outubro 30, 2006

A força habitual do destino

De repente cá estamos: o próximo congresso do Partido Socialista corresponderá à canonização de José Sócrates no governo. Não vale a pena erguer a voz com escândalo e escarninho. Episódios semelhantes ocorreram na história recente, com Cavaco e com Guterres - e significam antes de mais a genuína alegria pela manutenção do poder. Quando se chega a uma circunstância destas, há quem compreenda que a natureza dos ciclos políticos tem qualquer coisa de repetitivo e de trágico; repetitivo porque os factos não podem negar-se, trágico porque não dependem da vontade dos actores mas sobretudo das circunstâncias.

Tirando Manuel Alegre, que cada vez tem menos a ver com este PS desde que afrontou as indicações do partido para as presidenciais, ninguém está em condições de pôr em causa o abençoado ganha-pão do poder. Mesmo com Manuel Alegre, estamos para ver. Mas é nestas alturas que se observa sempre o mesmo fenómeno quanto mais o partido se aproxima do governo, venerando-o e aproveitando a onda, mais o governo se afasta do partido, que constitui quase um empecilho com as suas exigências, as suas discussões e as suas tendências. Foi assim com Cavaco, cansado de um PSD enredado na malha dos seus baronatos; foi assim com Guterres, cansado das disputas por cargos e do "pântano" que ele reconhecia melhor em sua própria casa. Com Sócrates e com este congresso que se aproxima, disciplinado antecipadamente pela eleição pacífica do líder, ainda é cedo para baronatos e para pântanos. Mas, salvo erro, estamos a meio do ciclo; e, na verdade, Sócrates tem uma vantagem sobre Guterres - não só não precisou da rábula do "no jobs for the boys" (escolheu quem quis, porque tinha o mandato, a maioria e o partido penhorado) como teve a sorte de se livrar da tralha soarista sem ter de se esforçar ou de sofrer o desgaste. Aliás, Sócrates não desceu um único ponto depois da derrota de Soares nas presidenciais. Pelo contrário, a sua influência cresceu.

Uma das novidades neste "debate" acerca da relação entre o governo de Sócrates e o PS tem a ver com o desaparecimento gradual do partido propriamente dito - tanto o artigo do "Expresso" em que Sócrates anunciava que ia ser líder, como a eleição deste fim de semana, como o processo que levará à aclamação em congresso, são etapas pacíficas da sua canonização. Nada de estranhar. O partido não se manifestará contra Sócrates enquanto as sondagens oferecerem o espectáculo da sua inevitabilidade e a imprensa (com destaque para as televisões) retransmitir a imagem dos sucessos do governo - mesmo que se tratem de êxitos não confirmados. O poder tem um preço claro e, tal como o desgaste arrasta consigo mais desgaste, também os razoáveis resultados nas sondagens ajudam a manter as hostes em disciplina.

Há nisto uma espécie de "força do destino" o PS de Sócrates aproxima-se cada vez mais do PSD de Cavaco nos anos de ouro da sua maioria absoluta. O ruído da rua dificilmente se fará escutar tão alto. A imprensa, que elegeu Cavaco como alvo a abater, e que apenas suportou Guterres até aos primeiros sinais de erosão, tem agora redacções mais jovens e conformadas com a "força do destino".

Marques Mendes parece ter compreendido desde o início essa ideia dos ciclos. Contra todas as expectativas, resistiu ao ataque dos baronatos e dos ilustres do seu partido. Mais uns meses e ele estará preparado para pedir contas a Sócrates. Também Marques Mendes precisa de um congresso pacífico do PS.

in Jornal de Notícias - 30 Outubro 2006

outubro 28, 2006

Dona Isaura

Regressando ao Isaura, fundado em 1952, em Lisboa, confirma-se que a memória, sempre traiçoeira, afinal não desmentiu o essencial: comida saborosa e uma carta de vinhos muito acima da média.

Chove sobre Lisboa, o que quer dizer, também, que o Outono chegou a horas. É preciso referir as condições me­teorológicas, naturalmente, uma vez que o estômago por vezes nunca se afasta muito da estratosfera, das nuvens que passam, das praças molhadas pelas últimas chuvas. A zona, entre a Avenida de Roma e o Areeiro, lembra no­velas dos anos sessenta e princípio dos anos setenta (lem­bram-se de 'Pôr do Sol, no Areeiro', de Luís de Sttau Mon­teiro?), com os seus prédios da época de ouro, burgueses, civilizados, austeros, respeitáveis, cheios de hábitos e de memórias. Amigos meus de várias gerações passaram nes­sas pracetas, fizeram história, recordam-se da adolescên­cia, das ramagens dos plátanos, do trânsito diminuto, dos becos, dos muros, de uma pequena vila no meio da cida­de, entre a Praça de Londres e o Areeiro, entre o Areeiro e Alvalade, entre a Almirante Reis e a Avenida de Roma, en­tre a João XXI e as ruas das traseiras – aquelas, como a de Paris, onde se circula devagar em dias de chuva, onde se passeia a pé depois da hora de jantar, passeando o cão, passeando o cigarro, passeando esta Lisboa cómoda, con­fortável, paredes-meias com a tranquilidade.

Quase a atingir a Almirante Reis, fica o Isaura. De entre os clássicos de Lisboa, é uma das opções segu­ras. Foi no Isaura, há muitos anos, que enfrentei pela primeira vez a sabedoria de um escanção, o senhor Costa, recomendando-me um vinho, salvando-me da aflição – e que escolha, que saborosa escolha, fazendo companhia a uns jaquinzinhos (primeiro) e a uma galinha de cabidela (depois) com igual e sur­preendente doçura. Foi há muitos anos.

