O sabor amargo do Verão
Os Lusitanos já bebiam muita cerveja, mas os portugueses têm hoje vários tipos à escolha. Provámos 16 cervejas e elegemos as melhores de cada género.
A vida não é simples - e até para beber cerveja é necessário algum esforço, precisamente porque não há prazer verdadeiro sem o prazer de compreendê-lo. Poderíamos, para isso, recuar até à sua historia milenar: a herança dos sumérios e dos incas, dos egípcios e dos belgas, dos escandinavos e dos germânicos, e assinalar a presença da cerveja na literatura desde a epopeia de Gilgamesh (onde Enkidu se torna humano e civilizado pelo facto de saber apreciar a sua cerveja) até às narrativas dos Andes. E poderíamos, está claro, registar as suas evocações estivais e certamente refrescantes. Mas a verdade é esta: a cerveja não tem boa fama entre nós, apesar de ser bastante consumida - o que não significa "bem consumida". Muitos argumentam que a tradição vinícola portuguesa, nobre e importante, desclassifica automaticamente a cerveja nas nossas tradições e, claro na nossa economia.
Pode ser. Mas os lusitanos, palavra de Estrabão, eram grandes bebedores e produtores de cerveja embora conhecessem o vinho - que reservavam para as grandes ocasiões. Essa cerveja dos lusitanos, bem como a de toda a antiguidade, era muito diferente da que hoje se pode apreciar; ela era, de certa maneira, o "pão líquido", apreciada pelas suas qualidades nutricionais quase tanto como pelo "espírito leve e festivo" que a sua ingestão proporcionava. Conrad Seidl, considerado quase unanimemente o "papa da cerveja", autor de vários estudos e trabalhos de divulgação sobre o assunto, assinala que "só se conhecem duas culturas, a dos esquimós e a dos aborígenes da Austrália, que jamais se ocuparam com a fabricação da cerveja" - precisamente porque não tinham agricultura.
A verdade é que em Portugal não temos actualmente uma tradição na cultura da cerveja, ou construída em redor da cerveja, da sua memória e da sua qualidade. Tomada como refresco ligeiramente alcoólico (o que é uma pena), despromovida a categoria de "bebida pouco nobre" diante dos vinhos cada vez mais notáveis que se produzem entre nós, a cerveja é, no entanto, pela Europa fora, na América e na Austrália, objecto de mais atenção e de mais cuidado. As tradições são diferentes, evidentemente - e não se substituem umas às outras, nem se excluem com horror. A cerveja tem uma história feita de glórias e de pesquisas intensas, está ligada a uma cultura (de que conhecemos sobretudo a da Europa central) e a um conjunto de hábitos civilizacionais. Para falar das qualidades de uma cerveja seria também necessário falar do mundo que ele evoca. Razão pela qual, ao contrário do que dizem os seus detractores, 'a cerveja não é só cerveja'. Ou seja: 'é a cerveja, o seu tipo e a sua circunstância'.
Beber é um acto convivial, de sociedade, amigável, literário até. Repetimos, ao elevar os nossos copos, gestos de uma tradição: a do riso, da conversa, da troca de frases, da comunhão. Não tem grande metafísica. Não tem grande dificuldade. Mas, por detrás de cada cerveja há uma história e um trabalho notável, um conhecimento do paladar - qualquer visita a uma 'brasserie' perto das abadias belgas que ainda produzem cerveja artesanal (são actualmente cinco as "cervejas de abadia" oficialmente reconhecidas como tal), a uma cervejaria na Alemanha ou na Republica Checa, a um velho 'pub' inglês, mostra que há razoes para desconfiar dos que dizem que uma cerveja é só uma cerveja.
Em primeiro lugar, cada uma delas corresponde a um tipo e a uma circunstância. Temperaturas mais baixas exigem cervejas menos claras, mais densas, geralmente mais escuras, até com teor alcoólico mais elevado; o Verão quente do sul ou os trópicos favorecem a escolha de cervejas leves, refrescantes, abertas, ligeiramente amargas. De igual modo, é natural que um português (que consome essencialmente as 'lagers' dominantes) tenha dificuldade em apreciar a complexidade de uma 'doppelbock' alemã adocicada, de alto teor alcoólico, uma 'ale' escocesa, encorpada, ou até uma cerveja de trigo, turva e amarga. Da mesma forma, alguém que tenha sido criado na crença de que só as cervejas belgas trapistas tem qualidade, por exemplo, terá dificuldade em acreditar que as lager americanas ou australianas merecem o nome de cerveja. Mas a verdade é que nenhuma dessas cervejas é de má qualidade - são apenas diferentes, e obedecem a um determinado tipo de construção e de tradição. Regra numero um: o bebedor de cerveja deve estar disponível para as diferenças entre elas.
