Patagónia - Toda a luz do céu
Há uma terra onde a tranquilidade da paisagem se associa a uma história humana fantástica. Rondando os Andes, povoada de lagos e de picos negros num céu deslumbrante e limpo, atravessada por caminhos que tanto lembram a solidão das montanhas como a música das florestas, a Patagónia é uma experiência para todos os sentidos.
Se o leitor gosta de ski e de desportos de Inverno, avance até às paginas do guia que conclui esta reportagem — lá encontrara o bastante. Mas se gosta de ser um viajante, lembro-lhe que Bariloche conta, entre os seus bens imperecíveis, uma das mais míticas estações ferroviárias do mundo - a velha e desactivada estação que anunciava a entrada na «verdadeira Patagónia». Não sei se Bruce Chatwin a descreveu como merecia, mas creio que não. A travessia das paisagens, desde Buenos Aires a Bariloche devia ser fantástica e, antes de entrar nas montanhas, esta estação cumpria um papel fundamental. Era um lugar de repouso. Continua a ser: sob o seu tecto mítico e relembrando viajantes e aventureiros, esta agora ocupada por um dos mais belos restaurantes da região, o Hasta que Llegue el Tren, onde se podem provar cerca de 300 vinhos locais e uma boa quantidade de cervejas artesanais. Para não falar da comida, numa região onde a grande especialidade é o cordero andino ou patagónico. Mas, para isso visite o Rincon Patagónico (nos arredores da cidade), por exemplo, um outro restaurante exemplar, temático e cheio de referencias vinícolas.
Mas antes de acabar o princípio da noite no Hasta que Llegue el Tren, vejamos a cidade pela manhã: ao longo do lago, primeiro, alongando-se entre pequenos hotéis familiares; depois o centro, de ruas limpas e civilizadas, com lojas apetecíveis, cafés e chocolaterias, árvores e jardins, e a delicadeza argentina acrescentada de um ar ligeiramente europeu, suíço, alemão, nórdico, educado, honrado. As chocolaterias não me prendem muito, mas há um poliedro, no centro, entre as ruas Bartolome Mitre e Quaglia, onde me detenho várias vezes: é ai que ficam a Mamuschka, a Fenoglio, a Benroth, a Tante Frida e a Rapa Nui - no outro vértice, a histórica Abuela Goye, uma verdadeira instituição local. Apetece entrar em cada uma delas e escolher, escolher, escolher. Na Rapa Nui, inclusive, além dos chocolates encontrei uma selecção imperdível e comovente de cervejas artesanais de El Bolson. Perdi-me.
Bariloche é também a cidade dos pequenos bares, sempre delicados mas com ruído apetecível. O meu preferido, bem no centro, é o Wilkenny: cerveja de tradição irlandesa acima de toda a suspeita, noites de conversa ao balcão, rock& pop, jornais sobre a mesa.
Numa das noites de Bariloche, o meu fantástico guia, Leo Tiberi, anunciou-me a existência do Berlina. No meio do frio, altíssimo frio austral, concluí que a Argentina tem maravilhosas cervejas artesanais. A arte de produzir cerveja cresceu nas terras austrais com uma qualidade insuspeitável. Tenho de Ihes render homenagem: são três irmãos de antepassados italianos, Bruno, Guido e Franco Ferrari - Bruno é o mestre cervejeiro com três anos de estudos em Berlim e muito rock 'n roll no currículo -, que abriram uma cervejaria artesanal nos arredores de Bariloche: o Família Berlina. Os dois irmãos Franco e Guido enviaram Bruno para a Alemanha e sustentaram-no com o imperativo categórico simples: fazes favor de aprender como se produz uma cerveja de grande qualidade, porque a vida não é só gozo e noitadas; durante esses três anos dedicou-se a cerveja e o resto da família não deu o seu dinheiro por mal empregue. De regresso a Bariloche, os três irmãos encarregaram-se de inventar quatro excelentes cervejas, uma altbier, uma rauchbier, uma wheat ale e uma stout. As duas primeiras são superlativas, especialmente a rauchbier, fumada, onde se detecta um trabalho de composição muito barroco na escolha de seis maltes diferentes, com uma boa percentagem de cereais torrados para alem do nível - a altbier, por seu lado, leva um tom de caramelo fantástico que a faz ser muito fresca. Eu recomendo-a como cura para quem ainda não provou cervejas a sério e tem pudor em faze-lo na Europa. Uma Berlina Rauchbier ou uma Berlina Altbier são momentos altíssimos, fabricadas de acordo com a lei. Bariloche estava a resultar.