Passadas muitas chuvas voltei ao Isaura, reconheci as suas escadas para o piso onde as mesas se ali­nham, onde os clientes clássicos se reconhecem pela forma como manejam o cardápio e aceitam uma palavra de encorajamento. Filetes de garoupa com arrozinho de feijão e o bacalhau com migas à moda
de Figueiró dos Vinhos foi a opção desta vez, acerta­da, para dois vinhos distintos - um branco que acompanhou ostras fresquíssimas e um tinto (do Douro, bênção do Altíssimo) para o restante das escolhas. Tanto o bacalhau (couvinha, feijão, pão, batatinhas) como a garoupa estavam na ordem exacta em que se devem encontrar; o bacalhau, banhado de azeite de uma cor fantástica; a garoupa rescendendo a mar, ainda, temperada sem sofregui­dão – ambos retirados de uma lista onde distingui­mos o bife à Isaura, o bife (de lombo de vaca) à Faustino, a cataplana de tamboril, ou de cherne, 'fondue' de lombo de vaca, 'fondue' de peixe, baca­lhau assado, borrego dos casamentos, caril de gam­bas, cabrito frito com açorda, cozido à portuguesa (no seu dia), cogumelos grelhados com 'bacon', cal­deirada de peixe, sardinhas albardadas, bacalhau à moda de Braga, rojões de porco, galinha de cabide­la, vitela à transmontana, feijoada à transmontana, entrecote de novilho, chanfana, caldeirada de cabri­to, enguias fritas, açorda de sável, lebre com feijão branco, pitéu de lulas à algarvia e, além disto, uma lista de pratos lisboetas, ou de matriz culinária lisboeta, onde andam, entre outros, os pastéis de baca­lhau, o bife à Marrare, os tais jaquinzinhos com açorda, as pataniscas de bacalhau (com arroz de tomate, com arroz de feijão, com arroz de grelos), a sopa rica de peixe, a meia-desfeita onde o bacalhau e o grão se harmonizam com bom azeite, a perdiz à Isaura, os peixinhos da horta de polme estaladiço e claríssimo, ou o bacalhau à Brás que já me conten­tou várias vezes, muito bom. Se o leitor verificar, reconhece que não sou muito inclinado a elogios doceiros, mas menciono desta vez o leite-creme, a encharcada de Mourão, o rançoso de idênticas resso­nâncias alentejanas, a mousse de chocolate e, final­mente, o creme de maçã simples ou com gelado, o gelado de natas com amora e cassis, o amoroso bati­do de papaia (suavíssimo, encantador para quem prefere coisas açúcares ligeiros) ou as pêras bêbedas, que são parte da minha lista de preferências.

Passados alguns anos, esta ida ao Isaura confirmou que a memória não me tinha atraiçoado. Valeu a pena, sim, nem que fosse pela leitura da carta de vinhos muito, muito acima da média, e muito bem manejada.

À LUPA
Carta de vinhos: * * * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 220
Vinhos brancos: 52
Vinhos verdes e Alvarinhos: 9
Portos & Madeiras: 22
Uísques: 18
Aguardentes portuguesas: 14
Champanhes & espumantes: 10

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 25 euros

RESTAURANTE ISAURA
Av. de Paris. 4-B
1000-228 Lisboa
Tel: 218480838 - 218486651
Encerra aos sábados

in Revista Notícias Sábado - 28 Outubro 2006

Os abraços a Vítor Baía

1. O F. C. Porto está mais sóli­do do que o Benfica; os seus níveis de confiança são supe­riores mas – apesar de tudo - não joga muito melhor. Só que o futebol não só não é uma ciência exacta, como depen­de de circunstâncias que flu­tuam apenas ao nível do rel­vado. O Benfica tem a seu fa­vor - apesar de tudo - o nervo­sismo do F. C. Porto. O F. C. Porto tem a seu favor uma so­lidez que ainda não estabili­zou. Este é um teste quase de­finitivo ao futebol de Jesualdo Ferreira depois do fraco jogo de Alvalade. Ele sabe. A partir de agora as desculpas não bastam. O "molho holandês" que Adriaanse deixou no Dra­gão já devia estar mais diluí­do.
Espero que neste jogo re­gressem Anderson e a dupla Fucile-Quaresma. E que se re­pitam os abraços a Vítor Baía. Dizer isto já não é dizer pouco.

2. Luís Filipe Vieira, afinal, vai ao Dragão. Faz bem. “A Bola” de ontem, no seu esfor­ço de engrandecer a alma benfiquista, titulava "Vieira sem medo no Dragão" e "A Bola" sabe do que fala. Vale a pena dizer que Luís Filipe Vieira tinha dito que não ia ao Dragão pelas razões que só ele imagina. Depois, deu-se a reviravolta. Até Gaspar Ra­mos recomendou a Vieira que fosse ver o jogo. O presidente da AG do F. C. Porto também achou mal que Vieira não fos­se ao Dragão logo à noite. Nestas condições, Vieira não tem medo. São coisas de miú­dos. Gente sem juízo.

3. O que "a guerra de palavras" antes deste F. C. Porto-Benfica mostrou a todos é um pouco da natureza humana no seu pior: gente sem juízo, sim; mas tam­bém sem gramática, sem ele­gância e sem pudor. Há um tom imbecil nesta bravata repenica­da fora dos estádios, nesta lenga­lenga. Todos os que gostam de futebol têm o direito de manifes­tar o seu desconforto com esta piroseira.
Pessoalmente, estas acusa­ções deixam-me indiferente, mais pelo burlesco da situação do que pelo seu "contorno extra-futebol". Logo à noite o jogo devia decorrer como acontece com os grandes espectáculos, que constituem, geralmente, lições de civilidade aos selvagens. Ganhe quem ga­nha desde que haja golos.

4. Ainda a propósito do "molho holandês" que ficou no Dragão: o Inter e a Juventus, entre vários
clubes, estão interessados no brasileiro Diego, que está a bri­lhar no Werder Bremen, o líder da liga alemã. Quando penso em certas dispensas do F. C. Porto apetece voltar atrás e despedir Adriaanse outra vez. Mas despe­di-lo mesmo.

5. Voltemos aos "abraços a Vítor Baía" depois de cada golo marca­do: Sabem o que isso significa? Apenas isto – que os clubes pre­cisam de pessoas como Baía, como Jorge Costa, como Pedro Emanuel. Pelo menos o clube de que eu gosto.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 28 Outubro 2006

outubro 23, 2006

José Socrates e a rua socialista

Jorge Sampaio tinha razão (por razões que desconhecia, como habitualmente), mesmo com o seu ar queixoso há vida para lá do défice. Ele existe, está lá, omnipresente como o fantasma dos últimos anos da política portuguesa. Tem servido para disciplinar as contas públicas e para limitar o desperdício do Estado (que é bastante) - e tem justificado quase tudo o que o governo quer justificar.

