Grão Mestre
Eça de Queiroz não estava para menos ao relembrar, em 'A Ilustre Casa de Ramires', o momento em que - à meia-noite - Gonçalo obrigou Gago a avivar o lume e a preparar "um café muito forte, um café terrível, Gago amigo! Um café capaz de produzir talento no senhor comendador Barros". A imagem é anedótica. Queirosiana. Nenhum café iluminaria o cérebro do senhor comendador Barros, apesar de a literatura médica europeia do século XVIII Ihe atribuir vários benefícios para o cérebro. A falar verdade, também o tabaco, por exemplo, era visto com entusiasmo como medicamento para doenças do foro respiratório, do aparelho circulatório ou do sistema nervoso. E hoje é o que se sabe.
A historia do café, no entanto, tem outras raízes. Não tão profundas nem tão antigas como as da cerveja, por exemplo, mas o suficiente para alguém suspeitar de que era café a bebida que Helena teria levado de Esparta para Tróia, e que poderia ter sido café a bebida que um xeque Omar (durante a nossa idade média) teria descoberto ao ferver grãos de café, ou que seriam certamente grãos de café o que teriam comido as cabras de certo pastor árabe (na Etiópia, naturalemente, a terra dos primeiros bebedores de café), o que
as teria espevitado anormalmente.
As várias mitologias encontram raízes onde querem encontrá-las e há quem detecte na Bíblia sinais de um cafezinho torrado pelo rei David. Seja como for, é dado adquirido que o cultivo e produção do café teriam começado na Etiópia e no actual Iemen - e teria sido a partir desse território do Grande Islão (de Meca a Medina, passando pelo Cairo e depois por Constantinopla) que a cultura do café se difundiu. Não apenas como bebida, mas como elemento de sociabilidade. Os cafés americanos, mesmo os bem torrados da Starbucks, não teriam sorte nesse mundo onde nasceram os primeiros estabelecimentos destinados a tomar-se a "infusão magica": Constantinopla, como se disse, Damasco, um pouco por todo o Médio Oriente, até que a fama da bebida chegou a Veneza (o mais antigo dos cafés é o Florian, de 1720, parte essencial da mitologia literária e turística da cidade) e que Sir Walter Raleigh criou e divulgou o habito de tomar café e fumar cachimbo. Daí até chegar à América - a Boston, Filadélfia e Nova Iorque - foi um instante. O café deixava as pessoas nervosas. Excitadas.
Cada um de nós tem uma historia pessoal do "seu café": ou melhor, "daquele café", aquele que fica na memória, treinada para recordar os melhores sabores e as suas consequências em pedaços da nossa vida. Muitas vezes, mais do que o café, a bebida magica que nos reenvia para a Etiópia, para as montanhas da Colômbia, para a humidade de Java ou o calor inconstante do Quénia ou da Tanzânia, o que tem peso na memória é a circunstância em que se toma o café. Como tudo. O apreciador exigente sabe reconhecer as variedades essenciais, arábica e robusta, bem como algumas sub-variedades. Saberá que o arábica ('coffea arabica') é mais delicado, mais oloroso, mesmo nas suas variantes mais desconhecidas, sobretudo chegado da Etiópia, do Iemen ou da América Central - e que o robusta (C. 'canephora') é mais denso, de grão mais pequeno, essencialmente vindo de África e do Brasil. E distinguirá pela cor, uma torrefacção mais clara e ligeira, em tom de canela; uma outra mais escura, em tons de caramelo, vienense; e de gradação em gradação chegara a café torrado, negro, amargo. Além disso, a bebida dependerá também da moagem feita na hora, único processo que pode garantir (já que não é possível proceder à torrefacção caseira, hoje em dia) um sabor completo e intenso do café.
Em meu entender, o melhor processo de obter um café quase perfeito é o que depende de uma cafeteira simples e de água de boa qualidade; era assim que a minha avó o preparava, e não encontrei melhor processo - no fundo da cafeteira depositar umas colheres de café acabado de moer; em seguida, acrescentar água quase em ponto de ebulição, mexer cuidadosamente, deixar descansar até que a poeira assente; servir usando um filtro de pano ou de papel. A minha avó tinha esse costume de logo a seguir a mexer o café juntar uma brasa incandescente ao líquido - que isso servia para absorver as borras de café. Em outros locais (no Brasil, na Guatemala, na Colômbia) vi depositar um pouco de casca de ovo. O da minha avó ficava mais saboroso. Beber um café destes, pese embora a natureza excitante da bebida, é meio caminho para uma digestão tranquila. E apetecível.