Mas a vida não é só noitadas. Tem também madrugadas esplêndidas. Perto da colina onde fica o Llao Llao (e diante de dois outros, muito aconselháveis, o Amancay e o Tunquelen), partem os barcos em peregrinação pelo Nahuel Huapi, o lago majestoso, profundo e limpo que rodeia Bariloche e nos leva quase ate ao corarão dos Andes e a fronteira com o Chile. O caminho é belíssimo, encostado ao Brazo Blest, até passar junto do Cerro Lopez, dos seus majestosos 2000 metros de altitude, e dos dois outros pontos inesquecíveis da fronteira andina: Cerro Capilla e Cerro Millaqueo. À chegada a baía Blest, de onde se parte de autocarro para o Chile, é mais do que fantástica: parece uma tinturaria que forneceu todas as cores de uma paisagem de Turner - verdes diluídos, amarelos outonais tingidos de violeta, azuis brilhantes. E o ruído magnifico daquele silêncio que lembra filmes, aventuras, viagens pelo interior da terra, entre pássaros desconhecidos. O ferry, gigantesco, que nos traz desde Puerto Alegre abre sulcos pelo lago Frias, devolvendo-nos a luz entre canyons que descem do céu. Aprendi ali o significado da palavra «cordilheiras»; eu, que já as tinha atravessado, nunca as vira desde o fundo, desde a água, desde o silêncio absoluto.
Daí a duas horas apanhámos boleia de um barco que nos deposita em Puerto Cantaros. E a minha vida mudou bastante desde essa altura, ou pelo menos desde que subi até à Laguna de Los Cántaros e vi os seus picos cobertos de neve, depois de uma subida íngreme e solitária de mais de mil metros, entre cascatas de água, vegetação única, o esplendor da selva e, confesso, uma certa dor nas costas. Mas isso era o menos. A Laguna de Los Cántaros, em meu entender, divide os visitantes do lago Nahuel Huapi em dois grupos: aqueles que subiram até lá e puderam ficar em silêncio durante uma hora ou duas, desaprendendo todas as palavras que podiam descrever o lugar; e aqueles que não o fizeram. Vendo os vulcões ao longe (o Tronador fantástico, o Osorno, o Cabulco, o Pontiagudo ou apenas o Cerro Catedral), acabei por regressar a Bariloche com essa sensação de perdição e de esquecimento, de prazer e de nostalgia. Eu tinha enfrentado a grande beleza das cordilheiras e da sua lagoa nas alturas, e tinha regressado vivo.
Essa nostalgia não desapareceu quando cheguei a La Angostura, uma cidade a cerca de quarenta minutos de viagem de Bariloche, uma espécie de Suiça lacustre, arrumada e perfeita de arquitectura, fundada em 1932. Na verdade, eu queria ir a El Bolson, visitar os velhos hippies que se tinham retirado da vida de hippy e agora se dedicavam à produção de cervejas artesanais e de produtos de agricultura biológica, num vale lindíssimo e perfumado, depois de atravessar os três lagos da região (Gutierrez, Mascardi e Guillelmo). Aí estaria na celebre marca andina do Paralelo 42 e das disputas territoriais entre a Argentina e o Chile. E também não queria perder a beleza de San Martin de los Andes, do lago Lacar e das suas escarpas. Mas acabei por ir até ao fim da península de Quetrihué e ver a mais profunda luz do final de tarde. Nessa altura, eu ainda não sabia — tinha partido, de barco, até ao bosque de Los Arrayanes (o arrayán é uma arvore da Patagónia, alta, com cerca de 15 metros e o seu tronco cor de canela) e subido uns metros pelo arvoredo onde se diz que Walt Disney se inspirou para os seus «desenhos animados». Sobre Walt Disney não me manifesto, mas a luz do final de tarde venceu-me. E a imagem que fica é esta: parados na estrada, Constantino e eu, vendo o dia desaparecer nas águas do lago gigantesco, o lago que devora Bariloche, que devora as cordilheiras, que devora os seus arvoredos fantásticos, cheios de espíritos que não perdoam o esquecimento.
Ao chegar a Bariloche eu precisava de sentir o fim das coisas. É uma sensação que vem da literatura e eu percebi-a quando entrei no Hasta que Llegue el Tren, esse restaurante instalado na velha e desactivada estação ferroviária que, nos seus tempos áureos, tinha recebido milhares de viajantes e de aventureiros que procuravam o fim das coisas. O fim das coisas estava na Patagónia, de facto, que emprestava aquela sensação de vertigem, entre a cordilheira andina e os lagos, entre os picos cobertos de neve e os bosques perfeitos das colinas, sob a luz de um céu limpo como eu suponho que só encontrei na América Latina. Bebi uma cerveja artesanal ao balcão do restaurante. Li as notas que escrevi durante esses dias de Bariloche. Uns dias mais tarde verifiquei que tinha perdido o caderno. Ficava-me apenas a memória. A memória e toda aquela luz do céu.