Todos os que alguma vez tomaram contacto com a máquina do Estado e da administração pública conhecem o défice. Habituámo-nos à sua presença. Os socialistas, que foram tão determinados a bombardear Manuela Ferreira Leite pela "obsessão do défice", deveriam ser periodicamente confrontados com as suas afirmações da época e com os gorjeios que na altura soltaram a propósito do mesmíssimo défice que agora combatem. Daí que, como se sabe, exista vida para além do défice - vamos sobrevivendo, equilibrando, aguentando. De contrário a vida seria mais absurda do que já é.

Numa coisa Sócrates se distingue dos seus antecessores foi mais longe do que eles, foi mais corajoso. As circunstâncias ajudaram; não prometeu reformas, mas fez mexidas; não anunciou o paraíso, não é culpado do inferno. Teve o favor de uma maioria absoluta que ultrapassou largamente a votação normal do PS (o que joga a favor de Sócrates e dos eleitores, que não são parvos). Teve o favor da imprensa e, até agora, de uma parte da rua socialista. E tem a seu favor os mistérios da boa imagem. Ele sabia que as greves e os protestos se levantariam contra o seu governo, e estava preparado; mas, ao contrário da imprensa da época, que se associou à rua para identificar Cavaco com o monstro, Sócrates continua com uma imprensa aceitável e maneirinha, apesar das gafes nada despiciendas dos seus ajudantes.

Se Guterres governava "em diálogo" com um olho nas sondagens, Sócrates governa sem diálogo, mas com a certeza de que isso traz benefícios e de que a maioria absoluta se mantém até ao fim da legislatura. Não sem alguns reparos estratégicos a ministra da Educação parece ter amenizado o tom do seu discurso (o que é um erro - porque depois dos sindicatos, o principal inimigo do ensino está no seu ministério); o ministro da Economia, sob o pretexto de vir em defesa do governo depois das desastradas e imorais declarações de um secretário de Estado, veio salvar as tarifas da electricidade. E não faltam vozes (geralmente vindas do lado do soarismo) que chamam a atenção para a necessidade de prestar atenção à rua, quer no caso das manifestações dos professores, quer nos ajuntamentos sindicais, quer nos protestos pontuais em cada aparição de Sócrates na rua.

Sócrates e a rua não fazem parte da mesma família política. A rua socialista, pândega e contemporizadora, não gosta dele. A rua esquerdista, por obrigação, odeia-o. Ele também não morre de amores por nenhuma delas à socialista, acha-a desmiolada; à esquerdista, que mistura os comunistas, os sindicatos e o bloquismo, acha-a despropositada para o país com que sempre sonhou e com poucas qualidades para pertencer ao país que gostaria de deixar, cheio de tecnologia, bons índices na educação e boas maneiras na cultura. Esse é um dos conflitos essenciais de Sócrates com o país real. E, se já se livrou do soarismo e das suas heranças, os próximos tempos serão de insistência: o aborto para agradar à esquerda, o combate ao défice para desarmar a direita, e por aí adiante. É uma boa estratégia. Tem é o perigo e a desvantagem de se topar à distância.

in Jornal de Notícias - 23 Outubro 2006

outubro 21, 2006

O profissionalismo

1. Não sei se os árbitros de­vem ou não profissionalizar-se mas, mesmo mantendo uma grande série de dúvidas e de suspeitas, aceito que ex­periências semelhantes se­jam positivas e vantajosas. Reconheço apenas que é ne­cessário que as arbitragens sejam melhores, que exista mais transparência nesse universo – e chego até a acei­tar que sejam introduzidas inovações de natureza tecno­lógica de modo a facilitar e a melhorar o trabalho dos árbi­tros. Isso é uma coisa. Inteira­mente diferente é a profissio­nalização dos árbitros, como entende o novo presidente da Liga de Clubes, contra a opi­nião da Federação. Ora, essa profissionalização custa di­nheiro. Quem deve pagá-la? Naturalmente, a Liga de Clu­bes.

Acontece que o secretário de Estado do Desporto afirmou, como é seu dever, que não ad­mite subsidiar essa profissio­nalização. Faz muito bem Laurentino Dias, partindo do princípio de que quem não tem dinheiro não tem vícios e de que só se pode ser "profis­sional" quando a profissão garante o salário. É evidente que os clubes podem pagar a arbitragem, mas não sei se es­tão dispostos a isso. Preferem ter os árbitros ao alcance da mão para se desculparem ou para arranjarem desculpas (o que são coisas diferentes). Se o presidente da Liga quer ár­bitros profissionais (no que eu antevejo algumas vantagens, como disse), então deve pa­gar-lhes para que eles se mantenham independentes,
sem estar à espera de eventuais e, a meu ver, inusitados apoios do governo. Nada tão simples.

2. A 6 de Maio passado, num Boavista - F. C. Porto, Ricardo Sil­va agrediu Anderson. Passados seis meses, esta semana, a co­missão de disciplina da Liga de­cidiu avançar com um castigo. Para exemplo de profissionalis­mo, já dá que pensar. Seis meses de profissionalismo. Mas que­rem melhor exemplo de profissio­nalismo na Liga de Clubes do que aquilo que aconteceu com o célebre "caso Mateus"?

3. Contra mim falo, que tinha os maiores receios acerca do re­gresso de Hélder Postiga. O miú­do das Caxinas entrou bem na época. Bruno Moraes está debai­xo de olho – será ele mais um dos pontas de que o F. C. Porto preci­sa?

4. Querem que fale do Sporting – F. C. Porto? Lamento, mas o meu coração só tem uma cor e é conhecida. Mentir para quê? Fingir que sou equidistante, porquê? Não vale a pena. Podia dizer que gostava de ver amanhã um bom jogo de futebol, cheio de "fair play", de elegância e de combatividade muito leal, e é verdade que esse é um bom desejo, gene­roso e louvável. Podia, de facto. Mas alguém ia acreditar? Tenho uma legião de amigos sportinguistas à espreita, vigilantes. Eles acham que eu devo ser "pro­fissional". Não percebem nada do assunto.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 21 Outubro 2006

outubro 16, 2006

Quem conhece os portugueses?