A historia do café, no entanto, tem outras raízes. Não tão profundas nem tão antigas como as da cerveja, por exemplo, mas o suficiente para alguém suspeitar de que era café a bebida que Helena teria levado de Esparta para Tróia, e que poderia ter sido café a bebida que um xeque Omar (durante a nossa idade média) teria descoberto ao ferver grãos de café, ou que seriam certamente grãos de café o que teriam comido as cabras de certo pastor árabe (na Etiópia, naturalemente, a terra dos primeiros bebedores de café), o que
as teria espevitado anormalmente.
As várias mitologias encontram raízes onde querem encontrá-las e há quem detecte na Bíblia sinais de um cafezinho torrado pelo rei David. Seja como for, é dado adquirido que o cultivo e produção do café teriam começado na Etiópia e no actual Iemen - e teria sido a partir desse território do Grande Islão (de Meca a Medina, passando pelo Cairo e depois por Constantinopla) que a cultura do café se difundiu. Não apenas como bebida, mas como elemento de sociabilidade. Os cafés americanos, mesmo os bem torrados da Starbucks, não teriam sorte nesse mundo onde nasceram os primeiros estabelecimentos destinados a tomar-se a "infusão magica": Constantinopla, como se disse, Damasco, um pouco por todo o Médio Oriente, até que a fama da bebida chegou a Veneza (o mais antigo dos cafés é o Florian, de 1720, parte essencial da mitologia literária e turística da cidade) e que Sir Walter Raleigh criou e divulgou o habito de tomar café e fumar cachimbo. Daí até chegar à América - a Boston, Filadélfia e Nova Iorque - foi um instante. O café deixava as pessoas nervosas. Excitadas.
Cada um de nós tem uma historia pessoal do "seu café": ou melhor, "daquele café", aquele que fica na memória, treinada para recordar os melhores sabores e as suas consequências em pedaços da nossa vida. Muitas vezes, mais do que o café, a bebida magica que nos reenvia para a Etiópia, para as montanhas da Colômbia, para a humidade de Java ou o calor inconstante do Quénia ou da Tanzânia, o que tem peso na memória é a circunstância em que se toma o café. Como tudo. O apreciador exigente sabe reconhecer as variedades essenciais, arábica e robusta, bem como algumas sub-variedades. Saberá que o arábica ('coffea arabica') é mais delicado, mais oloroso, mesmo nas suas variantes mais desconhecidas, sobretudo chegado da Etiópia, do Iemen ou da América Central - e que o robusta (C. 'canephora') é mais denso, de grão mais pequeno, essencialmente vindo de África e do Brasil. E distinguirá pela cor, uma torrefacção mais clara e ligeira, em tom de canela; uma outra mais escura, em tons de caramelo, vienense; e de gradação em gradação chegara a café torrado, negro, amargo. Além disso, a bebida dependerá também da moagem feita na hora, único processo que pode garantir (já que não é possível proceder à torrefacção caseira, hoje em dia) um sabor completo e intenso do café.
Em meu entender, o melhor processo de obter um café quase perfeito é o que depende de uma cafeteira simples e de água de boa qualidade; era assim que a minha avó o preparava, e não encontrei melhor processo - no fundo da cafeteira depositar umas colheres de café acabado de moer; em seguida, acrescentar água quase em ponto de ebulição, mexer cuidadosamente, deixar descansar até que a poeira assente; servir usando um filtro de pano ou de papel. A minha avó tinha esse costume de logo a seguir a mexer o café juntar uma brasa incandescente ao líquido - que isso servia para absorver as borras de café. Em outros locais (no Brasil, na Guatemala, na Colômbia) vi depositar um pouco de casca de ovo. O da minha avó ficava mais saboroso. Beber um café destes, pese embora a natureza excitante da bebida, é meio caminho para uma digestão tranquila. E apetecível.
Clique na imagem para aumentar
in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006
<< Home