abril 30, 2006

Cálice de fogo

Ninguém diria que o conhaque, o "néctar dos deuses", como lhe chamava Victor Hugo, tem origem em vinhos que, por serem fracos, demasia­do fracos, foram destinados à destilação. Também é verdade que poucos dos que beberam ou citaram a bebida puderam conhecer a região onde ela nasceu - a norte de Bordéus, cruzada pelo rio Charente, assinalada pelas cidades de Cognac, justamente, de Angoulême, Jarnac ou Rochefort, já diante do mar. Foi nessa região vinícola, onde se produzia já conhaque desde o século XIII (o vinho fora intro­duzido pelos romanos), e se exportava, que se instalaram os estrangeiros que mudaram o destino das suas vinhas e dos seus alambiques: Jean Martell, vindo de Jersey; o irlandês (de Cork) Richard Hennessy; o também irlandês James Delamain, de Dublin; o inglês Thomas Hine, de Dorset; o descendente de escoceses Otard de Ia Grange. Tudo isto no século XVIII. Algumas das mais famosas marcas de conhaque levam, precisa­mente, os seus nomes: Otard, Martell ou Hennessy são unanimemente reconhecidos como sinónimos de conhaque, juntamente com Remy Martin, Courvoisier ou Frapin.

Se Victor Hugo, fascinado com a gastronomia de Poitou-Charente, berço do conhaque, lhe chamava "o verdadeiro néctar dos deuses", já Flaubert, o insuspeito Gustave Flaubert, misturava ironia e nostalgia quando escrevia que "um bom copo de conhaque nunca faz mal - tomado em jejum mata a bicha-solitária". Por toda a literatura se sucedem elogios ao conhaque. Reparem em Luis Sepúlveda, o criador chileno de "O Velho Que Lia Romances de Amor": "Nada melhor no Inverno que a companhia de um bom conhaque e das obras completas de Simenon." E Georges Simenon, pre­cisamente, colocou várias vezes o comissário Maigret exigindo o seu conhaque (se bem que Maigret, o burguesíssimo Maigret, o seu persona­gem de eleição, bebesse de tudo: genebra, calvados, cerveja, vinho, licores e, caramba, até uísque) - e o comissário, nos serões com Madame Maigret (no seu apartamento do Boulevard Richard-Lenoir), saboreava o seu conhaque na companhia do tabaco de cachimbo, de janelas abertas para a tepidez da Primavera parisiense.

Euforia, prazer, conforto doméstico, e também devassidão - e o conhaque dos sonhos mais comoventes, evocado por Carlos Drummond de Andrade num poema em que descreve como um anjo o mandou "ser 'gauche' na vida": "Eu, não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovida como o diabo." O brasileiro Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, é avaro com o seu conhaque; para explicar a dife­rença entre pouco, pouquinho ou apenas um pouco, o autor de 'O Analista de Bagé' ou de 'O Clube dos Anjos' não tem vergonha: "Pouquito, por exemplo, equivale a uma dose de bom conhaque, daquele que você serve pouco até para o melhor amigo." E, por falar em Brasil, João Guimarães Rosa, o autor de 'Grande Sertão Veredas', evoca a bebida ao explicar como lhe surgiu a ideia para 'O Recado do Morro': no estrangeiro, quando a saudade o obri­gava a escrever e o conhaque o acompanhava.

Provavelmente, ninguém resumiu o espírito do conhaque como Machado de Assis, o autor de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', que em 1856 escreve um pequeno poema onde aparece esta preciosidade: "Conhaque inspirador de ledos sonhos,/ Excitante licor de amor ardente,/ Uma tua garrafa e o Dom Quixote/ É passatempo amável." O verso é irregular, mas rescende a conhaque e certa devassidão. Tal e qual como o nosso Cesário Verde, no poema ("Não te cases...") em que pro­mete amor à dama, mas nunca o casamento: "Eu posso dar-te tudo, tudo, / dar-te a vida, o calor, dar-te conhaque, / hinos de amor, vestidos de ve­ludo, / e botas de duraque."

E para bebê-lo correctamente? Em primeiro lugar, é preciso saber que os conhaques não melhoram as suas qualidades na garrafa - é, portanto, necessário bebê-lo. Simples, à temperatura ambiente, parece ser o melhor processo. Um pouco de água é aceitável e é uma opção justificada pela tradição: uma das histórias sobre o fabrico do conhaque (antes da chegada dos grandes destiladores à região de Conhaque) lembra que ele servia para dar algum gosto à água que os marinheiros levavam nos navios, e não a estranhassem. Recorramos, pois, e ainda, à literatura. No caso, a Eça, que sabia como beber o seu conhaque. Em 'Os Maias', João da Ega e Carlos da Maia são rece­bidos por Craft, "de robe de chambre, surpreendido com o tumulto", na sua quinta nos Olivais (depois do infeliz baile dos Cohen) - que lhes prepara, fleumaticamente, três grogues de conhaque e limão. Era um dos processos. Simples, aparece na ceia em que o Conselheiro Acácio comemora a sua nomeação para cavaleiro da Ordem de Santiago, depois de libações com champanhe de Epernay; e se aparece simples em 'O Crime do Padre Amaro' e 'Os Maias', num dos seus contos ('José Matias'), Eça fala de "conhaque correndo em jorros desespe­rados". Nada como a tranquilidade excitante de um "conhaque à inglesa", logo a abrir 'O Mandarim': "Bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira-d'água."

Que podemos querer mais do que esta sugestão luminosa?

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in Revista Notícias Sábado - 29 Abril 2006