maio 29, 2006

Uma escola que não fique refém

As ideias anunciadas no sábado pelo secretário de Estado Adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, são um bom projecto de trabalho - e a aplicação da maior parte delas uma necessidade. Tratam da "avaliação do desempenho dos professores" e introduzem alterações substanciais ao chamado "Estatuto da Carreira Docente". Em primeiro lugar, essas medidas corrigem injustiças graves, como a própria entrada na profissão (que passará a depender de um "exame nacional de avaliação de conhecimentos e competências", a que se seguirá a realização de um estágio), até aqui apenas dependente da habilitação profissional; em segundo lugar, introduz o princípio da avaliação anual dos professores, num escalão de notas que ditará a "progressão" na carreira - e esperemos que corrija, igualmente, o tipo de cursos, matérias e especializações curriculares que contam para essa avaliação.

Por outro lado, estas ideias (insisto que se tratam, até agora, de "ideias") beneficiam os melhores professores mas, também, aqueles que dão aulas em escolas geralmente consideradas "não problemáticas", podendo abrir as portas para a penalização de professores de escolas do interior do País ou dessas escolas "problemáticas", uma vez que vão passar a ser tidas em conta as notas que os alunos têm nos exames nacionais do secundário e também nas provas de aferição. A verdade, porém, é que não se justificava a realização desses exames e dessas provas se as suas notas não contassem para nada, como defendiam alguns responsáveis para quem a palavra "avaliação" traduzia todos os demónios do ensino e do serviço público. Ora, a verdade é que a palavra "avaliação" (em exames, por exemplo) é fundamental para a melhoria da qualidade do ensino. Para que os melhores possam ser distinguidos e para que se possa corrigir o trabalho dos que obtiveram piores resultados. Chama-se a isso premiar o mérito, impedindo o crescimento despropositado do corporativismo (seguindo a regra de que, uma vez na carreira, agora se trata apenas de manter o lugar) e do papel quase absoluto da antiguidade e do comodismo como factor ou impulsionador da progressão.

Evidentemente que nem tudo são rosas neste conjunto de princípios. A ideia de que os pais e encarregados de educação podem ser chamados a avaliar os professores corre o risco de abrir as portas à total subjectividade da avaliação, nomeadamente quando se pede que eles preencham uma ficha que analise "a relação que os professores têm com as crianças". Aqui, o ministério não deve sonhar com outro país que não seja o seu. Os pais e encarregados de educação não podem ser eleitos como juízes numa avaliação em que eles são sujeitos interessados e em que participam activamente. A escola deve ser também entendida como um espaço "livre da família", em que as crianças despertem para outros universos e para outras realidades - e no qual os pais podem não ser, de facto, os melhores avaliadores. Colocar a escola à mercê dessa intromissão pode ser muito nefasto.

Há uma tendência, em muitas das opiniões publicadas ultimamente, para acusar os professores de todas as maldades cometidas na escola - e elas são muitas, mas não lhes cabem inteiramente. Acontece que a maioria dos professores são, à sua maneira, vítimas de um sistema municiado (através do próprio Ministério) por uma burocracia que se apropriou do ensino público para impedir a avaliação, o trabalho e a excelência. Tem sido essa burocracia, geralmente ignorante e cheia de poder e prerrogativas, que tem vindo a dificultar o trabalho dos professores e a alimentar uma terrível forma de corrupção no interior da escola, a que premeia os próprios burocratas que não têm nada a ver com a escola.

Jornal de Notícias - 29 Maio 2006

maio 27, 2006

Gaivotas em terra

Os restaurantes do Guincho são, por princípio, agradáveis: a vista deslumbrante quase nunca deita a perder o que vem no prato. É o caso deste Furnas do Guincho.

PODERÍAMOS, agora, e com mais vagar, dedicar-nos às mesas de Verão. É um princípio como qualquer outro, não fosse dar-se o caso de um bom restaurante de Inverno acabar por ser um bom restaurante de Verão - ou não ser um bom restaurante. Há, evidentemente, o espírito da tem­porada: mar, peixes, saladas, vinhos brancos, gre­lhados, temperos leves, azeite suave, frutos, comedimento calórico. Mas cada um sabe de si. Muitas vezes, a meio do Inverno, apetece-me o Verão; a meio do Verão, ocorre um apetite outo­nal. O nosso calendário privado é um mistério.

Por mim - e isto não é regra - o Verão aproxima-se verdadeiramente da mesa quando os percebes são mais suculentos, quando deixa de haver grelos salteados (o que é uma pena), quando as sardinhas resplandecem e as ostras me fazem inveja de entre todas as coisas que vêm do mar. Certamente que o Verão é, também, mais frívolo; tem colado à pele aquele tom salgado que se con­funde com o ar do tempo, as coisas que passam depressa, sem que isso signifique que o apetite se perca, ai de nós.

Deixemo-nos de poesia. Portanto, vamos ao Guincho. Reconheço que não é uma opção fácil para fins-de-semana, quando os automobilistas de domingo (e de longos feriados) supõem ser exclusivamente sua a estrada e exclusivamente seu o relógio do final de tarde - mas arrisquemos. Logo depois de Cascais, o Furnas do Guincho é apetecível; aproveita bem a localização, como dirá um paisagista amador: diante daquele mar seria um crime não o olharmos de frente, de uma das suas esplanadas. Primeira surpresa: os percebes são magníficos. Isto é um ponto positivo em qualquer lugar do mundo e, como disse lá atrás, são suculentos, salgados no ponto preciso, amáveis, convidativos.

O Verão che­gou, portanto: a lista de vinhos brancos apetece, a frivolidade toma conta da mesa, o perigo ronda. Aliás, os mariscos são bons, frescos, se bem que a imposição de um pratinho de camarão ou gambas logo na mesa, mal uma pessoa se senta, não pareça muito compincha. De uma das vezes pedi os per­cebes da ordem, fanático como sou. "Ah, isso vem sempre, e umas gambas..." Como vem sempre? Não deve vir. Vem, se estou para ali virado e se me ape­tece e se os peço. E se estou em dia de Inverno e não me apetece? Fica o pratinho marisqueiro a empenar a mesa aguardando ordem de retirada - pensando o cliente: "Desses não quero mais, que não aprecio camarões viajantes." E com razão. Também não aprecio que sirvam o vinho branco desconside­rando-o – deixando-o, de alto, cair no copo, como se não merecesse os cuidados do tinto.

