junho 11, 2007

O mundo perfeito

Vivemos num tempo de incerteza. Aparentemente, as coisas vão bem, o défice está ser combatido, há razoáveis novidades na economia, o Estado mostra uma face arrumadinha - mas vivemos um tempo de incerteza. Há coisas que inquietam, para lá da boa saúde do Estado, e uma delas tem a ver com o contraste entre a boa saúde do Estado e o estado periclitante dos cidadãos.

O trocadilho justifica-se porque, frequentemente, Estado e cidadãos estão em lados diferentes do "campo da batalha". Veja-se o caso da taxa de natalidade, que tem preocupado as figuras do Estado ao ponto de o presidente da República ter referido o problema recentemente. Parece que os portugueses se reproduzem menos. O problema não está, apenas, na descoberta do planeamento familiar, da pílula e do chamado "hedonismo dos tempos modernos" - mas também no desinteresse dos portugueses médios (essa categoria flutuante) pela vida em família e pela dedicação ao futuro. Os economistas e fiscalistas são os mais preocupados, uma vez que menos natalidade significa, a curto prazo, menos contribuições para a segurança social, menos arrecadação de impostos e menos portugeses.

A solução seria convencer os portugueses a reproduzirem-se em níveis aceitáveis, não só para que a Pátria não desapareça mas, também, para que os cofres do estado não percam a esperança. Já há tempos um secretário de Estado visionário defendeu uma discriminação negativa dos celibatários e das famílias com poucos filhos, através de medidas de incentivo fiscal aos melhores reprodutores da espécie. Felizmente que houve bom-senso na altura e a ideia caiu. Mas o problema não é apenas de demografia, de economia e de fiscalidade. A verdade é que os portugueses se reproduzem menos porque a vida está mais difícil. Porque vivemos um tempo de incerteza. Os portugueses pensam e fazem contas à sua vida, mais do que às contas do Estado. E, se o Estado está de boa saúde, os cidadãos temem pelo seu bem-estar individual.

O bem-estar individual é uma descoberta recente, que se sobrepõe frequentemente ao bem-estar colectivo e às escolhas gerais que são ou podem ser boas para o Estado - mas não são boas para as pessoas. Fazer coincidir as duas razões é um trabalho difícil e supõe um clima de confiança. Ora, há dúvidas muito pertinentes a assustar os cidadãos.

Um sistema de ensino sem qualidade real é uma das razões. Basta ver o clima de quase indigência científica que toma conta do sistema de avaliação escolar periodicamente. As notícias sobre as reformas da segurança social também não são boas. As desconfianças sobre a boa-fé da política aumentam. O baixo nível da discussão sobre as novas grandes obras do regime (a Ota, o TGV) não inspira grande confiança nos cidadãos. O clima de certa intimidação não é despiciendo.

Os demógrafos, os sociólogos e os economistas estão preocupados com a baixa taxa da natalidade. O presidente da República também. A questão, porém, não tem a ver com o libido dos portugueses, mas com a confiança que vai baixando em relação ao Estado e ao seu poder para criar confiança.

Há também uma questão puramente egoísta: ter filhos é cada vez mais caro, cada vez mais difícil o acesso rápido à saúde; e cada vez é mais difícil convencer os portugueses de que a sua felicidade é uma questão de futuro. Os especialistas em sociologia e moral ficaram chocados, recentemente, com um estudo que mostrava que a vida familiar não era uma prioridade para os portugueses. Perguntem-lhes porquê.

Os portugueses podem ter, como toda a gente, baixos instintos. Mas não são parvos. Podem estar mais egoístas, mais ciosos da sua liberdade - mas, felizmente, estão menos parvos.

in Jornal de Notícias - 11 Junho 2007

Etiquetas: