abril 06, 2006

A bebida do pecado

Com a Primavera, a leveza do ar e a primeira onda de calor pedem uma bebida que evoca todos os mitos românticos, devassos e festivos da nossa vida de pecado: o Champagne. Dez sugestões para a temporada.

Lembram-se? "Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos: - Por uma dourada tarde de Outono..." A tarde não era dourada e o champanhe que o depois infeliz Pedro da Maia e o então jovem poeta Alencar bebiam não seria um grande champanhe. João da Ega e Raquel Cohen, sim, beberiam depois um: champanhe excelente, lá mais para o meio de 'Os Maias', seguramente o segundo romance português com mais referências ao champanhe; o primeiro e, seguramente, 'A Cidade e as Serras', onde José Fernandes e Jacinto nos abrem as portas do palacete dos Campos Elíseos onde garrafas de champanhe, geladas e disponíveis, perfumam as paginas da grande literatura, rodeadas de personagens admiráveis, grotescos, saborosos, melancólicos, abandonados, frívolos. Mas tanto em 'Os Maias' como em 'A Cidade e as Serras', o champanhe e o símbolo desse luxo noctívago de Lisboa, bebido no Tavares e nos serões mais festivos, ou - sobretudo - da luxúria que passa, como um véu de santa imoralidade, a tingir as relações entre Carlos da Maia e a trágica Maria Eduarda ou a senhora condessa de Gouvarinho, perfumada de verbena e com os cabelos ruivos em desalinho.

Literatura, enfim. O champanhe é outra coisa. A bebida da luxúria, sem dúvida: sensual, nervosa, reservada para as grandes ocasiões, para as grandes companhias, para as circunstâncias em que nenhuma outra bebida pode festejar ou borbulhar. Dom Perignon, o astuto e divertido monge beneditino a quem se atribui a criação do champanhe em meados do século XVII, não é responsável pela fama de luxuria e pelo rasto de pecado e prazer que a bebi­da arrasta pelas páginas da literatura ou pelo celulóide - nos romances e nos filmes, o champan­he evoca um mundo de brilho, de festa, de euforia; mas, felizmente para todos nós, também de pequena devassidão e, naturalmente, do que quisermos que seja a devassidão, pública ou privada, tensa ou tranquila, feliz ou apenas própria para nunca ser dita. O que fez do champanhe tudo isto? A tradição, o luxo e os mitos que a historia engendrou em redor de uma bebida fantástica.

A verdade é que a região onde nasceu o champan­he (hoje circunscrita legalmente ao Marne, L'Aub, L'Aisne, Haut-Marne e Seine-Marne) foi ocupada e devastada por Atila, marcada pelas invasões militares e pelas batalhas mais sanguinárias da história de Franca, fustigada dramaticamente pela I Guerra, palco da Guerra dos Cem Anos ou da Fronda. Mas também foi aí que os romanos plantaram vinhas e era em Reims que os reis franceses eram coroados e festejados. E o vinho oficial da corte ficou esse, depois de derrotado o Borgonha nas preferências reais: o vinho de champanhe. Não o champanhe como o conhecemos hoje, depois da intervenção dos beneditinos da Abadia de Hautvilliers e dessa personagem que entra no mito da historia da bebida, Dom Perignon.

O santíssimo monge merece os nossos louvores quando se permitiu ver estrelas a partir de vinhos onde deixara resíduos de açúcar. Ele não sabia que o seu vinho tinha bolhas e imitava o ribombar da luxúria porque era guardado em garrafas antes da fermentação estar completa, e ignorava o equilíbrio de açucares exigido por essa segunda fermentação em garrafa - mas a história dos acasos e da pequena ciência vinícola encarregou-se de encontrar explicações e de inventariar os métodos que levam ao champanhe de hoje, a ligação entre as suas castas dominantes (Chardonnay, de uvas brancas, Pinot Noir e Pinot Meunier, de uvas pretas) e a razão pela qual desde os desvarios do duque de Orleães (século XVIII) até à deliciosa madame Clicquot o champanhe foi tão apreciado, estudado e melhorado.

É na Primavera, fundamentalmente, que decorre a segunda fermentação do champanhe, em garrafas. Até se proceder a 'remuage' (aquela meticulosa volta de 1/4 da garrafa, nas galerias e na escuridão das suas caves), a alquimia prossegue; e prosseguirá depois, ainda, até as garrafas estarem preparadas (três anos
para os champanhes 'vintage') para chegar às nossas mãos e para completarem o mito. Havendo já bons vinhos espumantes Portugueses (distribuídos sobretudo pelo Douro, Beiras, Bairrada e Estremadura, e aos quais dedicaremos em breve uma pequena viagem - para provar a excelência do trabalho de algumas casas vinícolas), o que fazemos nestas páginas é 'visitar o mito', o champanhe francês, denominação exclusiva dos vinhos espumantes produzidos naquela região. O leitor - e a leitora, muito mais atenta, acho eu - não quer explicações técnicas sobre prensagem, separação de uvas e de castas, armazenagem e fermentação. Para isso há vasta bibliografia documental; prefiro relembrar Oscar Wilde, que insistia em que "só as pessoas sem imaginação não conseguem encontrar um motivo para beber champanhe". E citar Churchill, o venerando (que dizia que o champanhe "tornava sua inteligência mais ágil"), ao anunciar a entrada das tropas britânicas em Franca, durante a I Guerra: "Lembrem-se, 'gentlemen': não é só pela França que vamos lutar, é pelo champanhe também." Para os cinéfilos, estas recordações são mais do que inúteis. Eles enumeram todas as cenas em que um balde de gelo esconde uma garrafa de champanhe - e o rosto de Joan Fontaine, a preto e branco, quase murmurando: "O champanhe é muito melhor depois da meia-noite, não achas?" Nisso, não estou de acordo - do pequeno-almoco até à ceia tardia, nunca encontrei uma oportunidade para não o bebê-lo.

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in Revista Notícias Sábado – 1 Abril 2006