Ultrapassado o problema, passemos ao peixe: fres­co, mais uma vez, bem preparado, exigente. Bom peixe ao sal, que aparece na lista acompanhado de uma paelha (não provei), de um arroz de marisco (suculento), de uma caldeirada, uma cataplana e de espetadas várias para usar lulas, chernes, camarões e primos reunidos. Um pargo no forno saltitou diante dos olhos e tinha bom aspecto, mas o peixe ao sal era a escolha do dia, além de material de gre­lha - uma dourada espevitada pelo mar (e não pelo aquário), um cherne apetitoso. Não há grande cria­tividade, mas não era o que eu pedia - apenas consolação para o apetite de peixe. Os legumes eram, digamos, fraquinhos (muito serviço, muito serviço...) e tive de pedir duas vezes o galheteiro, uma vez que o azeite fervente com alho e orégãos não figura na minha cosmogonia particular; Mas, repito, do peixe nada a dizer - a não ser elogios. Uns amigos vinham procurar a feijoada de maris­co e acenei-lhes ao longe. Excelente bife aquele, pensei entretanto, vendo passar um, em procissão, rodeado de legumes. Os meus filhos comeram sobremesas, eu escolhi uma fruta. A carta de diges­tivos é muito razoável, para concluir o café na esplanada daquele almoço tardio. O fantástico espectáculo do mar, azulão e acolhedor, ilude tudo o resto. Até a factura, que é alta - mas um almoço nunca é de graça.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 78
Vinhos Brancos: 40
Vinhos Verdes: 10
Portos & Madeiras: 14
Uísques, Aguardentes & Conhaques: 16

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque próprio
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável aos fins-de-semana
Preço médio: 35 Euros
Cartões: MB. V. D. M. AM

RESTAURANTE FURNAS DO GUINCHO
Estrada do Guincho - Cascais
Telefone: 21.4869243
Não encerra

in Revista Notícias Sábado - 27 Maio 2006

maio 22, 2006

O estranho código deste tempo

Eu li "O código Da Vinci". Acho que aquele dr. Robert Langdon é um embuste como cavalheiro; do princípio ao fim do livro entretém-se em matérias de criptologia, história das religiões, teologia e outros mistérios da cristologia, sem tocar na jovem francesa que o acompanha na sua aventura. Pode ser bom para a investigação do livro mas é mau para o romance. Um romance tem de ter essas coisas. O "Código Da Vinci" não tem.

Também li "Anjos e demónios", um "thriller" passado entre a Suíça e o Vaticano com uma eleição do Papa pelo meio. Gostei mais do ponto de vista da acção, mas Dan Brown já era assexuado nesta altura (o livro é anterior ao "Código"), o que o confirma como um poeta (ah, não sabia?) fascinado com o Renascimento italiano e com o mais puro platonismo nessa matéria. Os poemas de Dan Brown são contemplativos, falam de Michelangelo, da sombra do tempo - os romances não; são construções cheias de piscadelas de olho às perturbações dos que nasceram no interior do cristianismo e se deixam enredar em mistérios e conspirações.

A princípio, a polémica era apenas literária. Os jornais fizeram inquéritos a escritores e intelectuais de nomeada, querendo saber se tinham lido ou iam ler o "Código Da Vinci". A maior parte disse que não leu nem ia ler. Fazem mal. A arrogância e a ignorância andam juntas. Depois, a polémica passou para o lado dos historiadores. Os historiadores andam mais soltos e interessantes do que os escritores - alguns já lêem bastante e não fazem escândalo quando um romancista obscuro se lhes atravessa no caminho. Distinguem romance e história, estabelecem fronteiras, mas não se fazem de virgens ofendidas.

Mas "O código Da Vinci" percorreu outro caminho. Não propriamente o da adivinhação, mas o da conspiração, o da interpretação, o de desvario. A Igreja Católica sentiu-se atingida por um romance planetário que assenta muito na leitura dos Evangelhos Agnósticos e da tradição esotérica ligada à história do Graal, dos Templários e dos mistérios conexos. Além do mais, um dos personagens é membro do Opus Dei, uma organização privilegiada dentro da Igreja - com as suas regras, os seus objectivos, a sua história e os seus aspectos criticáveis. Mas a Igreja não gosta que se brinque com os seus mistérios e está no seu direito. Na Bielorrússia, o filme foi interditado porque os fiéis não gostavam. Numa terreola perto de Roma, as autoridades queimaram exemplares do livro. A igreja chinesa, sempre tão caladinha, levantou a voz pedindo para o livro ser proibido - o que é fácil acontecer na China. Um cardeal, através da Rádio Vaticano, pediu aos fiéis para não comprarem "nem lerem" o livro. Uma interessante associação de albinos, em Nova Iorque, diz-se atingida e humilhada pelo livro (o "monge" do Opus Dei é albino). Uma sociedade americana para a defesa da família elaborou um conjunto de regras "para o bom manifestante contra o Código". Nas Filipinas, o filme foi classificado "para maiores de 18 anos". Na Grécia, os tribunais foram apedrejados por se terem negado a proibir o filme. Um cardeal diz que o estilo do livro "saiu da máfia", e pediu que seja "ensinado ao seu autor" a distinguir entre verdade e mentira. Imagino como o cardeal o "ensinaria" há 200 anos.

Finalmente, para pôr as coisas em pratos limpos, o presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, acusa o romance de "confundir realidade com ficção". Nada mais fascinante. É isso que se quer de um romance. Esta semana vou ver o filme e aconselho toda a gente a fazê-lo. A Igreja Católica, que está ocupada em pedir proibições, devia preocupar-se em recuperar os seus fiéis. Em falar-lhes na língua da religião. Durante séculos, aliás, a Igreja também não queria que se lesse a Bíblia. Tem uma larga tradição de livros queimados.

Jornal de Notícias - 22 Maio 2006

maio 20, 2006

Jardim das Tapas

Quem nunca desejou viver num hotel por uns meses? E se for no centro de Lisboa, servido por um restaurante no meio de um jardim? Experimentámos os almoços de Verão do Lapa Palace. Ligeiros e perfumados...

COM A PRIMAVERA, ou pelo menos com este clima mais do que temperado que lembra a chegada de Maio, Lisboa assemelha-se bastante ao que a literatura mais clássica disse sobre a cidade: preguiçosa durante a hora da sesta, envolvida naquela simpática modorra que faz com que tudo seja moderadamente simpático nos seus bairros mais tranquilos - e, sobre­tudo, na Lapa. Escuso de mencionar as qualidades da Lapa, ou os seus defeitos. Há uma mitologia da Lapa como "bairro chique" que não me atrevo a contestar, mas eu prefiro, de longe, falar da preguiça às horas de calor, do silêncio dos becos.

Uma das surpresas da Lapa é, decididamente, o Lapa Palace: quem o vê por fora e, mesmo, quem o tem por referência como um dos hotéis de charme da capital, não pode logo imaginar que, ali dentro, exis­te um espaço verdejante que lembra os hotéis encos­tados ao mar, luxuosos mas discretos e, até, com uma área de informalidade bastante tocante. Nada de elo­gios: vamos ao que interessa, e o que interessa é, agora, o seu cardápio de almoços ligeiros, muito apropriados para a estação do ano e servidos até horas mais tardias (cinco da tarde). O próprio menu anuncia a sua natureza informal: trata-se de "tapas", uma herança medieval espan­hola que felizmente se mantém e que, para nossa salvação espiritual, devia ser relembrada a propósi­to e a despropósito.

O restaurante da piscina do Lapa Palace, o Le Pavillon, oferece essa possibilida­de agradável de petiscar, em duas modalidades fun­damentais: ou o chamado "almoço ligeiro" (cons­tituído por cinco petiscos frios e três amostras quentes) ou o "menu degustação" (com sete frios e cinco quentes). A escolha é feita de uma lista pro­videncial onde consta um peito de frango "em molho leve de atum e alcaparras", uma terrina de fígado de pato com doce de tomate e pimentas, sar­dinhas em escabeche com passas e pinhões, crepe de salmão fumado com cebolinho, 'carpaccio' de novilho e uma espetada de gambas "levemente fumadas" (além de uma salada de arroz).

