abril 15, 2006

Uma casa familiar

O Paparico, na histórica Rua de Costa Cabral, tem um cardápio reduzido e as suas salas dão um ar familiar às refeições. Mas os cinco ou seis pratos de eleição mostram a qualidade de ingredientes históricos: boa carne, bom bacalhau.

A vida dos restaurantes pode ser uma aventura e nós não darmos por isso. Somos gente de fora. Entramos e sentamo-nos. Temos as nossas exigências, os nossos apetites. Muitas vezes, as nossas manias, os nossos tiques, hábitos de anos – gostamos da mesa desta ou daquela maneira, apreciamos um sabor, enternecemo-nos, julgamos que há uma barreira entre nós e a barbárie. Nos seus livros, Anthony Bourdain contribuiu em muito para que víssemos um pouco do lado de lá: o fogo na grelha, os dedos queimados, o chef que se levanta às seis da manhã e só voltará à cama depois da meia-noite, a neurose dos fornecimentos que não chegam, o risco de um cozinheiro que não vem nesse dia, o ingrediente estragado. É o outro lado. Claro que não temos muito a ver com “o outro lado” – pagamos aquele preço por estarmos do outro lado do muro, do outro lado da barbárie, do outro lado do fogo na grelha. Mas, mesmo assim, admito que é uma aventura – e as aventuras tanto podem conduzir ao paraíso como ao inferno. Felizmente, lembramo-nos mais do paraíso.

Veja-se o caso de Yuko e de António Cardoso; ela, japonesa, ele, português de Resende – são ambos a alma e o corpo do Paparico, um restaurante que apenas abre para jantares, das oito da noite em diante: lista pequena, diminuta, sujeita a hábitos da casa e a uma opção clara sobre o que o nosso estômago deve receber com ou sem aplauso. Um dia destes fomos lá em peregrinação – mesas (largas, convenientemente largas) cobertas por toalhas brancas, paredes de pedra, o tom “rústico” que sobreviveu nas cidades e é uma memória de outras memórias rurais ali estabelecidas há 16 anos, sensivelmente.
Para abrir, além de um polvo com molho verde cozido no ponto (e temperado sem aquele vinagrete que esconde o sabor e a textura do polvo, propriamente dito), havia um pratinho de salpicão e uma salada de bacalhau. Começo por aplaudir esta última: pedaços de bacalhau (não lascas: refiro-me a pedaços), cru e bem demolhado, abrilhantados por um azeite de boa qualidade – e quase nada mais, porque nada mais era necessário. Com um bacalhau assim, qualquer um de nós era feliz. Enquanto não chegavam os pratos quentes, propriamente ditos, vieram umas pataniscas de bacalhau, igualmente saborosas, quase enformadas, redondinhas, com o sal no ponto.

Refiro o “sal no ponto” porque a comida no Paparico deve ter sido vigiada pela Fundação Portuguesa de Cardiologia nessa matéria, a do sal. Nem um grão a mais. Não provei o cabrito assado no forno (cuja matéria prima vem de Armamar, no Douro), nem o arroz de entrecosto no forno – ambos devem ser encomendados com antecedência e o cabrito, então, tem de ser pedido de uma semana para a outra ou com o fim-de-semana pelo meio. Mas comi o bacalhau assado na brasa com batata à murro, bem cozinhado, realçando-lhe as qualidades, na companhia de um azeite generoso. E estava bom: uma posta enorme que serve à vontade para duas pessoas (como sugere, aliás, a própria casa). Ficaram-me no olho o arroz de bacalhau e o polvo grelhado, que hão-de sucumbir em próxima visita.

Continuando o passeio pelo cardápio, mais quatro propostas, agora de carne: as costelinhas à Paparico, a espetada grelhada, a vitela grelhada com batata à murro e a posta arouquesa. Optámos por esta última: um naco surpreendente, ideal para quem aprecia realmente carne, suculento no interior, rosado, humedecido – e ligeiramente tostado na sua base – acompanhado por legumes salteados, batatinhas e o suco da própria carne. Quando se cortou a carne em fatias, houve, digamos, um novo aplauso. Tudo isto antecedeu um excelente leite-creme queimadinho, muito perfumado, com nota francamente positiva.

De certa maneira, o frequentador fica surpreendido com a pacatez do cardápio e das duas salas (mais um barzinho que mais tarde, assim seja posta em prática a lei sobre o consumo de tabaco, servirá para área de fumadores); o cardápio reduzido dá a ideia de que se trata de uma casa (a de António e de Yuko) a que se acrescentou um restaurante onde se pode jantar em regime familiar. O que é uma surpresa a que nos devemos habituar, com o tempo e com a qualidade dos ingredientes que entram e dos pratos que saem da cozinha.


À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 11
Vinhos verdes: 8
Portos e Madeiras: 12
Uísques: 25
Aguardentes portuguesas: 20

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: não
Área não-fumadores: sim
Reserva: aconselhável
Preço médio: 35 euros

Restaurante O Paparico
Rua Costa Cabral, 2343
4200-232 Porto
Tel: 91 9991121
Fecha domingos e segundas. Aberto apenas aos jantares.

in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006