Não é qualquer um que veste a camisola número 2 do FC Porto, a mesma que pertenceu a Jorge Costa, que a tinha herdado de João Pinto. Este pormenor é fatal e decisivo. Os seus antecessores foram peças fundamentais no clube – e Bruno Alves provou que mereceu ter ocupado este ano o lugar mais importante da defesa, desmentindo aqueles que previam a catástrofe depois da saída de Pepe, com quem ele jogou – e apenas com a adição controlada de Pedro Emanuel, outro defesa essencial.
Na economia geral do relvado, Bruno Alves não se distingue pela elegância – que é um traço só permitido a quem não tem de suportar as investidas das hostes para entrar na área. Aí, é necessária a exposição desmedida e brutal, uma brava capacidade de resistir de frente, a malícia dos peões que não temem o confronto com a morte. Bruno Alves é tudo isso, e mais – com o pormenor de olhar para o resto do campo e de saber colocar a bola nos extremos, ou à cabeceira, onde o ponta-de-lança estava prestes a sucumbir. O que são, salvo erro, várias vantagens reunidas; a primeira delas é a de garantir a tranquilidade do espectador (não é o que dizem os adversários, claro); a segunda é a de garantir que, por aquele lado caído para a linha esquerda, ele desenha um passe quase perfeito; a terceira não estava ainda mencionada: o seu golpe de cabeça, por exemplo, sobrevoando os dilectos adversários – os da defesa contrária – até encontrar a marca da baliza, aquela profundidade sem nome.
Ele tem um jeito ligeiramente cigano,
gitano, de encarar a bola. À defesa. Herdado de Washington, o pai, desenvolvido entre a Póvoa e a Atenas – profundidade sem nome. Nos desenhos de
tablao, ele encarna aquele gesto dos grandes jogadores que tomam o seu lugar numa grande orquestra sem se amedrontarem; há os que reconhecemos em música de câmara; há os solistas extravagantes, arte pura e fatal, capazes de acrobacia em pleno adagio, como Cristiano Ronaldo (que os scolarianos perseguiram à pedrada durante um ano inteiro) ou Messi, que não podemos perder de vista. E até há os que saltam para o palco ora a solo, ora com o seu grupo,
bailaores,
cantaores, e guitarristas, como Quaresma, que consegue fazer quase todos os papéis. Bruno está entre os que se sentem bem no
tablao do flamenco; a sua inocência não permite que compreenda inteiramente o seu papel de tragédia – mas sabe passar do
cante corto para o
cante grande com um silêncio demolidor. No
cante corto actua como central impuro. Lembrem-se do som: guitarra, palmas, tacões no
tablao, uma voz:
tra tra tantan para trás, tra
tra tan-tan para a frente, até encontrar o ritmo. No
cante grande, sublime, ele olha para o grupo de baile, olha para os bailarinos, os músicos, o palco, o público, e percebe que lhe cabe carregar o piano. E o flamenco transforma-se, então, num tango em que Bruno se envolve com a tristeza metálica da dança, cruel, brutal, e assassina.
Bruno Alves pertence à raça do mar: sabe o significado da expressão "tirar desforra", conhece o doce sabor da pequena maldade, é um guerreiro. Jorge Costa sabia cercar os seus adversários, atraindo-os ao seu campo. Bruno seguiu-lhe o caminho mas é um herói solitário – o seu sorriso é difícil, sofrido, raro. Quando o mostra, vê-se nele a explosão de um poder raro que os psicólogos tiveram de moderar: ele vê o futebol como uma posse, um acto de valentia, uma humilhação do adversário. E então lança-lhe aquele mau-olhado que perdura durante os minutos que ainda há para jogar. É isto Bruno Alves. O nosso.
in Guia Euro 2008 - Suplemento DN – 19 Maio 2008