No capí­tulo das tapas quentes, anote-se a presença de bolinhos de bacalhau (sim, pasteis de bacalhau, ó almas lisboetas), de legumes grelhados e marinados em azeite com 'mozarella' fumado, de lombo de novilho em pãozinho de sésamo com 'bearnaise' e ainda de um novilho perfumado de especiarias e muito ao gosto oriental, ligeiramente tailandês, ou de beringela com parmesão - sem falar de um peixe, que varia conforme os dias da semana e que é servido em espeto. Escuso de me deter nas seis saladas permanentes da lista (incluindo uma "Caesar" em duas variantes - com atum grelhado ou com peito de frango e alecrim) nas oito sanduí­ches e três bons exemplares de 'bruschetta' (uma variante 'clássica', outra com legumes grelhados e outra com gambas e ervas aromáticas) ou nas sopas frias (que incluem um gaspacho com gambas e amêndoas) - porque estão lá sempre durante o Verão.

Depois de uma tão simpática e moderada ingestão de calorias, merecemos a sobremesa, que vai distribuída por um mil-folhas com frutos vermelhos, um 'soufflé' frio de menta e chocolate, uma sopa fria de morangos com gelado de iogurte ou ainda uma 'dacquoise' de coco e ananás confitado com sorvete de coco (que mereceu o meu aplauso, mas eu sou vicia­do no sabor do coco), além de mais dez opções que incluem sorvetes e gelados, por exemplo, ou fruta. Uma das boas curiosidades é que a refeição, assim ligeira, pode ser perfumada com cocktails de chá ou com vinhos, espumantes e champanhes servidos a copo (há um Roederer Brut Premier tentador, a copo, mas, infelizmente, o Ruinart Rose Brut só nos apare­ce em garrafa). A selecção da carta é cuidada, mas muito, muito limitada.

Portanto, cara leitora, caro leitor (como diriam os políticos, em campanha eleitoral), eu, se pudesse, também viveria no Hotel da Lapa. Se não pudesse ser por um mês, ao menos que fosse por um ano. Sei que a ordem está invertida, mas a vida é assim mesmo.

À Lupa
Vinhos: *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Jardim: * * * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 5
Vinhos Brancos: 5
Vinhos Aperitivos e de Sobremesa: 16
Portos e Madeiras: 5
Uísques e outros Digestivos: 36

Outros Dados
Charutos: Não
Estacionamento: No Hotel
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço Médio: 35 Euros

RESTAURANTE LE PAVILLON
Hotel Lapa Palace
Rua do Pau de Bandeira, 4
1249-021 Lisboa
Telefone: 21.3949494

in Revista Notícias Sábado – 20 Maio 2006

maio 15, 2006

A liberdade e a natalidade

Recebi algumas cartas e mensagens indignadas a propósito da minha coluna de há quinze dias, escrita sobre a delirante intenção de as autoridades promoverem o aumento da taxa de natalidade à custa de benefícios fiscais para as chamadas famílias numerosas. Todas essas cartas falavam em nome da economia, o que agradeço com alguma comoção. É sempre bom ter resposta à altura, e esclarecida - mas escusam. O que eu escrevi foi simples: as autoridades queixam-se de que os portugueses fazem poucos filhos e que a nossa pobre segurança social vai ter poucas hipóteses de sobreviver como está; daí a vontade de premiar as famílias numerosas, fornecedoras de carne para canhão, ou seja, de contribuintes activos para pagar o desvario das contas do Estado e o futuro da Segurança Social. Estas coisas são simples e requerem ser ditas de maneira simples e directa: o Estado que vá ter filhos onde quiser e trate de não desperdiçar o dinheiro dos impostos que arrecada. É essa a base do nosso contrato social.

Mas há mais do que isso. Há a memória. E todos recordam (e se não recordam, deviam) que há uns anos, não muitos, e para efeitos de propaganda, nos foi garantido que era especulação falar-se de crise na segurança social. Por outras palavras, os socialistas garantiam nessa altura que podíamos continuar a viver sem a espada sobre a cabeça. Parece que não era verdade. A espada está aí. Desta vez, até os sindicatos concordam.

Alguns dos meus correspondentes foram severos demais: que eu estava a brincar com coisas sérias, que não percebia os fundamentos da irrequieta ciência da demografia, e que não devia colocar questões de liberdade pessoal à frente das exigências da sociedade. Uma das acusações precede: a de que eu percebo apenas o essencial de demografia. O resto nem vale a pena comentar, sobretudo essa ideia tão absoluta como absurda de que as nossas escolhas pessoais devem ser preteridas diante das exigências do Estado ou da sociedade. Precisamente, devemos defender as nossas escolhas pessoais. E devemos defendê-las contra os que nos querem impor as "escolhas da sociedade", como se soubessem interpretá-las e fossem seus proprietários. E, se necessário, devemos defendê-las contra os chamados "interesses da sociedade e do Estado". Parte dos problemas vem de as pessoas abdicarem de defender as suas ideias e interesses em benefício do que seriam os "interesses colectivos". A história ensina-nos que os "interesses da sociedade" são sempre os interesses de quem os interpreta. Também por isso, não vale a pena pedir aos cidadãos para se reproduzirem com mais afinco e empenho, aumentando o número dos futuros contribuintes, se nos lembrarem, ao mesmo tempo, que são os nossos filhos que vão pagar a conta do TGV, da Ota, das reformas de gestores públicos que arruinaram empresas públicas sem terem sido punidos, ou de más opções em obras públicas e administração das contas do Estado. Pedir mais progenitores aplicados, acenando-lhes com a estabilidade da segurança social futura, é fazer pouco dos contribuintes e das famílias actuais.

Os meus ilustres críticos falam em nome da sociedade; eu disso não percebo e até desconfio bastante. Limito-me a sugerir que foi exactamente este discurso "em nome da sociedade" que levou, em parte, à ruína da segurança social. A solução, descobriram agora, é pedir às famílias que sejam mais numerosas e se reproduzam convenientemente de acordo com "os interesses da sociedade".

P.S. - De então para cá, os dados acumularam-se há também o flagelo moral do divórcio. E agora? Vão dar subsídios a quem não se divorcia?

