A última “polémica literária” em que andei metido era — não podia deixar de ser – sobre uma lista. As listas são o melhor pretexto para conseguir fazer que uma polémica caía sobre a nossa cabeça com artilharia vinda de todo o lado. Ora, acontece que nós (nós, género humano) temos uma predilecção geral por listas. Geralmente, fazemos listas de coisas de que gostamos: os dez filmes da nossa vida, os dez livros que levaríamos para uma ilha deserta, os dez golos de eleição, as cinquenta canções que nunca esquecemos. Eu fiz pior: uma lista dos “dez livros que não tinham mudado a minha vida”. Na verdade, são muitos – mas, reduzidos a dez, dá para criar muitas inimizades (o “meio literário” é fatal), arrebatar muitos adversários e magoar alguns amigos. E escolhi livros com títulos tremendos: À Procura do Tempo Perdido, de Proust; Ulisses, de James Joyce; Morte em Veneza, de Thomas Mann; etc. Até chegar a Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
É claro que uma pessoa até reconhece a grandeza de Proust, a importância de Sartre, ou mesmo a inevitabilidade de Paul Auster. Mas não tinham mudado nem uma só vírgula na minha vida. Só que o caso de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, era especial, e eu explico porquê.
A principal razão encontra-a o leitor nas páginas desta revista, ao ler a reportagem sobre Minas Gerais. O romance de João Guimarães Rosa é a história do Diabo que anda pelo sertão, contada através da personagem fantástica de Riobaldo. Há muita maneira de passear por Minas, mas a leitura desse livro pode ser um pórtico cheio de glória.
A segunda razão, que não interessa para o caso, é que Grande Sertão: Veredas é uma espécie de Auto da Criação do Mundo, um dos grandes romances da nossa literatura. A de todos os tempos. Encontrei as suas personagens nas estradas de Minas Gerais, batidas pelo vento seco que produziu muita literatura, muita música e muito cinema (o livro foi adaptado à televisão e Bruna Lombardi interpreta uma Diadorim belíssima). Minas Gerais passa pelo livro como uma tempestade de poeira seca e quente, que o leitor encontrará mal se despeça de Belo Horizonte, que é uma cidade moderna, habitável, traçada a régua e esquadro, arborizada e gentil – além de estar cheia de livrarias, de bares e de parques. Coisas de que gosto.
Acompanhei essa viagem de Riobaldo (que parece que nunca sai do mesmo lugar) até aos grandes planaltos que, no mapa real, nos aproximam de Brasília, por exemplo. O leitor deve servir-se do livro como uma encenação do espaço do sertão, quase sempre distante dos livrinhos turísticos – mas, como dizem os brasileiros, é “bonito de mais”. Não tem o apelo de outros pontos centrais do polígono mineiro, mas merece ser visto. Para descansar desse mapa, há depois a mais do que belíssima Tiradentes (onde se come maravilhosamente, aviso), a fantástica Ouro Preto (fantástica, porque andam fantasmas nas suas ruas inclinadas e sensuais), a triste Congonhas — mas a minha fronteira com Minas (além desse roteiro que várias vezes fiz de carro, entre o Rio e Belo Horizonte, ultrapassando as montanhas) é o Grande Sertão. Quando me aproximo da paisagem brumosa e seca de Três Marias, quando o rio São Francisco é mais do que uma miragem, sei que estou em Minas: fazendas que prolongam a aridez, interrompendo-a; pequenas cidades cheias de história e de evocações; e aquele sotaque – o mineiro. E aquela personagem — o mineiro, gracejando e desconfiando (sempre), surpreendendo permanentemente, fazendo da pequena dissimulação uma obra de arte. E como Grande Sertão: Veredas. Profundíssimo, astuto, maravilhoso, evocando o princípio das coisas, mesmo que não mude a nossa vida.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2008Etiquetas: Volta ao mundo