Cidades: (2) Dublin
Inaugurei a minha vida de Dublin (Baile Atha Cliath em gaélico, imagine-se) num dia de sol tímido e frio. O Inverno chega primeiro — tinham-me avisado - às ilhas: tem aquela humidade da manhã, a neblina em Dun Laghoire, a lembrança da travessia de barco. Como os irlandeses das histórias, apanhei o comboio em Londres, Euston, ao fim da tarde; tomei o ferry em Holyhead um pouco antes da meia-noite e atravessei o mar da Irlanda convencido de que ia morrer no meio daqueles temporais de Outubro. Faltou pouco. Mas eu tinha de sobreviver para ver a cidade de grande parte dos meus sonhos de adolescência – a cidade da música, dos bares, da literatura e dos escritores, dos autores banidos ou escondidos da Grande História, das livrarias e do whiskey. Na altura, a ordem era esta. Passo por cima da música porque entretanto mudou tudo e, nesses anos, Dublin significava para mim dois ou três discos de Van Morrison (que iria cantar «On Laglan Road» em Irish Heartbeat), os Dubliners (com aquela voz profunda, imaterial, de Ronnie Derw, cantando «The Auld Triangle», o poema imortal de Brendan Behan), The Pogues (Shane McGowan e os seus, balançando entre o rock de uma das grandes canções futuras da banda, «Lorelei», o desvario anunciado em «Red Roses for Me» e a perdição romântica da voz de Cait O'Riordan a cantar «Fairy Tale of New York» e a fantástica «I’m A Man You Don't Meet Every Day»), e os ecos da música mais tradicional: Seán O Riada, Planxty, Clancy Brothers, Christy Moore, Clannad, e mais vos diria eu.
E havia o mundo dos escritores, naturalmente: o dos perdidos, onde velava a sombra de Jonathan Swift, e havia Yeats (meu poeta de então), Shaw, Joyce, Behan, Elisabeth Bowen, William Trevor, Sean O'Casey, Maeve Binchy, Banville, Frank Ronan, Colm Tóibin, Seamus Heaney ou Patrick Kavannagh. Havia os cheques sem cobertura e os vales sem fundo entregues por Joyce para dívidas contraídas no Davvy Byrnes, um dos pubs da baixa de Dublin. Havia o percurso do Ulysses, a iniciar às oito da manhã em Martello Tower. Havia o Bloom's e o Buswell’s, os dois hotéis literários da cidade. Havia livrarias como a Books Up-stairs. Havia os passeios em redor dos canais e as caminhadas em St. Stephen's Green. E havia a lista interminável de pubs onde a trilogia «Guinness-whiskey-música» se erguia como uma torrente de alegria e de desgraça (com o O’Donohuges à cabeça). Dublin é uma cidade cuja memória se deve aos seus escritores mais elementares, à luta pela independência e à boémia literária e musical que animava a cidade para lá das lutas políticas.
Mais tarde (quando a idade me levou a conhecer a elegância de um dos seus melhores hotéis, o Berkeley Court), Dublin mudou substancialmente. Da década de oitenta para hoje, perdeu muito do seu encanto como cidade da literatura e desse resto de boémia europeia, que só ali resistia diante do «mundo civilizado». O popularizado «milagre irlandês» na economia, que é bom para se falar de rigor e investimento, não serve para alimentar nem a aventura nem a melancolia dos viajantes. Há vinte anos, quatro ou cinco dias serviam para conhecer a Dublin que só existia em Dublin – hoje, ao fim de dois dias, descobre-se que essa melancolia e essa aventura têm de ser procuradas fora da cidade, do outro lado da ilha, a duas horas e meia de comboio, mais uma de barco, atravessando o país.
Aí, sinto-me na velha Irlanda, nas ilhas Aran. Recomendo a viagem, após Dublin e o percurso até Galway. Ao chegar diante de Dun Aengus, o forte erigido ao deus do Amor, numa das margens de Aranmore, visito a Europa corajosa e vibrante de outros séculos. Nada que ver com a normalização a que estamos condenados. Sobra-nos a literatura, não é?
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Outubro 2006
E havia o mundo dos escritores, naturalmente: o dos perdidos, onde velava a sombra de Jonathan Swift, e havia Yeats (meu poeta de então), Shaw, Joyce, Behan, Elisabeth Bowen, William Trevor, Sean O'Casey, Maeve Binchy, Banville, Frank Ronan, Colm Tóibin, Seamus Heaney ou Patrick Kavannagh. Havia os cheques sem cobertura e os vales sem fundo entregues por Joyce para dívidas contraídas no Davvy Byrnes, um dos pubs da baixa de Dublin. Havia o percurso do Ulysses, a iniciar às oito da manhã em Martello Tower. Havia o Bloom's e o Buswell’s, os dois hotéis literários da cidade. Havia livrarias como a Books Up-stairs. Havia os passeios em redor dos canais e as caminhadas em St. Stephen's Green. E havia a lista interminável de pubs onde a trilogia «Guinness-whiskey-música» se erguia como uma torrente de alegria e de desgraça (com o O’Donohuges à cabeça). Dublin é uma cidade cuja memória se deve aos seus escritores mais elementares, à luta pela independência e à boémia literária e musical que animava a cidade para lá das lutas políticas.
Mais tarde (quando a idade me levou a conhecer a elegância de um dos seus melhores hotéis, o Berkeley Court), Dublin mudou substancialmente. Da década de oitenta para hoje, perdeu muito do seu encanto como cidade da literatura e desse resto de boémia europeia, que só ali resistia diante do «mundo civilizado». O popularizado «milagre irlandês» na economia, que é bom para se falar de rigor e investimento, não serve para alimentar nem a aventura nem a melancolia dos viajantes. Há vinte anos, quatro ou cinco dias serviam para conhecer a Dublin que só existia em Dublin – hoje, ao fim de dois dias, descobre-se que essa melancolia e essa aventura têm de ser procuradas fora da cidade, do outro lado da ilha, a duas horas e meia de comboio, mais uma de barco, atravessando o país.
Aí, sinto-me na velha Irlanda, nas ilhas Aran. Recomendo a viagem, após Dublin e o percurso até Galway. Ao chegar diante de Dun Aengus, o forte erigido ao deus do Amor, numa das margens de Aranmore, visito a Europa corajosa e vibrante de outros séculos. Nada que ver com a normalização a que estamos condenados. Sobra-nos a literatura, não é?
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Outubro 2006
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