Dizer que a cerveja brasileira, por exemplo, é leve e clara, incorre num erro de perspectiva: não há "uma cerveja brasileira", mas um tipo dominante de 'lager' brasileira ('lager' é o tipo dominante de cerveja no mundo - como as nossas Sagres e Super Bock), e que é completamente distinta de outras cervejas do Brasil, como a Schmitt, a Eisenbahn ou a Baden Baden, mais artesanais, complexas e de tradição europeia. Da mesma forma, não há "uma cerveja americana" (como a Bud, clara e fácil de beber, bem elaborada) - nem uma cerveja portuguesa.
Essas diferenças fazem a sua grandiosidade e emprestam ao acto de beber um tom mais cuidadoso e tranquilo. Apreciar a sua cor (do tom claro até ao negro opaco, passando pelo dourado, pelo rubi, pelo alaranjado, pelo castanho escuro), o seu sabor (amargo, de lúpulo; afrutado, ou licoroso e com reflexos de caramelo nas mais escuras, com maltes mais tostados), o seu aroma (intenso, leve, floral, achocolatado), é trabalho para especialistas extremamente bem preparados - mas não custa começar a prestar atenção aos pormenores. Uma cerveja é também feita deles, como se acentua nas notas de prova que se seguem. Existem, em Portugal, cervejas de razoável qualidade - elas são, também, produto do rejuvenescimento e maior exigência do mercado, para além do facto de hoje não podermos esconder, nos nossos supermercados, a abertura de fronteiras que nos permite saborear cervejas importadas de tipos diferentes. O aparecimento de novas cervejas tem a ver com essa procura da qualidade. Vamos a elas.
A vida não é simples - e até para beber cerveja é necessário algum esforço, precisamente porque não há prazer verdadeiro sem o prazer de compreendê-lo. Poderíamos, para isso, recuar até à sua historia milenar: a herança dos sumérios e dos incas, dos egípcios e dos belgas, dos escandinavos e dos germânicos, e assinalar a presença da cerveja na literatura desde a epopeia de Gilgamesh (onde Enkidu se torna humano e civilizado pelo facto de saber apreciar a sua cerveja) até às narrativas dos Andes. E poderíamos, está claro, registar as suas evocações estivais e certamente refrescantes. Mas a verdade é esta: a cerveja não tem boa fama entre nós, apesar de ser bastante consumida - o que não significa "bem consumida". Muitos argumentam que a tradição vinícola portuguesa, nobre e importante, desclassifica automaticamente a cerveja nas nossas tradições e, claro na nossa economia.
Pode ser. Mas os lusitanos, palavra de Estrabão, eram grandes bebedores e produtores de cerveja embora conhecessem o vinho - que reservavam para as grandes ocasiões. Essa cerveja dos lusitanos, bem como a de toda a antiguidade, era muito diferente da que hoje se pode apreciar; ela era, de certa maneira, o "pão líquido", apreciada pelas suas qualidades nutricionais quase tanto como pelo "espírito leve e festivo" que a sua ingestão proporcionava. Conrad Seidl, considerado quase unanimemente o "papa da cerveja", autor de vários estudos e trabalhos de divulgação sobre o assunto, assinala que "só se conhecem duas culturas, a dos esquimós e a dos aborígenes da Austrália, que jamais se ocuparam com a fabricação da cerveja" - precisamente porque não tinham agricultura.