Jornal de Notícias - 15 Maio 2006

maio 14, 2006

Uma descoberta "lá fora"

Las lágrimas de Sidney

“Jaime Ramos solo consiguió ver el cuerpo después de mucho insistir. Era un cuerpo normal, un cuerpo de atleta, un cuerpo que no pedía explicaciones. El policía que lo estaba siguiendo le parecía sacado de una película, su voz le sonaba como la de John Wayne en Rio Bravo, y eso era lo único en él que le inspiraba simpatía. Pensó en comentarle el asunto, pero Simon McNamee le hizo ver, con una sola mirada, que no era cinéfilo, a pesar de que John Wayne no pertenecía al mundo de la cinefilia, sino a la mitología personal de Jaime Ramos (junto con los boleros mexicanos, la pesca con cana, las camas que crujen o las películas de Ford); sin embargo, le dio las gracias en silencio a McNamee por no haberse puesto a carraspear cuando encendió un Corona con la ceremonia de un aborigen. McNamee tenía, con respecto al resto de los australianos, la ventaja de hablar español, lo que facilitaba un poco las cosas. La policía australiana había decidido que un agente que hablase español podía ser el mejor enlace con un portugués achaparrado, fumador, vestido con su cazadora azul tanto cuando hacía calor como cuando aquella neblina de la madrugada cubría el puerto de Sydney, que fue el escenario escogido para su primer encuentro. El aeropuerto de Banks-town le pareció enorme a Jaime Ramos, después de dos esca­las en otros continentes, Ámsterdam y Singapur, y de una siesta en uno de los sectores del piso superior de la nave de acrílico, vidrio y hormigón. McNamee había ido a buscarlo entonces, a las tres de la mañana, disculpándose por sus muchas ocupaciones. Jaime Ramos se había despertado por tercera vez.” (continua)

Francisco José Viegas in “Alta Velocidad – Nueva Narrativa Portuguesa”, Ed. Lenguas de Trapo, Col. Otras Lenguas, Madrid, 2004

maio 13, 2006

Almoço de família

Um casarão bonito lembrando o Império, rodeado de árvores. Entre Carcavelos e a Parede, a Casa das Palmeiras merece uma visita. Aos domingos, há 'buffet' de cozido à portuguesa.

Ao Domingo, digamos que àquela hora de final de almoço, boa para quem acorda tarde e com apetite, a sala de refeições da Casa das Palmeiras não podia ser mais acolhedora. Chego a pedir que a Primavera chegue chuvosa aos domingos - porque, e é uma questão pessoal, não me passa pela cabeça trocar um belo dia de praia por uma ida ao restaurante. Mas imagino que chuvisca; cai aquela melancolia de domingo, aquela nuvenzinha esparsa de humidade que escurece o dia e atrasa a tragédia de fim de tarde. E, finalmente, há apetite. Não vale a pena comer um cozido à portuguesa sem que o apetite bata à porta e sem que haja ambiente. Muitas vezes, a qualidade do cozido à portuguesa, magno prato familiar feito para grupos numerosos, pode até nem ser superlati­va - mas tem de haver "ambiente", ou seja, uma sala e uma disposição à mesa.

Sobem-se as escadas que vão do pátio e jardim da Casa das Palmeiras para a sua varandinha de entrada, envidraçada, onde umas cadeiras nos recebem para que se materialize a espera. A sala agrupou mesas, cadeiras, grupos que vêm - em família - celebrar o cozido à portuguesa. O ambiente é familiar, delicado, educado, sereno. Vinhos sobre a mesa, um recanto onde o 'buffet' se organiza, odores de café enca­minhando-se para as últimas conversas de almoço, conhaques, aguardentes. Não falarei do cozido pro­priamente dito; limito-me a dizer o essencial: as couvinhas são suculentas; o nabo, o feijão e a cenoura estão disponíveis com generosidade; o arroz perfu­mado; as carnes servidas com entusiasmo. A isto acresce uma carta de vinhos bem escolhidos e onde a qualidade suplanta o número das marcas. A mesa de sobremesas é, também ela, convidativa.

Dias antes, numa noite cheia daquela tepidez tardia que envergonha os românticos, lá fomos, não para o cozido mas para debulhar o cardápio onde adivi­nhámos uma lista de entradas também ela familiar, feita de cogumelos recheados, gambas fritas, espar­gos gratinados com salmão fumado, mexilhões, um presunto, e saladas muito substanciais e sem desig­nações pernósticas. Corremos pelo capítulo dos 'vol-au-vent', onde havia os de bacalhau, os de caça e de vegetais, e passando os olhos pelos peixes reparámos em dois bacalhaus (gratinado no barro e à marinheiro), nuns rolinhos de linguado com camarão "e um toque de caril" além das alíneas de linguado, servidos na forma de filetes (com arroz de tomate), ou de lombinhos perfeitos (à grenoblesa ou à delícia), até chegarmos às gambas (panadas, com arroz de tomate, ou em sumptuoso molho de caril). Seis bifes diversos (com molhos próprios da espécie, desde os de queijo, que sempre acho recusáveis, até aos de mostarda, pimenta e até fru­tas) encaminham-nos também para um rosbife que recomendo, para as costeletinhas de cordeiro (fritinhas, de método caseiro, e ainda à provençal ou à aveirense), lombo de porco com coentros e coxas de pato que não cheguei a provar mas de que me chegaram ecos de aprovação.

Se isto não for con­vidativo, mais duas notas, essencialmente positivas, para a carta de sobremesas, com o "bolo rico de chocolate" transportando tons de 'mousse', muito cremoso, com trouxas-de-ovos, papos-de-anjo, e ainda outras amostras conventuais bejenses (o bolo do abade, do Convento de Nossa Senhora da Esperança, e o "bom como tão bom" do Convento de Nossa Senhora da Conceição). Esclareço ainda que os jantares de sexta e de sába­do oferecem a hipótese de um jantar de degus­tação, acompanhados de vinho a copo, o que é sempre uma excelente oportunidade. Há uma van­tagem depois disto: ao descer a escadaria, ao enfrentar a noite, ao passar pelos arbustos floridos da Casa das Palmeiras, antes de regressar ao carro, há uma neblina qualquer a atravessar-se no cami­nho. Nunca soube se era da aguardente final se da maresia próxima vinda da marginal. É também isso que me faz regressar à Casa: aquele índice de satis­fação que marca o final do jantar.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 110
Vinhos brancos: 60
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 20
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Fácil
Levar crianças: Sim
Área não fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 30 Euros

RESTAURANTE CASA DAS PALMEIRAS
Avenida da República, 628
2775-271 Parede
Tel: 21 4570336
Fecha domingos ao jantar e segundas

in Revista Notícias Sábado – 13 Maio 2006

maio 10, 2006

Barca Velha

«É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda», diz Nicolau de Almeida neste livro belíssimo de Ana Sofia Fonseca. Eu compreendo-o bem. Nasci muito perto do Meão, alias da Quinta do Vale Meão, referência completa no mapa da região. Vivi no Pocinho os dias mais felizes da minha infância — ali, onde se colhiam as uvas e se preparava o Barca Velha, e onde era mais difícil chegar do que a Luanda. Compreendo bem o lamento. Ainda hoje é difícil chegar por estrada a esse ponto do mapa onde o calor de Agosto é mais do que uma ameaça: nuvens de poeira e nuvens de calor confundem-se, os termómetros ultrapassam com frequência os 40 graus centígrados, o ruído das cigarras é mais ensurdecedor do que nos romances que falavam do assunto, a noite chega como uma promessa de alívio. Nessa hora logo depois do crepúsculo esperava-se que a brisa que envolvia a aldeia passasse pelo leito do rio antes de subir para as colinas. Era, repito, a única promessa de alívio - a menos que surgissem sob os picos dos montes (na Lousa, em Sto. Amaro, para os lados das Mós, vindas de Numão) umas nuvens que sugeriam chuva.

