outubro 28, 2006

Dona Isaura

Regressando ao Isaura, fundado em 1952, em Lisboa, confirma-se que a memória, sempre traiçoeira, afinal não desmentiu o essencial: comida saborosa e uma carta de vinhos muito acima da média.

Chove sobre Lisboa, o que quer dizer, também, que o Outono chegou a horas. É preciso referir as condições me­teorológicas, naturalmente, uma vez que o estômago por vezes nunca se afasta muito da estratosfera, das nuvens que passam, das praças molhadas pelas últimas chuvas. A zona, entre a Avenida de Roma e o Areeiro, lembra no­velas dos anos sessenta e princípio dos anos setenta (lem­bram-se de 'Pôr do Sol, no Areeiro', de Luís de Sttau Mon­teiro?), com os seus prédios da época de ouro, burgueses, civilizados, austeros, respeitáveis, cheios de hábitos e de memórias. Amigos meus de várias gerações passaram nes­sas pracetas, fizeram história, recordam-se da adolescên­cia, das ramagens dos plátanos, do trânsito diminuto, dos becos, dos muros, de uma pequena vila no meio da cida­de, entre a Praça de Londres e o Areeiro, entre o Areeiro e Alvalade, entre a Almirante Reis e a Avenida de Roma, en­tre a João XXI e as ruas das traseiras – aquelas, como a de Paris, onde se circula devagar em dias de chuva, onde se passeia a pé depois da hora de jantar, passeando o cão, passeando o cigarro, passeando esta Lisboa cómoda, con­fortável, paredes-meias com a tranquilidade.

Quase a atingir a Almirante Reis, fica o Isaura. De entre os clássicos de Lisboa, é uma das opções segu­ras. Foi no Isaura, há muitos anos, que enfrentei pela primeira vez a sabedoria de um escanção, o senhor Costa, recomendando-me um vinho, salvando-me da aflição – e que escolha, que saborosa escolha, fazendo companhia a uns jaquinzinhos (primeiro) e a uma galinha de cabidela (depois) com igual e sur­preendente doçura. Foi há muitos anos.

Passadas muitas chuvas voltei ao Isaura, reconheci as suas escadas para o piso onde as mesas se ali­nham, onde os clientes clássicos se reconhecem pela forma como manejam o cardápio e aceitam uma palavra de encorajamento. Filetes de garoupa com arrozinho de feijão e o bacalhau com migas à moda
de Figueiró dos Vinhos foi a opção desta vez, acerta­da, para dois vinhos distintos - um branco que acompanhou ostras fresquíssimas e um tinto (do Douro, bênção do Altíssimo) para o restante das escolhas. Tanto o bacalhau (couvinha, feijão, pão, batatinhas) como a garoupa estavam na ordem exacta em que se devem encontrar; o bacalhau, banhado de azeite de uma cor fantástica; a garoupa rescendendo a mar, ainda, temperada sem sofregui­dão – ambos retirados de uma lista onde distingui­mos o bife à Isaura, o bife (de lombo de vaca) à Faustino, a cataplana de tamboril, ou de cherne, 'fondue' de lombo de vaca, 'fondue' de peixe, baca­lhau assado, borrego dos casamentos, caril de gam­bas, cabrito frito com açorda, cozido à portuguesa (no seu dia), cogumelos grelhados com 'bacon', cal­deirada de peixe, sardinhas albardadas, bacalhau à moda de Braga, rojões de porco, galinha de cabide­la, vitela à transmontana, feijoada à transmontana, entrecote de novilho, chanfana, caldeirada de cabri­to, enguias fritas, açorda de sável, lebre com feijão branco, pitéu de lulas à algarvia e, além disto, uma lista de pratos lisboetas, ou de matriz culinária lisboeta, onde andam, entre outros, os pastéis de baca­lhau, o bife à Marrare, os tais jaquinzinhos com açorda, as pataniscas de bacalhau (com arroz de tomate, com arroz de feijão, com arroz de grelos), a sopa rica de peixe, a meia-desfeita onde o bacalhau e o grão se harmonizam com bom azeite, a perdiz à Isaura, os peixinhos da horta de polme estaladiço e claríssimo, ou o bacalhau à Brás que já me conten­tou várias vezes, muito bom. Se o leitor verificar, reconhece que não sou muito inclinado a elogios doceiros, mas menciono desta vez o leite-creme, a encharcada de Mourão, o rançoso de idênticas resso­nâncias alentejanas, a mousse de chocolate e, final­mente, o creme de maçã simples ou com gelado, o gelado de natas com amora e cassis, o amoroso bati­do de papaia (suavíssimo, encantador para quem prefere coisas açúcares ligeiros) ou as pêras bêbedas, que são parte da minha lista de preferências.

Passados alguns anos, esta ida ao Isaura confirmou que a memória não me tinha atraiçoado. Valeu a pena, sim, nem que fosse pela leitura da carta de vinhos muito, muito acima da média, e muito bem manejada.

À LUPA
Carta de vinhos: * * * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 220
Vinhos brancos: 52
Vinhos verdes e Alvarinhos: 9
Portos & Madeiras: 22
Uísques: 18
Aguardentes portuguesas: 14
Champanhes & espumantes: 10

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 25 euros

RESTAURANTE ISAURA
Av. de Paris. 4-B
1000-228 Lisboa
Tel: 218480838 - 218486651
Encerra aos sábados

in Revista Notícias Sábado - 28 Outubro 2006