outubro 02, 2006

O perigo da liberdade

Há umas semanas vi pela primeira vez, pela televisão, um mesmo cartaz em duas manifestações que decorriam em simultâneo em Londres e em Nova Iorque: "Freedom go to hell" ("Liberdade vai para o inferno"). Depois, o "slogan" repetiu-se e espalhou-se um pouco por toda a parte, em ajuntamentos de protesto contra um recente discurso do papa, realizados em cidades europeias e americanas onde homens e mulheres de outros séculos lutaram pela liberdade ou sofreram a agressão daqueles que a negavam: liberdade religiosa, liberdade política, liberdade económica, liberdade – enfim.

A história mostra-nos que as sociedades que evoluíram, que se desenvolveram e que asseguram um assinalável índice de conforto e de bem-estar para os seus cidadãos são sociedades onde a liberdade não foi posta em causa. Para que se pudessem denunciar abusos, para que os indivíduos procurassem novas formas de coexistência fora das regras impostas pelas religiões e pelas oligarquias e para que as pessoas pudessem procurar a felicidade da forma que entendessem sem limitar a liberdade dos outros. Sociedades outrora desenvolvidas onde se registou progresso económico, invenções científicas e tecnológicas que trouxeram benefícios para a humanidade, criações filosóficas e artísticas importantes (como na China, zonas do Médio Oriente e da Ásia), decaíram porque sacrificaram esses bens ao altar do totalitarismo religioso, do estado ou das oligarquias, que impediram o riso, a comédia, a crítica, o livre-pensamento, a racionalidade na política, a educação para ambos os sexos ou os avanços da ciência. Esta é a lição que devíamos ter aprendido.

Acontece que, esta semana uma encenação de "Idomeneo", uma ópera de Mozart, foi suspensa na Deutsche Öper, de Berlim, com o argumento de que poderia ofender e, portanto, desencadear reacções violentas de radicais islâmicos dado que mostra, em determinado momento, as cabeças decepadas de Cristo, Maomé e Buda. Não discuto a encenação. Mas o gesto é desprezível e abjecto. Escuso de mencionar o que teremos de fazer, daqui em diante, às obras de Camões, Dante, Shakespeare ou Fernão Mendes Pinto; amputaremos passagens, corrigiremos versos, alteraremos páginas inteiras.

Mas não se pense que este é um acto isolado: há tempos, uma instituição universitária responsável e digna, em Coimbra, realizou um debate sobre as célebres caricaturas de Maomé, recusando-se a exibi-las com o argumento de que o acto poderia ser ofensivo.

É isto viver no fio da navalha, não apenas nos gestos da nossa vida quotidiana, mas naquilo que pode implicar os fundamentos da civilização que foi capaz de criar monumentos e obras destinadas à eternidade – na arte e na ciência, na política e na economia. Não se pode senão protestar e pedir que não abdiquemos da nossa liberdade. Admito que essa encenação de Mozart (da qual Mozart não tem responsabilidade) não possa ser realizada em países onde há restrições à liberdade ou onde religião e política sejam indissociáveis; mas estamos a falar de Berlim, onde há umas décadas existia um muro que dividia duas civilizações e duas formas diferentes de entender a liberdade e onde a sua queda é um símbolo irreversível.

Infelizmente, chegámos a um ponto em que a indignação e o protesto não bastam e são, aliás, actos falhados. Precisamos de mais. Precisamos de estabelecer princípios firmes em defesa da liberdade, e em redor dos quais possamos estar de acordo: se queremos continuar cidadãos livres ou se admitimos limitações sérias e radicais à liberdade de expressão e de criação. Pode até acontecer que a maioria dos europeus aceite rir apenas na escuridão e viver em regime de permanente auto-censura. Admito. E, se assim for, só nos resta dizer que tudo isto falhou.

in Jornal de Notícias - 2 Outubro 2006