junho 21, 2008

Minas Gerais: veredas

A última “polémica literária” em que andei metido era — não podia deixar de ser – sobre uma lista. As listas são o melhor pretexto para conseguir fazer que uma polémica caía sobre a nossa cabeça com artilharia vinda de todo o lado. Ora, acontece que nós (nós, género humano) temos uma pre­dilecção geral por listas. Geralmente, fa­zemos listas de coisas de que gostamos: os dez filmes da nossa vida, os dez livros que levaríamos para uma ilha deserta, os dez golos de eleição, as cinquenta can­ções que nunca esquecemos. Eu fiz pior: uma lista dos “dez livros que não tinham mudado a minha vida”. Na ver­dade, são muitos – mas, reduzidos a dez, dá para criar muitas inimizades (o “meio literário” é fatal), arrebatar muitos adversários e magoar alguns amigos. E escolhi livros com títulos tre­mendos: À Procura do Tempo Perdido, de Proust; Ulisses, de James Joyce; Morte em Veneza, de Thomas Mann; etc. Até chegar a Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.

É claro que uma pessoa até re­conhece a grandeza de Proust, a impor­tância de Sartre, ou mesmo a inevitabilidade de Paul Auster. Mas não tinham mudado nem uma só vírgula na minha vida. Só que o caso de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, era especial, e eu explico porquê.

A principal razão encontra-a o lei­tor nas páginas desta revista, ao ler a reportagem sobre Minas Gerais. O ro­mance de João Guimarães Rosa é a história do Diabo que anda pelo sertão, contada através da personagem fantástica de Riobaldo. Há muita maneira de passear por Minas, mas a leitura desse li­vro pode ser um pórtico cheio de glória.

A segunda razão, que não interessa para o caso, é que Grande Sertão: Veredas é uma espécie de Auto da Criação do Mundo, um dos grandes romances da nossa literatura. A de todos os tempos. Encontrei as suas personagens nas es­tradas de Minas Gerais, batidas pelo vento seco que produziu muita literatu­ra, muita música e muito cinema (o li­vro foi adaptado à televisão e Bruna Lombardi interpreta uma Diadorim be­líssima). Minas Gerais passa pelo livro como uma tempestade de poeira seca e quente, que o leitor encontrará mal se despeça de Belo Horizonte, que é uma cidade moderna, habitável, traçada a ré­gua e esquadro, arborizada e gentil – além de estar cheia de livrarias, de ba­res e de parques. Coisas de que gosto.

Acompanhei essa viagem de Rio­baldo (que parece que nunca sai do mesmo lugar) até aos grandes planaltos que, no mapa real, nos aproximam de Brasília, por exemplo. O leitor deve ser­vir-se do livro como uma encenação do espaço do sertão, quase sempre distante dos livrinhos turísticos – mas, como di­zem os brasileiros, é “bonito de mais”. Não tem o apelo de outros pontos cen­trais do polígono mineiro, mas merece ser visto. Para descansar desse mapa, há depois a mais do que belíssima Tiradentes (onde se come maravilhosamente, aviso), a fantástica Ouro Preto (fantás­tica, porque andam fantasmas nas suas ruas inclinadas e sensuais), a triste Con­gonhas — mas a minha fronteira com Minas (além desse roteiro que várias ve­zes fiz de carro, entre o Rio e Belo Hori­zonte, ultrapassando as montanhas) é o Grande Sertão. Quando me aproximo da paisagem brumosa e seca de Três Ma­rias, quando o rio São Francisco é mais do que uma miragem, sei que estou em Minas: fazendas que prolongam a aridez, interrompendo-a; pequenas cidades cheias de história e de evocações; e aquele sotaque – o mineiro. E aquela personagem — o mineiro, gracejando e desconfiando (sempre), surpreendendo permanentemente, fazendo da pequena dissimulação uma obra de arte. E como Grande Sertão: Veredas. Profundíssimo, astuto, maravilhoso, evocando o prin­cípio das coisas, mesmo que não mude a nossa vida.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2008

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