Se a argumentação do Ministério Público (MP) tivesse sido considerada pelo tribunal, a cidadania portuguesa não teria sido atribuída a uma imigrante brasileira do Seixal, casada com um português - e que vive em Portugal há bastantes anos, além de pagar os seus impostos e de possuir bens em território nacional. Ora, o que diz o MP? Reproduzo dos jornais "Não indicou prova da sua integração social, desconhecendo-se o que conhece de Portugal além da região do Seixal, se tem uma percepção histórica de Portugal (conhece, por exemplo, Pedro Álvares Cabral? Ou quem foi o fundador do Reino de Portugal?), das figuras mais representativas da sua cultura (por exemplo, sabe quem foi Camões, autor de 'Os Lusíadas'?), se acompanha a realidade actual do nosso país (como?), se sabe quais os titulares dos principais órgãos políticos da nação (quem exerce as funções de presidente da República? De presidente da Assembleia da República? De primeiro-ministro?), se conhece os símbolos nacionais (quais as cores da bandeira nacional, o hino nacional?), quais os partidos políticos representados na Assembleia da República, qual a função essencial desta."

Pessoalmente - vá lá, em termos ideais -, considero que esteve bem o MP ao manifestar essas preocupações. Para se ser português devia ser necessário saber responder a algumas dessas perguntas essenciais. Temo, no entanto, que a sua argumentação poderia causar uma boa razia no número de cidadãos portugueses nascidos em Portugal e cuja identidade nunca é posta em causa de cada vez que renovam os seus papéis. Sabem eles quem foi Afonso de Albuquerque ou em que ano chegou Vasco da Gama à Índia?

É certo que, periodicamente, aparecem epifenómenos de nacionalismo é necessário conhecer o hino, honrar a bandeira, gostar de sardinhas, saber a lenda de Afonso Domingues (eu ajudo: "A abóboda não caiu, a abóbada não cairá."), enumerar as dinastias, saber que há Cantos nos "Lusíadas", visitar os Jerónimos uma vez na vida.

Veja-se o concurso "Os grandes portugueses" promovido pela RTP que, apesar de vir a tratar-se de uma espécie de "reality show" com votações por sms, tem fornecido abundante matéria de polémica sempre que se elaboram listas desta natureza. O mesmo MP que quis ver a cidadã brasileira com conhecimentos regulares e até simples de história portuguesa empenhará a própria honra quando se apresentar a votação final do concurso.

Em 1987, Ed Hirsch Jr. publicou nos EUA um Livro intitulado "Cultural Literacy What Every American Needs to Know" para concluir que os conhecimentos gerais dos americanos tinham diminuído bastante nos últimos vinte anos. Não há um estudo desses em Portugal. A mim, pessoalmente, irritam-me coisas como "identidade nacional", "as nossas coisas" ou "portugalidade" - mas reconheço que é necessário conhecer e compreender algumas coisas básicas.

É provável que conheçamos os nomes de Eduardo Lourenço ou António José Saraiva, mas sabe-se pouco o que eles pensaram e produziram, tal como acontece com Oliveira Martins, Antero, Verney ou Ruben A., para não dizer Pedro Nunes, Garcia de Orta, ou, num nível absolutamente superior, João Magueijo, Maria de Sousa, Alexandre Quintanilha, António Coutinho ou Pedro Gil Ferreira todos eles cientistas.

A brasileira que o MP quereria submeter a um exame sobre os seus conhecimentos acerca de Portugal poderá legitimamente votar no concurso "Os Grandes Portugueses". Ela não terá dificuldade em se aperceber da importância de Amália, de Eusébio ou de Figo. Tal como ela, milhões de portugueses votarão assim; não acho mal. O MP devia submeter-nos a exame igualmente. Não se perdia nada.

in Jornal de Notícias - 16 Outubro 2006

outubro 14, 2006

Visitando o mito

Em Lisboa, servindo-se de muita literatura e da memória, o cronista visitou o Tavares, o restaurante mais antigo do País. E gostou.

No ano anterior à abertura do restaurante, 1783, nascia Stendhal; nesse ano morria Diderot, no ano seguinte ca­savam o senhor D. João VI de Portugal com Dona Carlota Joaquina de Bourbon e começava a publicar-se o 'Ti­mes', de Londres. Só em 1861, no entanto, o aspecto da sala de jantar se alterou e se aproximou daquilo que é ho­je: candelabros, dourados, espelhos, tectos trabalhados. Não era o 'Times' que João da Ega lia no restaurante ao al­moço de certa manhã – pelas nove horas –, mas sim a 'Gazeta Ilustrada'. O resto da história, vem n’ 'Os Maias', naturalmente, mas transcrevo a ementa do dia: "O bife era excelente - e depois de uma perdiz fria, de um pouco de doce de ananás, de um café forte, Ega sentiu adelga­çar-se enfim aquele negrume que desde a véspera lhe pe­sava na alma. [...] O relógio do café deu dez horas." O parágrafo, para lhes mostrar o lugar onde estamos, começa assim: "No Tavares, ainda solitário àquela hora, um mo­ço areava o sobrado." Precisamente, o Café Tavares – o mítico restaurante de Lisboa, na Rua da Misericórdia, o celebrado Tavares, que, depois de uma prolongada histó­ria de convívio com outros mitos residentes, abre as suas portas para uma cozinha de eleição, rejuvenescida e, con­fesso, cuidada, sob a direcção de Philippe Peudenier.

E que mitos residentes são esses? Bastantes: os mitos do poder, da glória, da conspiração, do cinema, da litera­tura e da política. Muitos deles passaram por lá. Fran­cisco Sá Carneiro gostava de almoçar (perdiz) no Tava­res. Por lá passaram Eça, Ramalho, Oliveira Martins, Bulhão Pato, e depois Almada, e depois Eisenhower, também Calouste Gulbenkian, naturalmente, o exaltante Juscelino Kubitschek, o discreto Fellini, o sem ad­jectivos à altura Cary Grant, e também Madonna - a que tenta cantar. O Tavares foi o palco da Lisboa chi­que e invejada; é o mais antigo restaurante português e o segundo da Península e hoje um restaurante atraen­te, muito mais juvenil e disponível, mas sempre no
mesmo lugar, na Rua da Misericórdia, entre o Chiado e o Bairro Alto. E promete.