Mais tarde, quando aprendi o significado exacto da expressão «chuva tropical», lembrei-me do Pocinho, lembrei-me da Quinta do Campo submersa nessa neblina azulada que se confundia com a curva do rio, diante da Quinta do Reguengo, lembrei-me da planície inclinada de vinhas da Quinta do Vale Meão, lembrei-me dos vultos dos pequenos barcos de pescadores fluviais sob a velha ponte de ferro por onde passava um comboio alegre e saltitante a caminho de Miranda do Douro, preparando-se para subir por entre falésias, reentrâncias, sombras, tufos de mato, ate Moncorvo.

As minhas memórias do vinho do Douro têm a ver com esse cenário. Não é por acaso que ele aparece logo a abrir o livro de Ana Sofia Fonseca. O vinho do Douro sempre me pareceu um milagre. O aroma de mosto cruzando os ares em meados e finais de Setembro, misturado com os últimos tons vivos das amendoeiras, com os picos cobertos de zimbro, com o ruído dos comboios que circulavam entre a Barca d'Alva e o Porto. E havia aquela música ininteligível, certamente: a das vindimas, a dos trabalhos no socalco, iluminada pela luz fantástica do Douro, entrando pelos pomares, pelas hortas, pelos olivais e amendoais, atravessando a sombra dos choupos, os juncos à beira da água.

O Douro, por isso tudo, é um rio habituado a ver milagres. Se não existe uma explicação racional, sociológica, histórica, económica, eu encontro essa - que me serve perfeitamente: trata-se de um milagre. Certamente que a história do vinho do Douro, e a do Vinho do Porto muito mais, explica-se por dinastias de gente atrevida que experimentou, inventou e recriou sabedorias ancestrais até conseguir a bebida que vem em todos os grandes poetas desde a Antiguidade, exagerada pelo êxtase.

Para quem viaja ao longo do Douro no velho comboio — que hoje parece condenado ao desaparecimento - essa historia de milagres parece uma coisa romântica. De certo modo, é. As quintas estacionadas a meio das colinas, os ancoradouros presos às falésias, as pequenas baías em lugares insuspeitos, ribeiros que desaguam de repente (vindos da Beira - de um lado - ou de Trás-os-Montes - do outro), pontes que atravessaram o século para que nos habituássemos à sua imagem, tudo isso esta povoado de uma mitologia particular, que é romântica, e, ao mesmo tempo, de uma história de sofrimentos. Só assim se compreende a humaníssima natureza daqueles socalcos talhados a mão, inclinados sobre o rio.

A quem escreve sobre vinhos, sobre os seus sabores, sobre o carácter delituoso do vinho, eu recomendo sempre uma viagem ao longo do Douro. Quando mais não seja para confirmar a justeza dessa frase que o leitor encontrará daqui a algumas paginas: «É mais difícil ir ao Meão do que a Luanda.» James Murphy, um interessante inglês que viajou por Portugal no século XVIII (e publicou mesmo as suas impressões num Travels in Portugal), escreveu que «um português pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que Ihe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto». Imaginem-se agora as dificuldades quase intransponíveis que se Ihe ofereciam para ir ao Meão.

Não foi por isso que os ingleses deixaram de se interessar pelo Douro e que, alguns, como o lendário Barão de Forrester, se fixaram nas margens do rio dos milagres. Eu chamo-lhe rio dos milagres a esse rio que engoliu o Barão no cachão da Valeira - e tenho algumas razões. Uma delas tem a ver com o vinho. O poeta Ibris ben-al-Yaman, que viveu no Al-Andaluz do século XI, associou o vinho à arte de voar - os corpos cheios de vinho estariam, afinal, cheios de espíritos. O Douro favorece esse contacto entre os homens e os espíritos: a doçura contagiante do seu vinho é calorosa e romântica, para dar razão a um dos meus grandes autores, Arquíloco, que - a propósito do vinho, da sua prova - falava de «um raio a deflagrar no espírito». Um vinho prodigioso como o do Douro, rescendendo a tudo o que a terra inventou para nos separar do que é acessório, merece que invoquemos os clássicos, muito mais do que as lengalengas dos académicos que visitam as adegas com o compêndio atado à cintura. Por isso é quase brutal a visita que Ana Sofia Fonseca faz junto deste nome: Nicolau de Almeida - um mago cujo inimitável trabalho merece distinção e prémio.

Nenhuma filoxera poderia fazer esquecer o seu trabalho e a sua criação. É certo que (e isto é a minha opinião de regionalista) o Douro favorece a sua competência olfactiva. O rio dos milagres transporta todos os frutos e todos os aromas. Eu acrescentaria isso ao que Ana Sofia Fonseca refere como a tríade de competências necessárias a um enólogo de excepção, um dos nossos génios, como Soares Franco: «Amor pelo ofício; nariz sensível, dom ganho à nascença e intimamente relacionado com a condição física e intelectual de cada um e, por fim, um bom mestre.»

O Barca Velha faz parte daquilo que o Douro não pode dispensar. Mais do que isso: é uma das glórias do Douro, só possível com essa contribuição de homens como os Nicolau de Almeida, os Soares Franco - a eles devemos a construção de uma mitologia danada, inscrita nas águas do rio dos milagres e nas tentações de quem ama verdadeiramente o seu ofício. É certo que cada papila procura a sua salvação num vinho diferente do outro — mas o Barca Velha, com o seu rasto de afrontas ao país pequenino e vulgar (ultrapassando-o, humilhando-o, e à sua mediocridade), é obra de génio. A vasta literatura sobre a idade madura dos vinhos Portugueses nunca ficaria completa sem o tributo a prestar aos vinhos do Meão, aos velhos e aos novos.

De cada vez que visito a minha terra, de cada vez que desço aquela estrada de Foz Côa (onde, de facto, nasci) para o Pocinho de todas as minhas infâncias, procuro identificar as vinhas. O rio já é outro. Já não é o imenso espelho rodeando a curva das Frieiras, junto às Cortes - uma barragem interrompeu-lhe o curso, moderando a corrente, para cá do Meão. Muitas vezes ia a pé entre o Pocinho e as correntes de Almendra e Castelo Melhor e apreciava essas vinhas. Sempre me pareceu que se desprendia, dali, um aroma que antecipava o «raio a deflagrar no espírito» que se lê em Arquíloco. O rio já não recebe, nas suas margens, as sombras salvadoras dos choupos e das oliveiras do Pocinho, dos seus pomares magníficos, avantajados - apenas o calor imenso, o calor que entorpece, o ruído das cigarras nas colinas. Ana Sofia Fonseca presta uma inestimável homenagem à minha terra e ao rio dos milagres falando de um vinho que se devia associar à nossa cultura mais profunda e mais erudita. O Barca Velha é um trabalho de erudição, evidentemente. Dispensando os sufrágios das academias, ele entra nos nossos dicionários como sinónimo de poesia «os vinhos odoríferos», de que falava Camões, mas também os vinhos com «mais alma que muito poema ou livro santo», como escrevia Eça, da mais intensa, da mais inesquecível. Na sua história está a história de uma paixão pelo vinho e de uma obra de cultura.

Diz-se, na tradição bíblica, que Noé se dedicou a plantar vinhas depois de ter sobrevivido ao dilúvio. Os vários dilúvios do Douro, certamente divinos, por serem tão intensos e tão inesperados, não interromperam essa alquimia que tornou possível o Barca Velha. A nossa alma tem enorme divida de gratidão para com os seus criadores.

