abril 22, 2006

Evocação da adolescência

Fomos abalar o estômago no restaurante A Fronteira, perto do Guincho.Petiscos, saladinhas, produtos que "vem da terra", cerveja a copo, tudo o que vem a rede da Primavera.

É natural que a Primavera nos afaste momentaneamente das grandes gastronomias - eu recordo coisas simples, como essa. O gosto do primeiro golo de cerveja - o da primeira aventura como adolescentes. Julgávamos que era Verão mas, na verdade, estávamos a meio da Primavera e ainda havia aulas. Tínhamos quinze anos. Dezasseis. Havia um brilho imbecil nas tardes de Verão (julgávamos que era Verão), e um reflexo alaranjado no entardecer; nada que não venha na literatura. Romances de aventuras, policiais, séries de televisão, primeiros romances a sério, choupos à beira do rio, passeios de bicicleta, creme Nívea na praia, areal a perder de vista, pinhais, dunas. Posso mencionar o primeiro beijo? Posso. Essas coisas têm mais probabilidade de terem acontecido durante o Verão. Tal como a primeira cerveja, a primeira comida saboreada entre amigos, fora de casa.

Na cidade da minha adolescência era na Primavera que começávamos a frequentar tasquinhas, a apreciar a "comida de boteco", a distinguir a comida domestica (geralmente fabulosa, apetecível passados estes anos) dos pratinhos de petiscos servidos para satisfação do nosso paladar imbecil, adolescente, sem gosto. O nosso apetite era descontrolado, a nossa noção do gosto era discutível (ainda hoje o é). Mas vínhamos da praia, vínhamos do rio, vínhamos do jardim e gostávamos daquela experiência. Era a primeira partilha. Um dia provaríamos a primeira ostra, o primeiro mexiIhão verdadeiramente fresco. Só mais tarde aprenderíamos que o melhor mexilhão podia não ser aquele, carnudo, mas que a concentração de sabor e de intensidade viria nos exemplares mais pequenos; e saberíamos que a melhor amêijoa não era a que vem nas fotografias - mas aquela, clara e olorosa, que se encontra à beira dos viveiros, rodeada de mar, de água salgada por perto. Também descobríamos que havia mais coisas para além dos sabores essenciais, dos hambúrgueres (são uma coisa tardia na minha vida, sim, mas existem, não vale a pena ignorá-los), das texturas infantis. E também descobríamos a salada de polvo, o prazer de saborear caracóis para iluminar com cerveja de má qualidade, os petiscos saídos da grelha, as saladinhas de Verão (mas estávamos na Primavera, eu sei), as lulas de coentrada, a salada de búzios.

Um dia destes parámos ao acaso, vindos do Guincho, no A Fronteira, outrora um restaurante especializado em grelhados (nada negligenciável, aliás) - e deparámos com uma enorme quantidade de mesas à disposição daquele apetite de quem vem dos areais diante do mar. O apetite, menciono-o porque é uma das razões essenciais do nosso destino. Os miúdos queriam mariscos frescos, e havia - com melhor companhia do que eu, deglutiram amêijoas frescas, mexilhões que ainda respiravam a maresia. E o resto da mesa comoveu-se com a lista muito serra & mar onde havia alheiras de Montalegre e presuntos de Chaves, salpicão ou pernil das encostas daquele grande vale transmontano (até salada de orelha fumada havia), salada de polvo sem vinagrete excessivo, pãozinho quente e, precisamente, caracóis. Eu bebi cerveja - o meu estômago precisava de descansar de erudição. As amêijoas, essas, eram fresquíssimas e distintas (eu tinha saudades das conquilhas do Eduardinho, na Parede), quase melhores do que a avalanche de mariscos oferecidos, entre sapateiras desfeitas com molhos onde se detecta a presença de mostarda picante, queijinhos, vinagretes, ovinhos, carnes inocentes.

Somos selvagens, sim. O pecado espreita-nos a cada esquina, devorando-nos o paladar, alertando-nos para o facto de muitas vezes precisarmos de pisar essa fronteira entre o paladar e o gozo descomprometido. Desta vez foi assim.


À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 12
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes: 2
Portos e Madeiras: 1
Uísques: 10
Aguardentes portuguesas: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil
Levar crianças: Sim
Área de fumadores: Não
Reserva: Não
Preço médio: 15 Euros

Restaurante A FRONTEIRA
R. N.ª S.ª da Assunção,
Malveira da Serra - Cascais
Tel: 21 487 0638
Fecha à segunda-feira
Aberto das I6h00 às 02h00

In Revista Notícias Sábado – 22 Abril 2006