Um destes dias cedi à tentação, anos depois da minha es­treia no Tavares Restaurante Gastronómico (em breve vos falarei do Café propriamente dito que funciona ao lado, no primeiro andar), e o regresso, se posso dizê-lo assim, não só correu bem como surpreendeu confortavelmente, quer pela cozinha bem-humorada e saborosa de Philippe Peudenier, quer pela atenção do escanção Arlindo Madeira. Consulta à lista: 'foie gras' de pato, em 'raviolis', num 'consome', 'shitake' e cebolinho; guacamole com camarão tigre salteado e sua guarnição, bacalhau em duas cozeduras, com açorda, azeite de azeitonas pretas se­cas e 'coulis' de pimento vermelho; filete de robalo com 'risotto' de feijão-preto e couve terminando numa redu­ção de lavagante; filete de peixe-galo à 'meuniére', com legumes 'caponatta' e marmelada de limão confitado; medalhões de lavagante grelhados com creme de milho; lombo de novilho laçado com soja, ‘bock choy’ e batatas fritas americanas; carne de porco (preto) à alentejana; e ainda o supremo de pato no forno com cuscuz e molho de cominho e hortelã.

Além da escolha pela carta, há dois menus de degustação, um deles denominado Grande Degustação (e com justiça), a 85 euros - o de degustação "normal" fica por 65 euros. Optámos por este último e satisfez muito bem: o bacalhau estava perfeito, a açorda tinha um subtil toque de limão; o novilho laçado foi uma boa opção com a couvinha chinesa e as batatas fritas com pele e embrulhadas numa tira de papel de jornal; como entrada veio para a mesa uma sublime espetada de cama­rão em rolinho de ‘kadaïf’, mini-alho-francês e molho agridoce, mas a opção podia ter recaído num "carpaccio" de beterraba, parmesão, chouriço, limão e rúcola. Na so­bremesa, optámos por um gelado numa sopa morna de chocolate, crocante de avelã, gelado e 'cappuccino' de amêndoa com coco laminado que acompanhámos com um 'tawny' Niepoort.

O meu conselho é básico: jantar no Tavares pode ser um acontecimento, entre aquelas paredes belíssimas e respirando história. Ao contrário do que se pensa, podemos ir sem gravata, podemos respirar, podemos saborear boa comida e desfrutar de uma garrafeira su­perlativa. E arrumam o carro gratuitamente, o que é uma vantagem na zona.


À LUPA
Carta de vinhos: * * * * *
Carta de digestivos: * * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 250
Vinhos brancos: 70
Vinhos verdes: 8
Portos & Madeiras: 50
Uísques: 30
Aguardentes & conhaques: 12
Champanhes & espumantes: 15

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: não
Área de não-fumadores: não
Reserva: indispensável ao jantar
Preço médio: 70 euros

RESTAURANTE TAVARES
R. da Misericórdia. 35/37
1200-270 Lisboa
Tel: 213421 112 - 213470906
Encerra à segunda-feira

in Revista Noticias Sábado – 14 Outubro 2006

Scolari sem inimigos para se desculpar

1. Luiz Felipe Scolari diz - e bem - que os polacos "tive­ram uma disposição fantás­tica e uma grande capacida­de física" e que o jogo deles foi bom de ver. É simpático concordar com Scolari em matéria de futebol. Mas logo a seguir o treinador da se­lecção acha que os polacos só marcaram porque "come­temos erros". Juntamente com Fernando Santos, o gaúcho é um dos melhores do género a justificar derro­tas, embora fique a anos-luz do actual treinador do Benfica - Santos enreda-se em frases de graciosa engenha­ria que funcionam porque vencem qualquer um pelo cansaço; Scolari é directo como se estivesse em Passo Fundo; lá na serra: "Pô-, nada nos correu bem, tchê."

Acontece que "nada nos correu bem" porque Scolari está com sérias dificuldades em reorganizar uma equipa que ele não conhece e onde lhe falta o espírito de sacris­tia com que tem gosto em trabalhar: meninos arruma­dos e respeitosos, rapazes que se contentam em ouvir Roberto Leal a caminho do estádio e se comovem com os vídeos e power-points que "incentivam o grupo de trabalho". Acontece, além disso, que Scolari não tem, como teve durante o Euro, uma equipa-base (treinada por Mourinho) a guiar o fio de jogo e a que a sua teimo­sia se dobrou depois do primeiro jogo com a Grécia que resultou naquele 0-1 des­graçado. É bom ser um "trei­nador conservador" quando se tem matéria-prima (como ele tinha na época do Mun­dial da Coreia-Japão e, depois, no Euro), mas construir uma equipa é outra coisa. Por isso Nani entrou tarde de mais, por isso havia laterais que de­viam estar no miolo (como Deco), e havia gente no meio do campo que devia estar na ban­cada. Isso, Scolari não expli­cou, tchê. E agora não tem ini­migos para se desculpar. Aque­le silêncio incomoda-o.

2. Os sub-21 portaram-se como uns valentes. Sim, os rus­sos pareciam barqueiros do Volga; mas os portugueses de­ram a volta, e dar a volta é coisa rara por estes lados.

3. A Liga de Luís Filipe Vieira e Valentim Loureiro acabou com cenas lamentáveis, mas adequadas aos personagens. É bom que não se esqueça que aquilo foi obra destes dois cavalheiros.

4. Jesualdo Ferreira diz que o F. C. Porto não perde três vezes seguidas. Pode ser. Até agora, o F. C. Porto tem o melhor ataque do campeonato; o Braga tinha o nono, mas contava com uma defesa ao nível dos portistas, ex-aequo. O que significa que os rapazes se comportaram como uma manada durante a digestão, ruminando o jogo. A vantagem é que Jesualdo não é queixinhas quando tem razões de queixa – nomeadamente, a falta de agressividade, de bons pontas-de-lança ou de alguém para rematar como deve ser. Mas não pode anunciar melho­rias de jogo para jogo porque isso, caro Jesualdo, não se vê ainda. Pode ser esta semana, pode ser.

