Eu e Gabriela em Ilhéus
O aspecto é o de um croquete. Mas no quibe que os emigrantes sírios e libaneses levaram para o Brasil, há uma memória que nos reenvia à pureza do frito e ao perfume das sementes.
A minha paixão pelo quibe começou com Jorge Amado, em São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela ou no magnífico e imprescindível guia histórico de Salvador e da Bahia, Bahia de Todos os Santos. Na verdade, Salvador devia chamar-se apenas Bahia de Todos os Santos, como sustenta Jorge Amado (e não há coisa mais irritante do que ouvir chamar-lhe São Salvador - que não é).
Cheguei pela primeira vez a Ilhéus, São Jorge dos Ilhéus, num meio de tarde de chuva baiana. Não sei se sabem como se circula por essa estrada, que me trazia do Sul desde há dez dias, conduzindo de madrugada, aproveitando o fresco das primeiras horas do dia - mas tendo arrancado de ainda a sul do Rio, a sul de Florianópolis, a sul de Porto Alegre. Eu vinha do Chuí, ou seja, da fronteira do Uruguai. A BR-101, a estrada do litoral, que começa perto da Lagoa dos Patos, no Rio Grande, estendia-se até depois da Paraíba, mas eu pararia em Ilhéus. Eu queria conhecer o Bar Vesúvio, em Ilhéus, e comer um quibe preparado por Gabriela. Coisa mais de novela de televisão do que de literatura - quem lê Gabriela Cravo e Canela sem ter visto Sônia Braga, precisa de conhecer o seu rosto pelo menos, o seu riso, e a maneira como transformou os portugueses, mais do que os brasileiros. Ela povoou a minha imaginação de adolescente durante anos. E o Vesúvio, o bar de Nacib e de Gabriela, sempre fora um recanto saboroso na minha memória visual de Ilhéus.
Mas a tarde estava chuvosa e o Brasil perderia o jogo contra a Dinamarca. Estávamos em 1998 e não fazia mal porque eu tinha, finalmente, chegado a Ilhéus, onde voltei há dois anos e no ano passado - e onde, na verdade, nunca comi o quibe de Gabriela, nem qualquer outro quibe. O melhor quibe da minha vida é paulista, comido ao balcão de madeira de um boteco não longe da
Augusta, em São Paulo, debaixo de um céu de chumbo, quente, abafado, quando apenas procurava uma cerveja para iluminar o caminho que ainda faltava até à hora de jantar.
Havia um cheiro, um perfume, uma coisa danada no ar. Eu já tinha comido quibes na Baía, já tinha comido quibes em São Paulo, no Rio ou mesmo em Manaus. Mas aquele era superior; esse pressentimento ainda hoje me percorre como um arrepio - eu tenho, às vezes, coisas dessas em relação à comida. Mas ainda não tinha ouvido falar de Ley-la Mohamed Youssef Kuczynski, a proprietária do Arábia, um restaurante libanês de São Paulo, nem
de Benon Chamilian, um chef libanês que preparava quinze receitas diferentes de quibe. Quando ouvi falar dos dois, e iniciei a minha investigação em demanda do quibe perfeito, era tarde. O pecado, em vez de morar ao lado, morava dentro de mim. E chamava-se «o vício do quibe», um dos pratos que os imigrantes levaram do Médio Oriente para o Brasil no século XIX e início do XX.
A receita que hoje dou é muito simples: tomar 2 chávenas de chá de grão de trigo sem casca e ligeiramente moído (no Brasil chama-se, simplesmente, «trigo para quibe» e está à venda em todos os supermercados) e demolhá-lo por meia hora, após o que se deve escorrer e, em seguida, espremer bem com as mãos. Faz-se então uma massa que se obtém a partir da mistura do trigo (que é o único ingrediente que se vai adicionando aos poucos) com cerca de um quilo de carne picada, uma cebola picada muito fina, quatro dentes de alho (se for alho branco, melhor), duas ou três colheres de sopa de hortelã verde picada (há certas variantes, como as do vale de Bekaah, que o dispensam - mas não eu), pimenta moída na hora, duas colheres de sopa de azeite, sumo de meio limão e sal a gosto. Amassam-se bem os ingredientes e deixam-se repousar durante um quarto de hora a meia hora.
Em seguida formam-se croquetes de tamanho médio, alongados nas pontas, que se fritam em óleo bem quente. Este é o quibe mais simples que conheço. Não evoca nada senão a memória de Gabriela, atravessando as ruas de Ilhéus com o seu tabuleiro de salgadinhos enquanto eu estou sentado a uma mesa do Vesúvio, a beber cerveja. Mas é o meu quibe.