Prefácio ao livro “Barca Velha – Histórias de um vinho” de Ana Sofia Fonseca, Ed. Dom Quixote (Colecção Cadernos de Reportagem), Lisboa, 2004

maio 08, 2006

Eles não aprendem nem têm vergonha

Se alguma coisa de­via ter sido apren­dido com a elei­ção de José Sócrates e de Cava­co Silva é que os eleitores não são fiéis aos aparelhos das máquinas partidárias e, por outro lado, são sempre mais inteligentes do que supõem os seus líderes.

O que mudou nos últimos anos portugueses não foi a correlação de forças entre a "Esquerda" e a "Direita" clássicas (visível através da "alternância democrática"), en­tre o PS e o PSD, mas a ideia de que existem outras coisas para lá des­sa arena - outros valores, outras exigências (de natureza cultural -sobre a vida, sobre o carácter dos políticos e o seu comportamento, sobre o peso e os negócios do Es­tado) e, sobretudo, uma outra ideia acerca do que deve ou pode ser o país. Por isso, não se percebe o que anda a fazer a Oposição à Direita, entretida em congressos vaga­mente realizados no fim-de-semana passado. Poderia admitir-se que se tratava de cimentar as lideran­ças de Ribeiro e Castro e de Mar­ques Mendes, mas qualquer ex­traterrestre compreenderia que se tratava exactamente do contrário: emprestar mais uns meses de vida a Marques Mendes e a Ribeiro e Castro antes de aparecer "o líder certo".

Esta ideia de que há-de aparecer "o líder certo" para ga­nhar eleições e afastar o "líder pro­visório" que cumpriu a tarefa de le­var o partido através do deserto for­mado em tempos de maioria ab­soluta, tem marcado a genealogia da nossa vida política. É de ad­mitir que seja humilhante di­zer-se a um "líder provisório" que há-de aparecer "o líder certo".

Mas, no caso do PSD e de­pois de arrumado no armário o epifenómeno Santana Lo­pes, era previsível que o par­tido mudasse. Não mudou no congresso que deu a vitória a Marques Mendes, não mudou no que agora o confirmou - conforme, aliás, se esperava. O PSD não en­tendeu, até agora, o desenho que parece visível para todos. A verda­de é que uma larga faixa do parti­do quer manter o velho PSD, sem compreender que esse partido acabou e que as suas heranças são um património mas não consti­tuem nem um programa nem, pro­vavelmente, devem ser vistas como uma inspiração.

Marques Mendes deu alguns sinais duran­te as autárquicas, ao demarcar-se de alguns dos tradicionais candi­datos dos seus partidos - mas isso era o mínimo que po­deria fazer. O resto, tudo, continua igual. Se o congresso do PSD tivesse ido a eleições (ou seja, se as suas sensibilidades tivessem ido a juízo diante do eleitorado), facil­mente se compreenderia a sua inu­tilidade e a pouca importância que o partido tem para o país nestas cir­cunstâncias. E esse é o drama, não apenas do PSD, mas também da, Oposição à Direita: não estar pre­parada para assumir que é neces­sário mudar (provavelmente de for­ma radical) o discurso, a atenção e o eleitorado.

Tanto Sócrates como Cavaco perceberam essa necessi­dade - porque o país já tinha mu­dado, tinha outras ambições além do fornecimento sazonal do seu voto, e estava mais esclarecido, com outros interesses e outras lei­turas. Infelizmente, a representa­ção parlamentar não melhorou substancialmente; limitou-se a re­presentar, não o país, mas as ten­dências de cada máquina parti­dária.

A oposição formal, alegrada por congressos e por frases fatais, ain­da não percebeu o que a levou a tor­nar-se irrelevante para tudo o que seja o debate sobre o futuro do país, sobre o papel do Estado na socie­dade e na economia, sobre as no­vas realidades culturais, sobre o sentido que tem a política portuguesa na Europa de hoje. Mas ex­plica-se facilmente: preguiça e baronatos. Foi isso que matou a Di­reita antes, durante os seus gover­nos. É isso que ameaça liquidá-la agora, por alguns anos. Essa irrelevância vai custar caro ao país.

in Jornal de Notícias – 8 Maio 2006

maio 06, 2006

Clássico temperado


A velha cozinha burguesa do Porto, cheia de aromas definitivos e de conjugações clássicas: é este o tom do Casa Nanda, uma referência na cidade, na velha tradição

Eu sempre tive inveja dos coleccionadores de restaurantes - não sendo um deles, observo-os à distância, com aquela comoção de avó, deliciado com o apetite, a lembrança de um prato. Detecto-Ihes um leve rubor quando começam a enumerar a sua lista: declamam os nomes dos restaurantes e os cardápios, contam a história de um desvio de cem quilómetros para entrar naquela porta, comentam a textura de um bacalhau, uma travessa de grelos salteados, um pratinho de grão-de-bico, um tabuleiro saído do forno, seja o que for. É ver­dade que durante muito tempo não acreditei no mito do "desvio de cem quilómetros" até conhecer Manuel Vázquez Montalbán, que ultrapassava em muito os cem quilómetros em nome de uma sim­ples "butifarra" fresca que o fazia conduzir durante um fim-de-semana em busca do almoço ideal para um estado de espírito.

Quem, de entre os leitores desta coluna, não se sentiu tomado pela secreta esperança de encontrar o prato ideal, a refeição ideal e, até, o restaurante ideal? Eu conheço a sen­sação: às vezes acordo com um sabor perdido à minha volta, um aroma qualquer que se soltou inadvertidamente ao abrir a mala das recordações. E vem aí uma lista dos clássicos - um restaurante em Vouzela por causa da vitela no forno, um de Paredes de Coura por causa do cozido, outro em Guimarães, outro em Viana ou em Melgaço, ou na Arruda dos Vinhos - mesmo que termine com a evocação de umas sardinhas na Póvoa de Varzim. Muitas vezes aproxima-se de mim essa tentação, desde que conheci a Casa Nanda, no Porto, em plena Rua da Alegria, uma referência no Porto antigo, a cidade de granitos escuros, húmidos, clássi­cos, austeros.

O próprio restaurante, não sendo um modelo de austeridade, é um modelo de abnegação: nada de valorizar a decoração, o som ambiente, a própria composição da mesa. A velha casa de pasto foi recentemente varrida e retocada, reabrindo sem perder esse aspecto que lhe con­fere a classificação de "lugar bom para comer", mantendo uma sobriedade que desagrada a espíritos modernos (muito satisfeitos com a decoração das salas, cheias de 'design') mas que contenta as nossas boas almas burguesas. Aliás, a Casa Nanda, herdeira da tradição das velhas casas de pasto portuenses, obrigando-nos a regres­sar até à cozinha burguesa dos anos sessenta e setenta.