5. 0 que mais me assusta no F. C. Porto: o quarteto Quaresma, Anderson, Lucho e Helton - e o prejuízo da SAD.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 14 Outubro 2006

outubro 12, 2006

Cidades: (2) Dublin

Inaugurei a minha vida de Dublin (Baile Atha Cliath em gaélico, imagine-se) num dia de sol tímido e frio. O In­verno chega primeiro — tinham-me avi­sado - às ilhas: tem aquela humidade da manhã, a neblina em Dun Laghoire, a lembrança da travessia de barco. Como os irlandeses das histórias, apanhei o comboio em Londres, Euston, ao fim da tarde; tomei o ferry em Holyhead um pouco antes da meia-noite e atravessei o mar da Irlanda convencido de que ia morrer no meio daqueles temporais de Outubro. Faltou pouco. Mas eu tinha de sobreviver para ver a cidade de grande parte dos meus sonhos de adolescência – a cidade da música, dos bares, da litera­tura e dos escritores, dos autores banidos ou escondidos da Grande História, das livrarias e do whiskey. Na altura, a ordem era esta. Passo por cima da música por­que entretanto mudou tudo e, nesses anos, Dublin significava para mim dois ou três discos de Van Morrison (que iria cantar «On Laglan Road» em Irish Heartbeat), os Dubliners (com aquela voz profunda, imaterial, de Ronnie Derw, cantando «The Auld Triangle», o poe­ma imortal de Brendan Behan), The Pogues (Shane McGowan e os seus, balan­çando entre o rock de uma das grandes canções futuras da banda, «Lorelei», o desvario anunciado em «Red Roses for Me» e a perdição romântica da voz de Cait O'Riordan a cantar «Fairy Tale of New York» e a fantástica «I’m A Man You Don't Meet Every Day»), e os ecos da música mais tradicional: Seán O Riada, Planxty, Clancy Brothers, Christy Moore, Clannad, e mais vos diria eu.

E havia o mundo dos escritores, na­turalmente: o dos perdidos, onde velava a sombra de Jonathan Swift, e havia Yeats (meu poeta de então), Shaw, Joyce, Behan, Elisabeth Bowen, William Trevor, Sean O'Casey, Maeve Binchy, Banville, Frank Ronan, Colm Tóibin, Seamus Heaney ou Patrick Kavannagh. Ha­via os cheques sem cobertura e os vales sem fundo entregues por Joyce para dívi­das contraídas no Davvy Byrnes, um dos pubs da baixa de Dublin. Havia o percur­so do Ulysses, a iniciar às oito da manhã em Martello Tower. Havia o Bloom's e o Buswell’s, os dois hotéis literários da cidade. Havia livrarias como a Books Up-stairs. Havia os passeios em redor dos ca­nais e as caminhadas em St. Stephen's Green. E havia a lista interminável de pubs onde a trilogia «Guinness-whiskey-música» se erguia como uma torrente de alegria e de desgraça (com o O’Donohuges à cabeça). Dublin é uma cidade cuja memória se deve aos seus escritores mais elementares, à luta pela independência e à boémia literária e musical que animava a cidade para lá das lutas políticas.

Mais tarde (quando a idade me le­vou a conhecer a elegância de um dos seus melhores hotéis, o Berkeley Court), Dublin mudou substancialmente. Da década de oitenta para hoje, perdeu muito do seu encanto como cidade da literatura e desse resto de boémia europeia, que só ali resistia diante do «mundo civilizado». O popularizado «milagre irlandês» na economia, que é bom para se falar de ri­gor e investimento, não serve para ali­mentar nem a aventura nem a melanco­lia dos viajantes. Há vinte anos, quatro ou cinco dias serviam para conhecer a Dublin que só existia em Dublin – hoje, ao fim de dois dias, descobre-se que essa melancolia e essa aventura têm de ser procuradas fora da cidade, do outro lado da ilha, a duas horas e meia de comboio, mais uma de barco, atravessando o país.

Aí, sinto-me na velha Irlanda, nas ilhas Aran. Recomendo a viagem, após Dublin e o percurso até Galway. Ao che­gar diante de Dun Aengus, o forte erigido ao deus do Amor, numa das margens de Aranmore, visito a Europa corajosa e vibrante de outros séculos. Nada que ver com a normalização a que estamos con­denados. Sobra-nos a literatura, não é?

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Outubro 2006

outubro 09, 2006

Sobre a má fama dos professores

1. Há duas realidades essenciais ligadas aos problemas do ensino em Portugal. Em primeiro lugar, a ministra da educação tem razão na absoluta maioria das medidas adoptada (contesto fortemente o papel despropositado concedido aos pais e encarregados de educação na avaliação dos professores, que terá consequências muito perigosas na estabilidade das escolas); em segundo lugar, se há culpas a atribuir pelo estado calamitoso de que se revestem alguns aspectos do ensino em Portugal, elas cabem - por maioria - aos técnicos do próprio ministério e à burocracia "pedagógica e ideológica" que se instala periodicamente na Avenida 5 de Outubro (sindicatos incluídos).

Neste complexo, os professores - os que estão instalados no terreno - são o elo mais fraco de uma cadeia de comando em que, frequentemente, têm sido cobaias de vários génios, certamente talentosos, que, à distância, "imaginam" o ensino em Portugal. Quando falo no "terreno", quero dizer "as escolas", quero dizer os problemas de indisciplina com que têm de lidar permanentemente, os contactos com os pais, a realidade fatal das agressões nos corredores e nos gabinetes (por alunos e pais das criancinhas), a catadupa de legislação escolar em que têm de se especializar, as alterações muitas vezes absurdas das orientações científicas caídas do parnaso ministerial. Muitas vezes, aliás, por culpa do Ministério (que vive a desconfiar dos professores) eles não têm meios para reagir nem à indisciplina, nem ao insucesso escolar, nem às salas frias de escolas públicas onde falta gás para aquecimento, nem aos manuais escolares de qualidade confrangedora que o ministério autoriza a circular, nem aos - repito - génios certamente carregados de talento que, depois de requisitados às escolas, se ocupam de reformar periodicamente os programas e a gramática das suas directivas.

Se alguém se ocupar, durante alguns dias, a analisar grande parte dos documentos de natureza pedagógica e ideológica que emanam do ministério da educação acerca de coisas tão díspares como matemática, português ou disciplina na sala de aula, fica com a impressão de que um grupo de esquizofrénicos se entretém a punir professores e alunos com uma gramática desconhecida e absurda. Este é apenas um exemplo, mas haveria muitos. Leiam os materiais de apoio e rejubilem.

A ministra, trata os professores como uma corporação, à semelhança do que o governo entende fazer com os farmacêuticos ou os juízes e médicos. Errado. Depois de disciplinar a vida da escola, a verdadeira corporação resiste e sobrevive nos vários andares daquele pobre ministério cheio de - repito - génios certamente carregados de talento, mas que tudo têm feito para tentar destruir o ensino. Os professores são o elo mais fraco nessa cadeia de pequenos ideólogos formados à pressa nos anos setenta e que se encarregaram de matérias científicas, sindicais e pedagógicas com empenho semelhante. Isto pode não preocupar a ministra para já. Mas os professores sabem do que falo. E esse é o próximo desafio, se houver seriedade.