Ingredientes
+ 1 Kg de carne picada
+ 2 chávenas de chá de grão de trigo moído
+ 1 cebola
+ 4 dentes de alho
+ Hortelã
+ Meio limão
+ Azeite, sal e pimenta
+ Óleo para fritar
in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Maio 2006
A minha paixão pelo quibe começou com Jorge Amado, em São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela ou no magnífico e imprescindível guia histórico de Salvador e da Bahia, Bahia de Todos os Santos. Na verdade, Salvador devia chamar-se apenas Bahia de Todos os Santos, como sustenta Jorge Amado (e não há coisa mais irritante do que ouvir chamar-lhe São Salvador - que não é).
Cheguei pela primeira vez a Ilhéus, São Jorge dos Ilhéus, num meio de tarde de chuva baiana. Não sei se sabem como se circula por essa estrada, que me trazia do Sul desde há dez dias, conduzindo de madrugada, aproveitando o fresco das primeiras horas do dia - mas tendo arrancado de ainda a sul do Rio, a sul de Florianópolis, a sul de Porto Alegre. Eu vinha do Chuí, ou seja, da fronteira do Uruguai. A BR-101, a estrada do litoral, que começa perto da Lagoa dos Patos, no Rio Grande, estendia-se até depois da Paraíba, mas eu pararia em Ilhéus. Eu queria conhecer o Bar Vesúvio, em Ilhéus, e comer um quibe preparado por Gabriela. Coisa mais de novela de televisão do que de literatura - quem lê Gabriela Cravo e Canela sem ter visto Sônia Braga, precisa de conhecer o seu rosto pelo menos, o seu riso, e a maneira como transformou os portugueses, mais do que os brasileiros. Ela povoou a minha imaginação de adolescente durante anos. E o Vesúvio, o bar de Nacib e de Gabriela, sempre fora um recanto saboroso na minha memória visual de Ilhéus.
Mas a tarde estava chuvosa e o Brasil perderia o jogo contra a Dinamarca. Estávamos em 1998 e não fazia mal porque eu tinha, finalmente, chegado a Ilhéus, onde voltei há dois anos e no ano passado - e onde, na verdade, nunca comi o quibe de Gabriela, nem qualquer outro quibe. O melhor quibe da minha vida é paulista, comido ao balcão de madeira de um boteco não longe da
Augusta, em São Paulo, debaixo de um céu de chumbo, quente, abafado, quando apenas procurava uma cerveja para iluminar o caminho que ainda faltava até à hora de jantar.
Havia um cheiro, um perfume, uma coisa danada no ar. Eu já tinha comido quibes na Baía, já tinha comido quibes em São Paulo, no Rio ou mesmo em Manaus. Mas aquele era superior; esse pressentimento ainda hoje me percorre como um arrepio - eu tenho, às vezes, coisas dessas em relação à comida. Mas ainda não tinha ouvido falar de Ley-la Mohamed Youssef Kuczynski, a proprietária do Arábia, um restaurante libanês de São Paulo, nem
de Benon Chamilian, um chef libanês que preparava quinze receitas diferentes de quibe. Quando ouvi falar dos dois, e iniciei a minha investigação em demanda do quibe perfeito, era tarde. O pecado, em vez de morar ao lado, morava dentro de mim. E chamava-se «o vício do quibe», um dos pratos que os imigrantes levaram do Médio Oriente para o Brasil no século XIX e início do XX.
A receita que hoje dou é muito simples: tomar 2 chávenas de chá de grão de trigo sem casca e ligeiramente moído (no Brasil chama-se, simplesmente, «trigo para quibe» e está à venda em todos os supermercados) e demolhá-lo por meia hora, após o que se deve escorrer e, em seguida, espremer bem com as mãos. Faz-se então uma massa que se obtém a partir da mistura do trigo (que é o único ingrediente que se vai adicionando aos poucos) com cerca de um quilo de carne picada, uma cebola picada muito fina, quatro dentes de alho (se for alho branco, melhor), duas ou três colheres de sopa de hortelã verde picada (há certas variantes, como as do vale de Bekaah, que o dispensam - mas não eu), pimenta moída na hora, duas colheres de sopa de azeite, sumo de meio limão e sal a gosto. Amassam-se bem os ingredientes e deixam-se repousar durante um quarto de hora a meia hora.
Em seguida formam-se croquetes de tamanho médio, alongados nas pontas, que se fritam em óleo bem quente. Este é o quibe mais simples que conheço. Não evoca nada senão a memória de Gabriela, atravessando as ruas de Ilhéus com o seu tabuleiro de salgadinhos enquanto eu estou sentado a uma mesa do Vesúvio, a beber cerveja. Mas é o meu quibe.
Ingredientes
+ 1 Kg de carne picada
+ 2 chávenas de chá de grão de trigo moído
+ 1 cebola
+ 4 dentes de alho
+ Hortelã
+ Meio limão
+ Azeite, sal e pimenta
+ Óleo para fritar
in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Maio 2006
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