro de viagem a retroceder para saber mais daquela estátua: a do capitão Pedro Teixeira, responsável pela expulsão dos franceses do Maranhão, fundador de Belém do Pará e, vim a saber depois, o aventureiro que, em 1637 – acompanhado de meia centena de soldados portugueses e de mil índios – delimitou toda a bacia amazónica, entre o Pará e o actual Equador – onde, diz-se, plantou uma árvore para comemorar a travessia e dar um toque humano às florestas desabitadas daquela geografia. Ou seja, navegou pelo Grande Rio, tomando todos os territórios para, graças a ele, se estabelecer a soberania portuguesa sobre a Amazónia. Morreria em 1641, como capitão-mor do Grão-Pará e depois de uma vida de guerreiro, de aventureiro e de herói viajante.
Trezentos e cinquenta anos depois refiz essa viagem em homenagem a Pedro Teixeira e subi o Amazonas num navio que levava o seu nome. Ao ver os picos nublados e verde-escuros da Venezuela andina, lembrei-me dos portugueses que, também trezentos anos depois de Pedro Teixeira, atravessaram vales e florestas para se estabelecerem num território adverso, desconhecido e que hoje é incerto.
Por isso ouvi essa música em Caracas, há uns meses – era uma pequena orquestra que tocava «música do Caribe», ritmos do Panamá, da Venezuela, da Colômbia, do Equador. Todos os músicos eram portugueses, reunidos num palco de circunstância, sorrindo, vestidos como as velhas orquestras de baile. Nunca como nessas circunstâncias admiro os portugueses, imaginando-os a chegar a La Guaira depois de uma grande travessia do Atlântico. Deviam conhecer La Guaira, o principal porto venezuelano. A bem dizer, na zona das praias, refugio de fim-de-semana para quem vem de Caracas. Há muitos anos, La Guaira era, também, o principal ponto de entrada de emigração. Um dos emigrantes que conheci, o Sr. Segismundo, veio dos Açores, de Ponta Delgada, nesses anos longínquos, creio que numa das derradeiras viagens do Santa Maria. É um homem bom e divertido. E imagino-o, micaelense (ainda hoje conserva o sotaque admirável), enfrentando os trópicos em La Guaira vestido como se estivesse no Inverno europeu, de sobretudo, ainda mal refeito dos dias passados no navio; fosse como fosse, era preciso encontrar trabalho.
Ao fim de um dia em La Guaira, visitando as tabernas, cumprimentando os portugueses que ia encontrando, despedindo-se dos que regressavam, Segismundo (que mais tarde seria aquilo que nós chamamos «um próspero comerciante»), fez o seu primeiro negócio na Venezuela: vendeu o sobretudo, ganhou algum dinheiro local; ou seja, recomeçou a vida. E, como muitos outros portugueses, dispôs-se a atravessar o Cerro Ávila e a chegar onde chegam a ambição, a coragem, o sonho e o desejo de aventura dos que atravessam o mundo para plantar uma árvore no coração da Amazónia.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2007
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