Eu fui lá a primeira vez há uns anos, por causa de uma lampreia - que estava excelente, se bem que os bolinhos de bacalhau e os filetes de polvo me tivessem comovido ainda mais (mas isso é porque não sou um fanático de lampreia). Depois, em busca dos filetes de pescada ideais, rumei à Casa Nanda de outra vez, e comi-os, deli­ciado, com um arrozinho de berbigão, solto e malandrinho, delicioso, enquanto os meus com­panheiros deglutiam uma cabeça de pescada.
De novo em romaria, comi umas pataniscas de bacalhau (arredondadas, firmes, generosas nas lascas de bacalhau) com arroz de feijão, provei as petingas fritas e terminei com um arroz de bacalhau de boa traça tardo-barroca, rosado e alaranjado, com filetes do mesmo.

Destas mesas soltam-se aromas: recomendam-me o cozido à portuguesa, que ainda não provei, mas eu menciono provas recentes de filetes de polvo (com arroz de polvo, rosadinho) e de bifinhos de cebolada à velha maneira do Porto ligeiramente acidulados, de bacalhau frito à moda de Braga. E, naturalmente, as tripas à moda do Porto, ou à portuguesa, afinal: cremosas, perfumadas, excelentes, memoráveis, criminosas, altamente recomendáveis. Sem falar destas duas coisas que eu não esqueço: a honestidade absoluta do leite-creme e o aroma que se soltava do prato de sopa de legumes. Não sei se me entendem: uma sopa diz muito da natureza do restaurante, da escolha dos produtos. Quem cozinha sabe que uma sopa é um cartão de identidade do cozinheiro - se tem aroma de sopa, é meio caminho andado. E é.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 27
Vinhos verdes: 10
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 14

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Levar crianças: Sim
Área não fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros

CASA NANDA
Porto, R. Alegria, 394
Tel: 225370575
Encerra aos domingos.
Fecha às 22h00

in Revista Notícias Sábado – 6 Maio 2006

maio 03, 2006

Europa, Antuérpia

Não sei se leram Dentes Bran­cos, de Zadíe Smith (edição da Dom Quixote), mas aviso que vale a pena. Zadie é uma jovem escritora bri­tânica (aliás belíssima) filha de pai in­glês e de mãe jamaicana e recentemen­te publicou um dos livros mais belos da temporada, On Beauty. Em Dentes Brancos Londres aparece em todo o es­plendor — um mundo extraordinário composto de paquistaneses ou de emi­grantes ilegais do Bangladesh, teste­munhas de Jeová, judeus, muçulmanos fundamentalistas, cristãos maronitas, chineses, latino-americanos, tunisinos, tudo o que imaginarem. Londres é, por­tanto, uma cidade europeia.

Essa decomposição em mosaico vi­vo, que se recolhe agora com mais facilidade nas ruas das grandes cidades, não é nova. Ela existiu sempre nas ruas da nossa Europa. Por isso lembro-me de Antuérpia, uma das cidades que, desde o século XIII, pelo menos, está ligada a Portugal por laços de comércio, estra­tégia política e interesse cultural. Eu lembro-me de Antuérpia quando se fala da Europa. Lembro-me de Antuérpia quando se fala das portas da Europa abertas ao mundo. Lembro-me de An­tuérpia quando se menciona a liberda­de. E a liberdade é o nosso mundo euro­peu - o mundo das viagens, da mobili­dade, daquilo que nos mostra o rosto diferente de nós mesmos. É, por isso, uma das minhas cidades, o outro lado do outro hemisfério de que gosto de falar — o outro lado do mundo que fica para lá de qualquer linha do horizonte. Judeus fugidos à Inquisição ibérica ou apenas católica, muçulmanos que bus­cavam ilustração fora do Califado, cris­tãos perseguidos pela Contra-Reforma, comerciantes cheios de imaginação, criadores de arte e de filosofia, Antuér­pia recebeu-os a todos. Os historiadores dizem que havia dinheiro por detrás da face de refúgio humanitário, mas esse é apenas um pormenor. Há preços que não têm preço.

Nas ruas de Antuérpia, que recor­do agora à distância, vejo esse mundo através dos seus portais, das suas pedras negras ou humedecidas pela chuva. Uma sinagoga que já foi clandestina, uma escola escondida, uma biblioteca, um pátio. A Europa é também isso: refúgio, luz no meio da escuridão, porto de abrigo. E é essa uma das suas marca essenciais, mesmo quando estou sentado num dos bares das ruas da velha judiaria e vejo passar bandos de raparigas a caminho do porto, homens de turbante encaminhando-se para a velha universidade que atravessou a Idade Média, velhos passeando pelas ruas onde o nosso Damião de Góis encontrava um mundo que lhe tinha sido proibido conhecer em Lisboa (e que o levaria prisão e à morte misteriosa, na verdade). Esta tranquilidade comove-me sempre.

Fico alojado num hotel perto da estacão. Na sala de entrada, dois paquistaneses aguardam o comboio da manhã para Amesterdão, e uma mulher lê um livro escrito em cirílico. A janela do meu quarto dá para a grande praça diante da estação. Parece-me a minha Europa. A do inter-rail. A das viagens entre cidades que acordam a qualquer hora do dia, recebendo visitantes inesperados desconhecidos. Eu também irei para Amesterdão no dia seguinte, depois de passar pela universidade, onde vou procurar um livro que se perdeu nos nossos arquivos. Depois da universidade, irei a um restaurante de velhos amigos que servirão, a abrir, o melhor falafel de Antuérpia. Ao pequeno-almoço, alguém lê El Pais na sala do restaurante do hotel.

Estou no centro do mundo sem o saber. No centro da Europa, em Antuérpia Gracia Nasi, que fugiu da Inquisição portuguesa, há quinhentos anos, acaba de passar pela rua à minha frente. Vai para Constantinopla. Vai para todo o lado, como uma europeia.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2006

maio 02, 2006

Eu e Gabriela em Ilhéus

O aspecto é o de um croquete. Mas no quibe que os emigrantes sírios e libaneses levaram para o Brasil, há uma memória que nos reenvia à pureza do frito e ao perfume das sementes.

A minha paixão pelo qui­be começou com Jorge Amado, em São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cra­vo e Canela ou no mag­nífico e imprescindível guia histórico de Salvador e da Bahia, Bahia de To­dos os Santos. Na verdade, Salvador devia chamar-se apenas Bahia de Todos os Santos, como sustenta Jorge Amado (e não há coisa mais irritante do que ouvir chamar-lhe São Salvador - que não é).

Cheguei pela primeira vez a Ilhéus, São Jorge dos Ilhéus, num meio de tarde de chuva baiana. Não sei se sabem como se circula por es­sa estrada, que me trazia do Sul des­de há dez dias, conduzindo de ma­drugada, aproveitando o fresco das primeiras horas do dia - mas tendo arrancado de ainda a sul do Rio, a sul de Florianópolis, a sul de Porto Ale­gre. Eu vinha do Chuí, ou seja, da fronteira do Uruguai. A BR-101, a estrada do litoral, que começa perto da Lagoa dos Patos, no Rio Grande, estendia-se até depois da Paraíba, mas eu pararia em Ilhéus. Eu queria conhecer o Bar Vesúvio, em Ilhéus, e comer um quibe preparado por Gabriela. Coisa mais de novela de televisão do que de literatura - quem lê Gabriela Cravo e Canela sem ter visto Sônia Braga, precisa de conhe­cer o seu rosto pelo menos, o seu riso, e a maneira como transformou os portugueses, mais do que os brasileiros. Ela povoou a minha ima­ginação de adolescente durante anos. E o Vesúvio, o bar de Nacib e de Gabriela, sempre fora um recan­to saboroso na minha memória vi­sual de Ilhéus.

