outubro 07, 2006

A promessa do cozido


Finalmente, o cronista cumpre a promessa e fala do cozido à portuguesa na versão do Conselheiro, em Paredes de Coura. Aplausos e pacificação.

Começo como num romance familiar, dumasiano, muito “A Dama das Camélias”, dos anos fatais: “Estava um princípio de tarde chuvoso. Bétulas, carvalhos, pinheiros, castanheiros frondosos, silvados inclinados nos muros espalhavam o seu verde pelas colinas.” Ora aí está: chovia na manhã de domingo e eu estava, uma vez mais, no Alto Minho, dobrando – no mapa – para o interior, na direcção de Paredes de Coura. Não em demanda da praia fluvial do Taboão para acampar e participar no festival de Verão, cheio de rock (ao que me dizem), mas na direcção do centro da vila; quando muito visitaria a calçada romana vinda de Romarigães, com bastante Aquilino à mistura, à procura do Caminho de Santiago. Só que éramos quatro e nenhum de nós estava na disposição de fazer pesquisa histórico-pasagística e de dispensar a prometida ida ao Conselheiro, um dos santuários de minha predilecção. E, perguntais, leitoras e leitores, comer o quê? Nunca se sabe. Mestre Vilaça Pinto, o Conselheiro propriamente dito, comanda as operações naquela sala de restaurante tradicional, sem ademanes, apenas com sinais de etnografia minhota dependurada nas paredes, aqui e ali. Mas, se a ementa flutua, há no entanto um desígnio fatal no Conselheiro: o perfume que vem da cozinha.

Se optais pela refeição “com todos”, atentai nas entradinhas: pataniscas (onde há pedaços de bacalhau navegando), bolinhos de bacalhau, rissóis, bolo do tacho, cabeça de xara (sentida homenagem à deambulação de Mestre Vilaça pelo Algarve e pelo Alentejo), polvo à galega, morcela com couve-galega salteada, salpicão, chouriço assado, alheira de caça, presunto com broa de milho frita – enfim, com todas as garantias farmacêuticas. O bolo no tacho, esclareço se precisais de esclarecimentos, é uma espécie de tortilha desenhada na frigideira de ferro, sertã, com massa de broa tostada em toucinho.
Como ao sábado é dia de feijoada (de raízes barrosãs, excelente, com feijãozinho claro), havia ainda um nadinha para provar, e provou-se. Estava supimpa.

Mas vejamos os peixes, que estão eles próprios espreitando: truta à Conselheiro, de escabeche ou grelhada (salmonada); bacalhau à Conselheiro ou à moda da aldeia; cabeça e rabo de bacalhau com todos; pescada cozida à Conselheiro, cherne e filetes de linguado grelhado. E passemos adiante, às carnes, porque Paredes de Coura não é Leça da Palmeira: cabrito dos montes de Padornelos avinhado em Verde tinto, rojões da sorça (vinha d’alhos, portanto), pica no chão em arroz de cabidela, arroz de pato à moda de Braga, costeletas de borrego, bife de vaca, entre outras indicações versáteis. Mas era domingo de cozido (aliás, “panela de cozido à moda da aldeia”). Veio o cozido com todos. Veio o cozido com vinhos da região. Primeiro aplauso para os odores; segundo aplauso para a travessa engalanada a preceito; terceiro aplauso para o conjunto – enchidos tradicionais, caseiros, chegados da aldeia; couvinha saborosa, feijão, legumes transidos e amaciados. Para cumprir o formulário tradicional, não há vaca no cozido do Conselheiro, mas a galinha é apetecível.

À medida que a sala se esvaziava, depois do leite-creme queimado, do arroz doce (das Vessadas, garante a receita), do pudim do Abade de Priscos, do toucinho do céu ou dos muito bons formigos courenses (faltaram-me as rabanadas com vinho verde tinto, canela e polvilho de açúcar), formava-se uma estranha paz dentro das paredes do restaurante, não porque os convivas fossem desagradáveis, mas porque deixavam um ar de satisfação plena, coisa boa de ver em restaurantes familiares como o Conselheiro, abertos para o ainda mais familiar almoço de domingo. Tive pena de não poder regressar na terça-feira logo a seguir, quando, em sertã de ferro, se juntam alguns dos ingredientes do cozido de domingo e se apresenta o “cozido frito”, elemento fundamental do seu cardápio.

Não consultei demoradamente a carta de vinhos mas parece-me haver boas escolhas, em detrimento da quantidade. É o suficiente, neste caso. Não dei por falta – e entretive-me, com o café, a bebericar uma aguardente local, de vinho verde, que me fará voltar.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 22
Vinhos verdes: 20
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 12
Aguardentes & conhaques: 12
Champanhes & espumantes: 3

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: sim
Tem área de não-fumadores: não
Reserva: conveniente ao domingo
Preço médio: 20 euros

O CONSELHEIRO
Largo Conselheiro Miguel Dantas
4940-529 Paredes de Coura
Tel: 251 782 610Encerra à segunda-feira

in Revista Notícias Sábado - 7 Outubro 2006