junho 30, 2007

Terreiro do apetite


Se o leitor ou a leitora não gostam de comer por aí além, que não se aflijam. Pelo cardápio percebe-se que Vítor Sobral gosta.

É um dos 'chefs' que mais admiro. A lista tem, pelo menos, dez nomes. Mas Vítor Sobral está lá como uma das estrelas. Há quem prefira as do Michelin – eu prefiro as do Vítor Sobral. Dito isto, falemos de flores.

Ou seja: falemos da luz do Terreiro do Paço. Todas as grandes capitais deviam ter uma luz assim ao crepúsculo – e geralmente têm. De centro do velho império (que cheirava a pimenta, escravos e perfumes baratos) a parque de estacionamento (que preferia cheiro a gasolina e a pneus derreti­dos), o Terreiro do Paço, ou a entretanto republi­cana Praça do Comércio, já passou por várias fases e por vários estatutos. Viu de tudo, o pobre Terreiro: regicidas e autos-de-fé, carbonários e povoléu aos urros, ministros e construtores – mas foi sobretudo identificado com a sede do poder.

Com o Portugalinho de hoje, a praça está e conti­nuará abandonada, entregue aos carros de cilin­drada ministerial e aos passeios esburacados ou sempre em obras. Que se há-de fazer com este país em estaleiro, cheio de andaimes e pó de cimento, fumo de gasóleo e concertos de 'rock'? O costume – passar em frente e ter cuidado com os buracos.

Vítor Sobral tem as suas raízes alentejanas e rurais guardadas no código genético que transporta para os restaurantes que dirigiu, o que o salva do estrelato convencidinho e o mantém nível do nosso paladar e das nossas fantasias. Arroz, molhos, bacalhaus, cogumelos do campo (verdadeiramen­te), favinhas e espargos, carnes suculentas - com tudo isto se conjuga uma vontade de criar menus atentos e amáveis, aprazíveis, acolhedores e com uma marca pessoal que, com o tempo e o hábito, há-de tornar-se inconfundível. Lendo as suas receitas, percebe-se a intenção.

Há uns tempos, em visita ao Terreiro do Paço, o seu restaurante na vetusta praça, depois de um tártaro de bacalhau com caviar de salmão, prová­mos o peito de pato caramelizado com aquela nota deliciosa de gengibre e a bananinha assada, além de uma favada quase tradicional e alentejana, que perfumava a mesa inteira, e de uns file­tes de peixe-galo. A ementa é eufórica e mostra apetite: bacalhau de caldeirada com batata assa­da no forno, filetes de espada com arroz de ber­bigão, ervilhas com choco e ovo escalfado, arroz de cabidela (em dias certos da semana); um menu de entradas onde circulam, além do tárta­ro de bacalhau com caviar de salmão, raviolis de maçã e camarão, chamuças de camarão (que fri­tura!), carpaccio de bacalhau com pastelinhos de mandioca e bacon; lombinho de bacalhau com tomate em compota e feijão verde, bacalhau fresco panado com maçã e mousse de maçã com um nadinha de coentros, e ainda pintada, raia, cherne no forno, atum e polvo – um polvo gre­lhado e onde o azeite faz uma festa; depois, o bife com cogumelos assados e compota de ginja, as bochechas de porco preto (uma invasão letal nas cozinhas portuguesas, ultimamente), e as divinas costeletas de borrego com batatinha cre­mosa, farinhenta e gratinada.

Eu, se me permitem, gostaria de dizer o seguinte. Se o leitor ou a leitora não gostam de comer, por aí além, que não se aflijam. Que não se apoquen­tem. Que não se preocupem. Porque, pelo cardá­pio percebe-se que Vítor Sobral gosta de comer, não sofre das esquisitices contemporâneas ou das depressões dos 'chefs' – aliás, como já tive o pra­zer de almoçar com ele durante um almoço de cervejas, confirmo.

Ultimamente, tenho verifica­do que há cozinheiros excelentes que, postos diante de um prato, manifestam um cansaço evi­dente de comida. Tudo os fatiga, tudo ou quase tudo os enfastia. Sobral não acha que a cozinha possa ser uma arte pura. Ele reconhece e faz-nos saborear a deliciosa impureza das gastronomias do Sul, a deliciosa imperfeição dos gulosos, o sig­nificado da palavra suculento". Uma parte nada negligenciável dos 'chefs' contemporâneos apre­cia o "suculento" mas trata-nos como inimigos do estômago, o que é uma afronta. O crème brûlée de coco com gelado de ananás e os raviolis de ananás com queijo de cabra e salada de framboesas (api­mentados com um toque de ginja) são a epifania dessa aventura pela cozinha, um aviso terminal sobre o prazer de comer.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 30
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: pouco acessível
Levar crianças: não
Área de não fumadores: sim
Reserva: imprescindível
Preço médio: 50 euros

RESTAURANTE TERREIRO DO PAÇO
Praça do Comércio - Welcome Center
1100-148 Lisboa
Tel: 21 0312850
Encerra aos domingos e aos almoços de sábado

in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007

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