Mas a tarde estava chuvosa e o Brasil perderia o jogo contra a Dinamarca. Estávamos em 1998 e não fazia mal porque eu tinha, finalmen­te, chegado a Ilhéus, onde voltei há dois anos e no ano passado - e on­de, na verdade, nunca comi o quibe de Gabriela, nem qualquer outro quibe. O melhor quibe da minha vi­da é paulista, comido ao balcão de madeira de um boteco não longe da
Augusta, em São Paulo, debaixo de um céu de chumbo, quente, aba­fado, quando apenas procurava uma cerveja para iluminar o ca­minho que ainda faltava até à hora de jantar.

Havia um cheiro, um perfume, uma coisa danada no ar. Eu já tinha comido quibes na Baía, já tinha comido quibes em São Paulo, no Rio ou mesmo em Manaus. Mas aquele era superior; esse pressentimento ainda hoje me percorre como um arrepio - eu tenho, às vezes, coisas dessas em relação à comida. Mas ainda não tinha ouvido falar de Ley-la Mohamed Youssef Kuczynski, a proprietária do Arábia, um res­taurante libanês de São Paulo, nem
de Benon Chamilian, um chef li­banês que preparava quinze re­ceitas diferentes de quibe. Quando ouvi falar dos dois, e iniciei a mi­nha investigação em demanda do quibe perfeito, era tarde. O pecado, em vez de morar ao lado, morava dentro de mim. E chamava-se «o vício do quibe», um dos pratos que os imigrantes levaram do Médio Oriente para o Brasil no século XIX e início do XX.

A receita que hoje dou é muito simples: tomar 2 chávenas de chá de grão de trigo sem casca e ligeira­mente moído (no Brasil chama-se, simplesmente, «trigo para quibe» e está à venda em todos os superme­rcados) e demolhá-lo por meia hora, após o que se deve escorrer e, em seguida, espremer bem com as mãos. Faz-se então uma massa que se obtém a partir da mistura do tri­go (que é o único ingrediente que se vai adicionando aos poucos) com cerca de um quilo de carne picada, uma cebola picada muito fina, qua­tro dentes de alho (se for alho bran­co, melhor), duas ou três colheres de sopa de hortelã verde picada (há cer­tas variantes, como as do vale de Bekaah, que o dispensam - mas não eu), pimenta moída na hora, duas colheres de sopa de azeite, sumo de meio limão e sal a gosto. Amassam-se bem os ingredientes e deixam-se repousar durante um quarto de hora a meia hora.

Em seguida formam-se cro­quetes de tamanho médio, alonga­dos nas pontas, que se fritam em óleo bem quente. Este é o quibe mais simples que conheço. Não evoca nada senão a memória de Gabriela, atravessando as ruas de Ilhéus com o seu tabuleiro de sal­gadinhos enquanto eu estou senta­do a uma mesa do Vesúvio, a beber cerveja. Mas é o meu quibe.

Ingredientes
+ 1 Kg de carne picada
+ 2 chávenas de chá de grão de trigo moído
+ 1 cebola
+ 4 dentes de alho
+ Hortelã
+ Meio limão
+ Azeite, sal e pimenta
+ Óleo para fritar

in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Maio 2006

maio 01, 2006

O Estado tem grandes ideias

A ideia de que a fa­mília é a célula da sociedade não me incomoda (embora não concorde com ela), nem acho assun­to para discussão. A ideia de que as famílias numerosas é que são famílias, porém, tomou conta do pensamento dominan­te na propaganda sobre fiscali­dade e segurança social. Em linhas gerais, o Estado tomou a seu cargo a definição da família numerosa como família financiável e premiável. O Estado festeja-a, finalmente, e indica aos prevaricadores, que têm menos filhos, ou por algum mo­tivo não os têm, o caminho justo, generoso e tam­bém católico, de reprodução para benefício da comunida­de.

Os ideólogos da segurança so­cial e da demogra­fia olham a sociedade e exigem, como o profeta: ide e multiplicai-vos. E acrescentam: disso depende a segurança social e, bem entendido, a nossa sobrevivência demográfica. Este desejo é francamente inspirador e, vamos lá, devia dei­xar-nos inquietos - e corados de vergonha. O Estado pode olhar para os seus cidadãos e repreen­dê-los porque eles não trabalham o suficiente, porque eles abusam do álcool ou do ex­cesso de veloci­dade nas estradas. Mas, em boa verdade, não pode punir (fiscalmente) aqueles que não se reproduzem convenientemente, taxando-os de forma mais pesada e com um tom claramente repressivo.

Não porque seja ilegal o facto de o Estado premiar quem tem uma actividade sexual mais acti­va ou quem não usa anticoncep­cionais. No momento que vive­mos, esse incentivo à sexualida­de conjugal é sempre bem-vindo. Andamos tristes e, com o Verão à porta, quem sabe se o país não desata, com mais afinco, a dedi­car-se a práticas sexuais que o li­vrem do medo do amanhã. É criticável, claro, mas pode fazê-lo.

Mas é preciso, en­tretanto, alertar os ci­dadãos para esta ar­madilha: o Estado não quer que as pessoas façam sexo, atenção; o Estado quer mão-de-obra, população, con­tribuintes, elei­tores, carne para canhão. Quem quiser, dá - quem não quiser, não pode ser acusado de falta de pa­triotismo. O eng.° Gu-terres, ainda enquanto candidato a primeiro-ministro, já se queixa­va amargamente da falta de repro­dução nacional e usou o tema como argumen­to eleitoral, daí se inferindo que os portugueses não se entregavam às alegrias da procria­ção porque o cavaquismo os tinha depri­mido ou lhes tinha provocado alguma das disfunções do costume.

Ora, o Estado não quer cida­dãos distraídos desse objectivo disciplinador que, finalmente, concilia anos de pregação moral e católica com os desejos de qualquer política demo­gráfica de um regime socialista à antiga (excep­to" na China porque, como se sabe, a China anda ao contrário).

Pessoalmente, compreendo a felicidade dos progenitores de uma família numerosa: quatro, seis, oito, 12 filhos reunidos à mesa, encami­nhando-se para a escola, dor­mindo em camaratas e inco­modando as pessoas na praia. É a vingança contra Herodes. O Estado premeia essa felicida­de - punin­do fiscal­mente quem não vê grande alegria na reprodu­ção, quem não quer ter se­não um filho, ou, simplesmente, quem não quer ou não pode ter filhos.

Este discurso fiscal do Estado acaba por encaixar na crítica aos europeus que, egoístas, se recu­sam a transformar os seus apar­tamentos em velhas casas de fa­mília, cheias de crianças que daí a uns anos vão contribuir para a Segurança Social.

É evidente que há um proble­ma demográfico sério. Mas pen­sar que as pessoas vão ter filhos quando a vida está como está, quando a vida é como é, como os impostos estão como estão, já me parece um excesso de optimismo.

in Jornal de Notícias – 1 de Maio 2006