in Revista Volta ao Mundo – Março 2006
Se o leitor gosta de ski e de desportos de Inverno, avance até às paginas do guia que conclui esta reportagem — lá encontrara o bastante. Mas se gosta de ser um viajante, lembro-lhe que Bariloche conta, entre os seus bens imperecíveis, uma das mais míticas estações ferroviárias do mundo - a velha e desactivada estação que anunciava a entrada na «verdadeira Patagónia». Não sei se Bruce Chatwin a descreveu como merecia, mas creio que não. A travessia das paisagens, desde Buenos Aires a Bariloche devia ser fantástica e, antes de entrar nas montanhas, esta estação cumpria um papel fundamental. Era um lugar de repouso. Continua a ser: sob o seu tecto mítico e relembrando viajantes e aventureiros, esta agora ocupada por um dos mais belos restaurantes da região, o Hasta que Llegue el Tren, onde se podem provar cerca de 300 vinhos locais e uma boa quantidade de cervejas artesanais. Para não falar da comida, numa região onde a grande especialidade é o cordero andino ou patagónico. Mas, para isso visite o Rincon Patagónico (nos arredores da cidade), por exemplo, um outro restaurante exemplar, temático e cheio de referencias vinícolas.
Mas antes de acabar o princípio da noite no Hasta que Llegue el Tren, vejamos a cidade pela manhã: ao longo do lago, primeiro, alongando-se entre pequenos hotéis familiares; depois o centro, de ruas limpas e civilizadas, com lojas apetecíveis, cafés e chocolaterias, árvores e jardins, e a delicadeza argentina acrescentada de um ar ligeiramente europeu, suíço, alemão, nórdico, educado, honrado. As chocolaterias não me prendem muito, mas há um poliedro, no centro, entre as ruas Bartolome Mitre e Quaglia, onde me detenho várias vezes: é ai que ficam a Mamuschka, a Fenoglio, a Benroth, a Tante Frida e a Rapa Nui - no outro vértice, a histórica Abuela Goye, uma verdadeira instituição local. Apetece entrar em cada uma delas e escolher, escolher, escolher. Na Rapa Nui, inclusive, além dos chocolates encontrei uma selecção imperdível e comovente de cervejas artesanais de El Bolson. Perdi-me.
Bariloche é também a cidade dos pequenos bares, sempre delicados mas com ruído apetecível. O meu preferido, bem no centro, é o Wilkenny: cerveja de tradição irlandesa acima de toda a suspeita, noites de conversa ao balcão, rock& pop, jornais sobre a mesa.
Numa das noites de Bariloche, o meu fantástico guia, Leo Tiberi, anunciou-me a existência do Berlina. No meio do frio, altíssimo frio austral, concluí que a Argentina tem maravilhosas cervejas artesanais. A arte de produzir cerveja cresceu nas terras austrais com uma qualidade insuspeitável. Tenho de Ihes render homenagem: são três irmãos de antepassados italianos, Bruno, Guido e Franco Ferrari - Bruno é o mestre cervejeiro com três anos de estudos em Berlim e muito rock 'n roll no currículo -, que abriram uma cervejaria artesanal nos arredores de Bariloche: o Família Berlina. Os dois irmãos Franco e Guido enviaram Bruno para a Alemanha e sustentaram-no com o imperativo categórico simples: fazes favor de aprender como se produz uma cerveja de grande qualidade, porque a vida não é só gozo e noitadas; durante esses três anos dedicou-se a cerveja e o resto da família não deu o seu dinheiro por mal empregue. De regresso a Bariloche, os três irmãos encarregaram-se de inventar quatro excelentes cervejas, uma altbier, uma rauchbier, uma wheat ale e uma stout. As duas primeiras são superlativas, especialmente a rauchbier, fumada, onde se detecta um trabalho de composição muito barroco na escolha de seis maltes diferentes, com uma boa percentagem de cereais torrados para alem do nível - a altbier, por seu lado, leva um tom de caramelo fantástico que a faz ser muito fresca. Eu recomendo-a como cura para quem ainda não provou cervejas a sério e tem pudor em faze-lo na Europa. Uma Berlina Rauchbier ou uma Berlina Altbier são momentos altíssimos, fabricadas de acordo com a lei. Bariloche estava a resultar.
Mas a vida não é só noitadas. Tem também madrugadas esplêndidas. Perto da colina onde fica o Llao Llao (e diante de dois outros, muito aconselháveis, o Amancay e o Tunquelen), partem os barcos em peregrinação pelo Nahuel Huapi, o lago majestoso, profundo e limpo que rodeia Bariloche e nos leva quase ate ao corarão dos Andes e a fronteira com o Chile. O caminho é belíssimo, encostado ao Brazo Blest, até passar junto do Cerro Lopez, dos seus majestosos 2000 metros de altitude, e dos dois outros pontos inesquecíveis da fronteira andina: Cerro Capilla e Cerro Millaqueo. À chegada a baía Blest, de onde se parte de autocarro para o Chile, é mais do que fantástica: parece uma tinturaria que forneceu todas as cores de uma paisagem de Turner - verdes diluídos, amarelos outonais tingidos de violeta, azuis brilhantes. E o ruído magnifico daquele silêncio que lembra filmes, aventuras, viagens pelo interior da terra, entre pássaros desconhecidos. O ferry, gigantesco, que nos traz desde Puerto Alegre abre sulcos pelo lago Frias, devolvendo-nos a luz entre canyons que descem do céu. Aprendi ali o significado da palavra «cordilheiras»; eu, que já as tinha atravessado, nunca as vira desde o fundo, desde a água, desde o silêncio absoluto.
Daí a duas horas apanhámos boleia de um barco que nos deposita em Puerto Cantaros. E a minha vida mudou bastante desde essa altura, ou pelo menos desde que subi até à Laguna de Los Cántaros e vi os seus picos cobertos de neve, depois de uma subida íngreme e solitária de mais de mil metros, entre cascatas de água, vegetação única, o esplendor da selva e, confesso, uma certa dor nas costas. Mas isso era o menos. A Laguna de Los Cántaros, em meu entender, divide os visitantes do lago Nahuel Huapi em dois grupos: aqueles que subiram até lá e puderam ficar em silêncio durante uma hora ou duas, desaprendendo todas as palavras que podiam descrever o lugar; e aqueles que não o fizeram. Vendo os vulcões ao longe (o Tronador fantástico, o Osorno, o Cabulco, o Pontiagudo ou apenas o Cerro Catedral), acabei por regressar a Bariloche com essa sensação de perdição e de esquecimento, de prazer e de nostalgia. Eu tinha enfrentado a grande beleza das cordilheiras e da sua lagoa nas alturas, e tinha regressado vivo.
Essa nostalgia não desapareceu quando cheguei a La Angostura, uma cidade a cerca de quarenta minutos de viagem de Bariloche, uma espécie de Suiça lacustre, arrumada e perfeita de arquitectura, fundada em 1932. Na verdade, eu queria ir a El Bolson, visitar os velhos hippies que se tinham retirado da vida de hippy e agora se dedicavam à produção de cervejas artesanais e de produtos de agricultura biológica, num vale lindíssimo e perfumado, depois de atravessar os três lagos da região (Gutierrez, Mascardi e Guillelmo). Aí estaria na celebre marca andina do Paralelo 42 e das disputas territoriais entre a Argentina e o Chile. E também não queria perder a beleza de San Martin de los Andes, do lago Lacar e das suas escarpas. Mas acabei por ir até ao fim da península de Quetrihué e ver a mais profunda luz do final de tarde. Nessa altura, eu ainda não sabia — tinha partido, de barco, até ao bosque de Los Arrayanes (o arrayán é uma arvore da Patagónia, alta, com cerca de 15 metros e o seu tronco cor de canela) e subido uns metros pelo arvoredo onde se diz que Walt Disney se inspirou para os seus «desenhos animados». Sobre Walt Disney não me manifesto, mas a luz do final de tarde venceu-me. E a imagem que fica é esta: parados na estrada, Constantino e eu, vendo o dia desaparecer nas águas do lago gigantesco, o lago que devora Bariloche, que devora as cordilheiras, que devora os seus arvoredos fantásticos, cheios de espíritos que não perdoam o esquecimento.
Ao chegar a Bariloche eu precisava de sentir o fim das coisas. É uma sensação que vem da literatura e eu percebi-a quando entrei no Hasta que Llegue el Tren, esse restaurante instalado na velha e desactivada estação ferroviária que, nos seus tempos áureos, tinha recebido milhares de viajantes e de aventureiros que procuravam o fim das coisas. O fim das coisas estava na Patagónia, de facto, que emprestava aquela sensação de vertigem, entre a cordilheira andina e os lagos, entre os picos cobertos de neve e os bosques perfeitos das colinas, sob a luz de um céu limpo como eu suponho que só encontrei na América Latina. Bebi uma cerveja artesanal ao balcão do restaurante. Li as notas que escrevi durante esses dias de Bariloche. Uns dias mais tarde verifiquei que tinha perdido o caderno. Ficava-me apenas a memória. A memória e toda aquela luz do céu.
in Revista Volta ao Mundo – Março 2006
<< Home