Terreiro do apetite
Se o leitor ou a leitora não gostam de comer por aí além, que não se aflijam. Pelo cardápio percebe-se que Vítor Sobral gosta.
É um dos 'chefs' que mais admiro. A lista tem, pelo menos, dez nomes. Mas Vítor Sobral está lá como uma das estrelas. Há quem prefira as do Michelin – eu prefiro as do Vítor Sobral. Dito isto, falemos de flores.
Ou seja: falemos da luz do Terreiro do Paço. Todas as grandes capitais deviam ter uma luz assim ao crepúsculo – e geralmente têm. De centro do velho império (que cheirava a pimenta, escravos e perfumes baratos) a parque de estacionamento (que preferia cheiro a gasolina e a pneus derretidos), o Terreiro do Paço, ou a entretanto republicana Praça do Comércio, já passou por várias fases e por vários estatutos. Viu de tudo, o pobre Terreiro: regicidas e autos-de-fé, carbonários e povoléu aos urros, ministros e construtores – mas foi sobretudo identificado com a sede do poder.
Com o Portugalinho de hoje, a praça está e continuará abandonada, entregue aos carros de cilindrada ministerial e aos passeios esburacados ou sempre em obras. Que se há-de fazer com este país em estaleiro, cheio de andaimes e pó de cimento, fumo de gasóleo e concertos de 'rock'? O costume – passar em frente e ter cuidado com os buracos.
Vítor Sobral tem as suas raízes alentejanas e rurais guardadas no código genético que transporta para os restaurantes que dirigiu, o que o salva do estrelato convencidinho e o mantém nível do nosso paladar e das nossas fantasias. Arroz, molhos, bacalhaus, cogumelos do campo (verdadeiramente), favinhas e espargos, carnes suculentas - com tudo isto se conjuga uma vontade de criar menus atentos e amáveis, aprazíveis, acolhedores e com uma marca pessoal que, com o tempo e o hábito, há-de tornar-se inconfundível. Lendo as suas receitas, percebe-se a intenção.
Há uns tempos, em visita ao Terreiro do Paço, o seu restaurante na vetusta praça, depois de um tártaro de bacalhau com caviar de salmão, provámos o peito de pato caramelizado com aquela nota deliciosa de gengibre e a bananinha assada, além de uma favada quase tradicional e alentejana, que perfumava a mesa inteira, e de uns filetes de peixe-galo. A ementa é eufórica e mostra apetite: bacalhau de caldeirada com batata assada no forno, filetes de espada com arroz de berbigão, ervilhas com choco e ovo escalfado, arroz de cabidela (em dias certos da semana); um menu de entradas onde circulam, além do tártaro de bacalhau com caviar de salmão, raviolis de maçã e camarão, chamuças de camarão (que fritura!), carpaccio de bacalhau com pastelinhos de mandioca e bacon; lombinho de bacalhau com tomate em compota e feijão verde, bacalhau fresco panado com maçã e mousse de maçã com um nadinha de coentros, e ainda pintada, raia, cherne no forno, atum e polvo – um polvo grelhado e onde o azeite faz uma festa; depois, o bife com cogumelos assados e compota de ginja, as bochechas de porco preto (uma invasão letal nas cozinhas portuguesas, ultimamente), e as divinas costeletas de borrego com batatinha cremosa, farinhenta e gratinada.
Eu, se me permitem, gostaria de dizer o seguinte. Se o leitor ou a leitora não gostam de comer, por aí além, que não se aflijam. Que não se apoquentem. Que não se preocupem. Porque, pelo cardápio percebe-se que Vítor Sobral gosta de comer, não sofre das esquisitices contemporâneas ou das depressões dos 'chefs' – aliás, como já tive o prazer de almoçar com ele durante um almoço de cervejas, confirmo.
Ultimamente, tenho verificado que há cozinheiros excelentes que, postos diante de um prato, manifestam um cansaço evidente de comida. Tudo os fatiga, tudo ou quase tudo os enfastia. Sobral não acha que a cozinha possa ser uma arte pura. Ele reconhece e faz-nos saborear a deliciosa impureza das gastronomias do Sul, a deliciosa imperfeição dos gulosos, o significado da palavra suculento". Uma parte nada negligenciável dos 'chefs' contemporâneos aprecia o "suculento" mas trata-nos como inimigos do estômago, o que é uma afronta. O crème brûlée de coco com gelado de ananás e os raviolis de ananás com queijo de cabra e salada de framboesas (apimentados com um toque de ginja) são a epifania dessa aventura pela cozinha, um aviso terminal sobre o prazer de comer.
À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 30
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: pouco acessível
Levar crianças: não
Área de não fumadores: sim
Reserva: imprescindível
Preço médio: 50 euros
RESTAURANTE TERREIRO DO PAÇO
Praça do Comércio - Welcome Center
1100-148 Lisboa
Tel: 21 0312850
Encerra aos domingos e aos almoços de sábado
in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007
Etiquetas: Restaurantes