abril 14, 2006

Um avião sobre o deserto

No deserto acontecem algumas das mais decisivas experiências gastronómicas: do nada, nasce tudo; do silêncio, nasce a música; da falta, nasce a abundância de imaginação.

Por cinco dólares, a Ameri­can Airlines oferece-lhe um pequeno-almoço com sanduíche de peru, queijo cheddar, ovo cozido e manteiga de ervas - e que inclui um sumo à escolha, além de uma bebida quente. Pode optar também por um catzone ou mini-pizza com peru, pi­mento vermelho, creme de espinafres, alface, milho e maionese. E o «bistro bag». Por menos do que isso, já na casa dos três dólares, pode conseguir uma caixinha com snacks empacotados. A informação pode ser deprimente se se esperam grandes voos gastronómicos a bordo de um avião. Não há. A comida de avião parece-me sempre um voo sobre o deserto - nunca a recusei, nunca a elogiei. Ela é o que é (uma soma de contentores aquecidos), mas a moralidade manda que recordemos esse mundo extraordinário das viagens de avião - que outrora era romântico, cheio de escalas, serviços a bordo, luxos fantásticos ou apenas palavras simpáticas à entrada do avião, e que está hoje democratizado e massificado.

A comida é um desses luxos dispensados em voos de duzentos passageiros Os críticos da comida de avião pertencem, portanto, aos dois mundos: não abdicam da gastronomia nem da massificação. Coisas impossíveis.
Porque falo do deserto? Porque no deserto acontecem algumas das mais decisivas experiências gastronómicas: do nada, nasce tudo; do si­lencio, nasce a musica; da falta, nas­ce a abundância de imaginação.

Deixo-lhe dois dos pratos que mais me comoveram depois de uma travessia do Neguev. Eu sei que não é um grande passeio, mas quando a noite cai, rápida e deslumbrante, so­bre as colinas de areia e os declives de rocha, deitamo-nos no chão, os olhos abertos para o céu - e os aviões que passam são riscos incómodos junto de estrelas, planetas invisíveis, insectos predadores. De­pois de uma dessas travessias cheguei a Ber-Sheva e entrei num pequeno bar de estrada, à hora do crepúsculo, onde me serviram bolinhas de arroz e falafel. Aqui ficam essas recordações, exactamente como as desenho em casa.

Comece por preparar um refogado com cebola muito fina (muito), dois dentes de alho muito picados e azeite. Mal a cebola comece a ficar com a doce transparência que se requer, junte o arroz cozido e mexa com suavidade de modo a aquecer por todo, o que deve demorar uns três a quatro minutos. Retire o tacho do fogão e junte-lhe, digamos, consoante a quantidade (esse pecado com que não sei lidar - é a olho), ovos batidos com um nadinha de salsa muito picada e umas tirinhas de pimento vermelho também picadas. Muna-se agora de duas colheres para preparar bolinhas de arroz, simpáticos croquetes que se comem como prato principal na companhia de salada. Aqueça o óleo para fritar. Passe as bolinhas por farinha (de­pois, em próxima oportunidade, po­de tentar o pão ralado) e deposite-as na frigideira ou fritadeira, em boa temperatura. Nessa altura, o apetite aceita a experiência dos seus primeiros fritinhos de arroz.

Se o tempo Ihe sobra, prepare falafel com esta simplicidade que tem de nascer um dia antes de cozinhá-los: deixe de molho cerca de 200 gramas de grão-de-bico. No liquidificador, no dia seguinte, junte ao grão-de-bico cru, depois de lavado e escorrido, um molhinho de salsa, uma cebola roxa picada, oito dentes de alho, 3 colheres de chá de cominhos, 2 colheres de chá de sal, 2 colheres de paprika de picante médio - mas não reduza totalmente a puré. Forme uma bola com esses ingredientes, junte cerca de 10 colheres de sopa de farinha de trigo, duas colheres de chá de fermento em pó e amasse bem de modo a obter um conjunto homogéneo e sedoso. Guarde no frigorifico durante três a quatro horas. Com essa massa forme bolinhas do tamanho de uma noz, que devem fritar em óleo bem quente - no caso de a bola se desfazer no óleo, junte mais um nadinha de farinha e amasse de novo para rectificar.

Coma as bolinhas de arroz e o fa­iafel num terraço, ao escurecer, olhando os riscos dos aviões em pleno céu. Comece a viajar pelo deserto.

Ingredientes
(para as bolinhas de arroz)
+ Arroz cozinhado de véspera (de legumes ou de carne)
+ 1 pimento vermelho, salsa, ovos, alho, cebola, azeite
+ Óleo para fritar
+ Farinha

(para o Falafel)
+ 200g da grão-de-bico
+ 1 pequeno molho de salsa
+ 1 cebola roxa grande
+ 8 dentes de alho
+ 2 colheres de chá de paprika picante
+ sal
+ 2 colheres de chá de cominhos secos
+ 2 colheres de chá de fermento
+ Óleo de fritar

In Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Abril 2006