2. Não é por ignorância que um jornalista de rádio diz, aos microfones, que Lula da Silva "terá de esperar até ao próximo dia 29 para ver confirmada a sua reeleição". As eleições brasileiras, por ignorância e desconhecimento da matéria, têm sido tão maltratadas na imprensa portuguesa que muitos dos jornalistas encarregues de tratar o assunto desconhecem até o nome de Geraldo Alckmin, ignoram a biografia de Heloísa Helena e não relacionam o de Cristóvam Buarque com a figura homónima. Não admira. O mundo está escrito de uma certa maneira; se a realidade não cabe na forma desse pudim, a culpa é, naturalmente, da realidade.

in Jornal de Notícias - 9 Outubro 2006

outubro 07, 2006

A promessa do cozido


Finalmente, o cronista cumpre a promessa e fala do cozido à portuguesa na versão do Conselheiro, em Paredes de Coura. Aplausos e pacificação.

Começo como num romance familiar, dumasiano, muito “A Dama das Camélias”, dos anos fatais: “Estava um princípio de tarde chuvoso. Bétulas, carvalhos, pinheiros, castanheiros frondosos, silvados inclinados nos muros espalhavam o seu verde pelas colinas.” Ora aí está: chovia na manhã de domingo e eu estava, uma vez mais, no Alto Minho, dobrando – no mapa – para o interior, na direcção de Paredes de Coura. Não em demanda da praia fluvial do Taboão para acampar e participar no festival de Verão, cheio de rock (ao que me dizem), mas na direcção do centro da vila; quando muito visitaria a calçada romana vinda de Romarigães, com bastante Aquilino à mistura, à procura do Caminho de Santiago. Só que éramos quatro e nenhum de nós estava na disposição de fazer pesquisa histórico-pasagística e de dispensar a prometida ida ao Conselheiro, um dos santuários de minha predilecção. E, perguntais, leitoras e leitores, comer o quê? Nunca se sabe. Mestre Vilaça Pinto, o Conselheiro propriamente dito, comanda as operações naquela sala de restaurante tradicional, sem ademanes, apenas com sinais de etnografia minhota dependurada nas paredes, aqui e ali. Mas, se a ementa flutua, há no entanto um desígnio fatal no Conselheiro: o perfume que vem da cozinha.

Se optais pela refeição “com todos”, atentai nas entradinhas: pataniscas (onde há pedaços de bacalhau navegando), bolinhos de bacalhau, rissóis, bolo do tacho, cabeça de xara (sentida homenagem à deambulação de Mestre Vilaça pelo Algarve e pelo Alentejo), polvo à galega, morcela com couve-galega salteada, salpicão, chouriço assado, alheira de caça, presunto com broa de milho frita – enfim, com todas as garantias farmacêuticas. O bolo no tacho, esclareço se precisais de esclarecimentos, é uma espécie de tortilha desenhada na frigideira de ferro, sertã, com massa de broa tostada em toucinho.
Como ao sábado é dia de feijoada (de raízes barrosãs, excelente, com feijãozinho claro), havia ainda um nadinha para provar, e provou-se. Estava supimpa.

Mas vejamos os peixes, que estão eles próprios espreitando: truta à Conselheiro, de escabeche ou grelhada (salmonada); bacalhau à Conselheiro ou à moda da aldeia; cabeça e rabo de bacalhau com todos; pescada cozida à Conselheiro, cherne e filetes de linguado grelhado. E passemos adiante, às carnes, porque Paredes de Coura não é Leça da Palmeira: cabrito dos montes de Padornelos avinhado em Verde tinto, rojões da sorça (vinha d’alhos, portanto), pica no chão em arroz de cabidela, arroz de pato à moda de Braga, costeletas de borrego, bife de vaca, entre outras indicações versáteis. Mas era domingo de cozido (aliás, “panela de cozido à moda da aldeia”). Veio o cozido com todos. Veio o cozido com vinhos da região. Primeiro aplauso para os odores; segundo aplauso para a travessa engalanada a preceito; terceiro aplauso para o conjunto – enchidos tradicionais, caseiros, chegados da aldeia; couvinha saborosa, feijão, legumes transidos e amaciados. Para cumprir o formulário tradicional, não há vaca no cozido do Conselheiro, mas a galinha é apetecível.

À medida que a sala se esvaziava, depois do leite-creme queimado, do arroz doce (das Vessadas, garante a receita), do pudim do Abade de Priscos, do toucinho do céu ou dos muito bons formigos courenses (faltaram-me as rabanadas com vinho verde tinto, canela e polvilho de açúcar), formava-se uma estranha paz dentro das paredes do restaurante, não porque os convivas fossem desagradáveis, mas porque deixavam um ar de satisfação plena, coisa boa de ver em restaurantes familiares como o Conselheiro, abertos para o ainda mais familiar almoço de domingo. Tive pena de não poder regressar na terça-feira logo a seguir, quando, em sertã de ferro, se juntam alguns dos ingredientes do cozido de domingo e se apresenta o “cozido frito”, elemento fundamental do seu cardápio.

Não consultei demoradamente a carta de vinhos mas parece-me haver boas escolhas, em detrimento da quantidade. É o suficiente, neste caso. Não dei por falta – e entretive-me, com o café, a bebericar uma aguardente local, de vinho verde, que me fará voltar.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 22
Vinhos verdes: 20
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 12
Aguardentes & conhaques: 12
Champanhes & espumantes: 3

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: sim
Tem área de não-fumadores: não
Reserva: conveniente ao domingo
Preço médio: 20 euros