A verdade é que em Portugal não temos actualmente uma tradição na cultura da cerveja, ou construída em redor da cerveja, da sua memória e da sua qualidade. Tomada como refresco ligeiramente alcoólico (o que é uma pena), despromovida a categoria de "bebida pouco nobre" diante dos vinhos cada vez mais notáveis que se produzem entre nós, a cerveja é, no entanto, pela Europa fora, na América e na Austrália, objecto de mais atenção e de mais cuidado. As tradições são diferentes, evidentemente - e não se substituem umas às outras, nem se excluem com horror. A cerveja tem uma história feita de glórias e de pesquisas intensas, está ligada a uma cultura (de que conhecemos sobretudo a da Europa central) e a um conjunto de hábitos civilizacionais. Para falar das qualidades de uma cerveja seria também necessário falar do mundo que ele evoca. Razão pela qual, ao contrário do que dizem os seus detractores, 'a cerveja não é só cerveja'. Ou seja: 'é a cerveja, o seu tipo e a sua circunstância'.
Beber é um acto convivial, de sociedade, amigável, literário até. Repetimos, ao elevar os nossos copos, gestos de uma tradição: a do riso, da conversa, da troca de frases, da comunhão. Não tem grande metafísica. Não tem grande dificuldade. Mas, por detrás de cada cerveja há uma história e um trabalho notável, um conhecimento do paladar - qualquer visita a uma 'brasserie' perto das abadias belgas que ainda produzem cerveja artesanal (são actualmente cinco as "cervejas de abadia" oficialmente reconhecidas como tal), a uma cervejaria na Alemanha ou na Republica Checa, a um velho 'pub' inglês, mostra que há razoes para desconfiar dos que dizem que uma cerveja é só uma cerveja.
Em primeiro lugar, cada uma delas corresponde a um tipo e a uma circunstância. Temperaturas mais baixas exigem cervejas menos claras, mais densas, geralmente mais escuras, até com teor alcoólico mais elevado; o Verão quente do sul ou os trópicos favorecem a escolha de cervejas leves, refrescantes, abertas, ligeiramente amargas. De igual modo, é natural que um português (que consome essencialmente as 'lagers' dominantes) tenha dificuldade em apreciar a complexidade de uma 'doppelbock' alemã adocicada, de alto teor alcoólico, uma 'ale' escocesa, encorpada, ou até uma cerveja de trigo, turva e amarga. Da mesma forma, alguém que tenha sido criado na crença de que só as cervejas belgas trapistas tem qualidade, por exemplo, terá dificuldade em acreditar que as lager americanas ou australianas merecem o nome de cerveja. Mas a verdade é que nenhuma dessas cervejas é de má qualidade - são apenas diferentes, e obedecem a um determinado tipo de construção e de tradição. Regra numero um: o bebedor de cerveja deve estar disponível para as diferenças entre elas.
Dizer que a cerveja brasileira, por exemplo, é leve e clara, incorre num erro de perspectiva: não há "uma cerveja brasileira", mas um tipo dominante de 'lager' brasileira ('lager' é o tipo dominante de cerveja no mundo - como as nossas Sagres e Super Bock), e que é completamente distinta de outras cervejas do Brasil, como a Schmitt, a Eisenbahn ou a Baden Baden, mais artesanais, complexas e de tradição europeia. Da mesma forma, não há "uma cerveja americana" (como a Bud, clara e fácil de beber, bem elaborada) - nem uma cerveja portuguesa.
Essas diferenças fazem a sua grandiosidade e emprestam ao acto de beber um tom mais cuidadoso e tranquilo. Apreciar a sua cor (do tom claro até ao negro opaco, passando pelo dourado, pelo rubi, pelo alaranjado, pelo castanho escuro), o seu sabor (amargo, de lúpulo; afrutado, ou licoroso e com reflexos de caramelo nas mais escuras, com maltes mais tostados), o seu aroma (intenso, leve, floral, achocolatado), é trabalho para especialistas extremamente bem preparados - mas não custa começar a prestar atenção aos pormenores. Uma cerveja é também feita deles, como se acentua nas notas de prova que se seguem. Existem, em Portugal, cervejas de razoável qualidade - elas são, também, produto do rejuvenescimento e maior exigência do mercado, para além do facto de hoje não podermos esconder, nos nossos supermercados, a abertura de fronteiras que nos permite saborear cervejas importadas de tipos diferentes. O aparecimento de novas cervejas tem a ver com essa procura da qualidade. Vamos a elas.
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in Revista Notícias Sábado - 22 Abril 2006
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