abril 10, 2006

O público e o privado

A TV Cabo, zelando pelos seus interesses, substituiu o GNT pela TV Record. Para quem está distraído, eu explico o canal GNT, produzido pela Globo, não é o GNT brasileiro propriamente dito (que é um magnífico canal de televisão) - é o GNT português, um canal que a Globo preparou, estudou e pôs no ar tendo em conta que o seu público era português e tinha interesses específicos. Alguma da programação que o GNT português emitiu foi produção própria para Portugal. A TV Record é um dos piores canais de televisão do Brasil, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e aos seus negócios e especulações, onde é possível o telespectador passar cinco ou seis agradáveis horas diárias a ouvir sermões nocturnos dos seus "pastores" sobre como obter bons resultados na vida de cada um através do pagamento de dízimo e participação nas cerimónias da IURD. Eu não tenho nada contra a IURD, excepto que devia ser investigada em função dos seus negócios e da elevada circulação de dinheiro que toda a gente conhece. Adiante. Além das sessões alegadamente religiosas, a TV Record emite aquela que é, reconhecidamente, a pior informação jornalística do Brasil (desportiva inclusive), uns interessantes blocos diários sobre violência urbana, durante os quais uns energúmenos se exaltam alarvemente, além de umas telenovelas de qualidade deprimente. Adiante. Ao que nos interessa.

E o que nos interessa é isto quem escolheu a TV Cabo, ou seja, a PT, para figurar no seu pacote de canais em "representação" do Brasil? Está bom de ver e é muito fácil adivinhar - basta, aliás, olhar para a PT: escolheu a TV Record, naturalmente. A mim, e tendo em conta a qualidade dos serviços prestados pela PT e pela TV Cabo, não me surpreende esta escolha, não acho escandaloso.

Surpreende-me como cidadão interessado em coisas brasileiras - na cultura brasileira, na música brasileira, no futebol brasileiro, na política brasileira. Desse ponto de vista, acho escandaloso que o GNT seja substituído pela TV Record. Também me surpreende como telespectador interessado em televisão. Desse ponto de vista, sinceramente, o que o GNT fez, o que o GNT produz, o que o GNT podia produzir, é inegavelmente superior ao que se possa imaginar que um dia a TV Record possa emitir (para não falar da televisão portuguesa).Com o fim do GNT no pacote de canais monopolista da TV Cabo, deixamos de ter acesso aos melhores programas da televisão brasileira - desde o "Manhattan Connection", que devia obrigar alguns dos nossos comentadores políticos a pensar, até ao "Altas horas", do "Jô Soares" ao "Saia justa", além dos melhores blocos informativos brasileiros, emitidos a partir da Globo e do Globo News.

Parece que a questão é dinheiro. Nesse capítulo não me atrevo a discutir os superiores interesses da PT e da TV Cabo estão em jogo e nada a fazer nesse capítulo (tal como quando acabou com o Arte). Se são os interesses privados da PT e da TV Cabo que estão em jogo, aceito o jogo. Mas exijo que a ERC, por exemplo (essa entidade reguladora da comunicação social que a "fome de controlo da sociedade" tornou necessária), comente o assunto - e já. E, nesse caso, salvaguardado o interesse privado e o amor apaixonado que a TV Cabo agora devota à estação da IURD, o interesse público pede o fim imediato do controlo quase monopolista da PT sobre o cabo, a fim de alguém nos poder oferecer um canal brasileiro decente, ou bem feito, como o GNT. Se o pessoal da TV Cabo não tem gosto nem pode resistir às pressões do dinheiro da TV Record, eu até compreendo. Mas quem nos compreende a nós, telespectadores, entregues a essa gente?

Jornal de Notícias - 10 Abril 2006