O CONSELHEIRO
Largo Conselheiro Miguel Dantas
4940-529 Paredes de Coura
Tel: 251 782 610Encerra à segunda-feira

in Revista Notícias Sábado - 7 Outubro 2006

Didi perdeu em Braga e Jorge Costa despede-se

1. Por motivos suspeitos e absurdos, o Sporting de Braga-FC Porto desta semana lembrou-me Didi, considerado o melhor criador de jogo no Mundial de 1958, na Suécia – o campeonato que marcou a arrancada do Brasil. Ia distrair-me e falar de Pelé, Mané Garrincha, Vavá, Nilton Santos, Mazzola e Didi, mas não vale a pena. Fico-me por Didi como o contrário de tudo o que o FC Porto fez em campo. Duas frases do génio, apenas. A primeira, enganosa: “Quem corre é ela”, dizia Didi (especialista no golpe de “folha seca”) sobre a bola. Os jogadores do FC Porto também esperavam que a bola corresse e os substituísse ao longo do jogo – mas não fizeram nada por isso, como se sofressem de paralisia temporária nas meninges. A outra frase de Didi é patifaria: “Eu tratava a bola com tanto carinho como trato a minha mulher, tinha por ela um carinho tremendo. Se você a maltratar, quebra a perna.” Se isso fosse verdade, os rapazes tinham saído de Braga em maca e embrulhados em gesso, directamente para a ortopedia do Dragão. Na verdade, em noventa minutos, os jogadores do Porto maltrataram a bola quanto podiam. Já não repito que o segundo golo do Braga foi, também, obra da vastíssima preguiça daquela manada fatigada que defendia a área; o primeiro foi resultado da sua arrogância, o segundo da sua preguiça. Em ambos os casos, mereceram perder, convencidos de que o Braga ia fazer em casa aquilo que tinha feito em Itália na primeira parte do jogo com o Chievo. Ora, de convencidos está o purgatório cheio.

2. Ele, sozinho, cercava os adversários – mas Jorge Costa (eu chamava-lhe “o Bruce Willis de Ermesinde”) anunciou esta semana que vai abandonar os estádios. A notícia tem o seu quê de preocupante, em primeiro lugar porque ainda não se sabe se o FC Porto lhe vai render a justa e justificadíssima homenagem que “o capitão” devia receber. O FC Porto dos melhores anos deve muito a Jorge Costa, afastado da equipa nos tempos de Octávio Machado e, depois, de Co Adriaanse. A ingratidão é o mais vergonhoso e desgraçado dos sentimentos e Jorge Costa não merece que, ao abandonar a carreira, se esqueçam de o convidar para entrar no estádio do Dragão e receber os aplausos devidos. Com Vítor Baía, Jorge Costa é um dos grandes representantes desse FC Porto histórico, campeão dentro e fora de portas. Não se esqueçam. A ingratidão é o pior dos sentimentos.

3. O meu Grêmio de Porto Alegre está em segundo lugar no Brasileirão, perseguindo o São Paulo. Mas não é só isso. Como um verdadeiro gremista assinalo a evidência acrescentando esta informação preciosa: e o Internacional perdeu anteontem. O verdadeiro clube internacional de Porto Alegre é o Grêmio.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 7 Outubro 2006

outubro 02, 2006

O perigo da liberdade

Há umas semanas vi pela primeira vez, pela televisão, um mesmo cartaz em duas manifestações que decorriam em simultâneo em Londres e em Nova Iorque: "Freedom go to hell" ("Liberdade vai para o inferno"). Depois, o "slogan" repetiu-se e espalhou-se um pouco por toda a parte, em ajuntamentos de protesto contra um recente discurso do papa, realizados em cidades europeias e americanas onde homens e mulheres de outros séculos lutaram pela liberdade ou sofreram a agressão daqueles que a negavam: liberdade religiosa, liberdade política, liberdade económica, liberdade – enfim.

A história mostra-nos que as sociedades que evoluíram, que se desenvolveram e que asseguram um assinalável índice de conforto e de bem-estar para os seus cidadãos são sociedades onde a liberdade não foi posta em causa. Para que se pudessem denunciar abusos, para que os indivíduos procurassem novas formas de coexistência fora das regras impostas pelas religiões e pelas oligarquias e para que as pessoas pudessem procurar a felicidade da forma que entendessem sem limitar a liberdade dos outros. Sociedades outrora desenvolvidas onde se registou progresso económico, invenções científicas e tecnológicas que trouxeram benefícios para a humanidade, criações filosóficas e artísticas importantes (como na China, zonas do Médio Oriente e da Ásia), decaíram porque sacrificaram esses bens ao altar do totalitarismo religioso, do estado ou das oligarquias, que impediram o riso, a comédia, a crítica, o livre-pensamento, a racionalidade na política, a educação para ambos os sexos ou os avanços da ciência. Esta é a lição que devíamos ter aprendido.

Acontece que, esta semana uma encenação de "Idomeneo", uma ópera de Mozart, foi suspensa na Deutsche Öper, de Berlim, com o argumento de que poderia ofender e, portanto, desencadear reacções violentas de radicais islâmicos dado que mostra, em determinado momento, as cabeças decepadas de Cristo, Maomé e Buda. Não discuto a encenação. Mas o gesto é desprezível e abjecto. Escuso de mencionar o que teremos de fazer, daqui em diante, às obras de Camões, Dante, Shakespeare ou Fernão Mendes Pinto; amputaremos passagens, corrigiremos versos, alteraremos páginas inteiras.

Mas não se pense que este é um acto isolado: há tempos, uma instituição universitária responsável e digna, em Coimbra, realizou um debate sobre as célebres caricaturas de Maomé, recusando-se a exibi-las com o argumento de que o acto poderia ser ofensivo.

É isto viver no fio da navalha, não apenas nos gestos da nossa vida quotidiana, mas naquilo que pode implicar os fundamentos da civilização que foi capaz de criar monumentos e obras destinadas à eternidade – na arte e na ciência, na política e na economia. Não se pode senão protestar e pedir que não abdiquemos da nossa liberdade. Admito que essa encenação de Mozart (da qual Mozart não tem responsabilidade) não possa ser realizada em países onde há restrições à liberdade ou onde religião e política sejam indissociáveis; mas estamos a falar de Berlim, onde há umas décadas existia um muro que dividia duas civilizações e duas formas diferentes de entender a liberdade e onde a sua queda é um símbolo irreversível.

Infelizmente, chegámos a um ponto em que a indignação e o protesto não bastam e são, aliás, actos falhados. Precisamos de mais. Precisamos de estabelecer princípios firmes em defesa da liberdade, e em redor dos quais possamos estar de acordo: se queremos continuar cidadãos livres ou se admitimos limitações sérias e radicais à liberdade de expressão e de criação. Pode até acontecer que a maioria dos europeus aceite rir apenas na escuridão e viver em regime de permanente auto-censura. Admito. E, se assim for, só nos resta dizer que tudo isto falhou.

in Jornal de Notícias - 2 Outubro 2006