Clássico temperado
A velha cozinha burguesa do Porto, cheia de aromas definitivos e de conjugações clássicas: é este o tom do Casa Nanda, uma referência na cidade, na velha tradição
Eu sempre tive inveja dos coleccionadores de restaurantes - não sendo um deles, observo-os à distância, com aquela comoção de avó, deliciado com o apetite, a lembrança de um prato. Detecto-Ihes um leve rubor quando começam a enumerar a sua lista: declamam os nomes dos restaurantes e os cardápios, contam a história de um desvio de cem quilómetros para entrar naquela porta, comentam a textura de um bacalhau, uma travessa de grelos salteados, um pratinho de grão-de-bico, um tabuleiro saído do forno, seja o que for. É verdade que durante muito tempo não acreditei no mito do "desvio de cem quilómetros" até conhecer Manuel Vázquez Montalbán, que ultrapassava em muito os cem quilómetros em nome de uma simples "butifarra" fresca que o fazia conduzir durante um fim-de-semana em busca do almoço ideal para um estado de espírito.
Quem, de entre os leitores desta coluna, não se sentiu tomado pela secreta esperança de encontrar o prato ideal, a refeição ideal e, até, o restaurante ideal? Eu conheço a sensação: às vezes acordo com um sabor perdido à minha volta, um aroma qualquer que se soltou inadvertidamente ao abrir a mala das recordações. E vem aí uma lista dos clássicos - um restaurante em Vouzela por causa da vitela no forno, um de Paredes de Coura por causa do cozido, outro em Guimarães, outro em Viana ou em Melgaço, ou na Arruda dos Vinhos - mesmo que termine com a evocação de umas sardinhas na Póvoa de Varzim. Muitas vezes aproxima-se de mim essa tentação, desde que conheci a Casa Nanda, no Porto, em plena Rua da Alegria, uma referência no Porto antigo, a cidade de granitos escuros, húmidos, clássicos, austeros.
O próprio restaurante, não sendo um modelo de austeridade, é um modelo de abnegação: nada de valorizar a decoração, o som ambiente, a própria composição da mesa. A velha casa de pasto foi recentemente varrida e retocada, reabrindo sem perder esse aspecto que lhe confere a classificação de "lugar bom para comer", mantendo uma sobriedade que desagrada a espíritos modernos (muito satisfeitos com a decoração das salas, cheias de 'design') mas que contenta as nossas boas almas burguesas. Aliás, a Casa Nanda, herdeira da tradição das velhas casas de pasto portuenses, obrigando-nos a regressar até à cozinha burguesa dos anos sessenta e setenta.
Eu fui lá a primeira vez há uns anos, por causa de uma lampreia - que estava excelente, se bem que os bolinhos de bacalhau e os filetes de polvo me tivessem comovido ainda mais (mas isso é porque não sou um fanático de lampreia). Depois, em busca dos filetes de pescada ideais, rumei à Casa Nanda de outra vez, e comi-os, deliciado, com um arrozinho de berbigão, solto e malandrinho, delicioso, enquanto os meus companheiros deglutiam uma cabeça de pescada.
De novo em romaria, comi umas pataniscas de bacalhau (arredondadas, firmes, generosas nas lascas de bacalhau) com arroz de feijão, provei as petingas fritas e terminei com um arroz de bacalhau de boa traça tardo-barroca, rosado e alaranjado, com filetes do mesmo.
Destas mesas soltam-se aromas: recomendam-me o cozido à portuguesa, que ainda não provei, mas eu menciono provas recentes de filetes de polvo (com arroz de polvo, rosadinho) e de bifinhos de cebolada à velha maneira do Porto ligeiramente acidulados, de bacalhau frito à moda de Braga. E, naturalmente, as tripas à moda do Porto, ou à portuguesa, afinal: cremosas, perfumadas, excelentes, memoráveis, criminosas, altamente recomendáveis. Sem falar destas duas coisas que eu não esqueço: a honestidade absoluta do leite-creme e o aroma que se soltava do prato de sopa de legumes. Não sei se me entendem: uma sopa diz muito da natureza do restaurante, da escolha dos produtos. Quem cozinha sabe que uma sopa é um cartão de identidade do cozinheiro - se tem aroma de sopa, é meio caminho andado. E é.
À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 27
Vinhos verdes: 10
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 14
Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Levar crianças: Sim
Área não fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros
CASA NANDA
Porto, R. Alegria, 394
Tel: 225370575
Encerra aos domingos.
Fecha às 22h00
in Revista Notícias Sábado – 6 Maio 2006
Eu sempre tive inveja dos coleccionadores de restaurantes - não sendo um deles, observo-os à distância, com aquela comoção de avó, deliciado com o apetite, a lembrança de um prato. Detecto-Ihes um leve rubor quando começam a enumerar a sua lista: declamam os nomes dos restaurantes e os cardápios, contam a história de um desvio de cem quilómetros para entrar naquela porta, comentam a textura de um bacalhau, uma travessa de grelos salteados, um pratinho de grão-de-bico, um tabuleiro saído do forno, seja o que for. É verdade que durante muito tempo não acreditei no mito do "desvio de cem quilómetros" até conhecer Manuel Vázquez Montalbán, que ultrapassava em muito os cem quilómetros em nome de uma simples "butifarra" fresca que o fazia conduzir durante um fim-de-semana em busca do almoço ideal para um estado de espírito.
Quem, de entre os leitores desta coluna, não se sentiu tomado pela secreta esperança de encontrar o prato ideal, a refeição ideal e, até, o restaurante ideal? Eu conheço a sensação: às vezes acordo com um sabor perdido à minha volta, um aroma qualquer que se soltou inadvertidamente ao abrir a mala das recordações. E vem aí uma lista dos clássicos - um restaurante em Vouzela por causa da vitela no forno, um de Paredes de Coura por causa do cozido, outro em Guimarães, outro em Viana ou em Melgaço, ou na Arruda dos Vinhos - mesmo que termine com a evocação de umas sardinhas na Póvoa de Varzim. Muitas vezes aproxima-se de mim essa tentação, desde que conheci a Casa Nanda, no Porto, em plena Rua da Alegria, uma referência no Porto antigo, a cidade de granitos escuros, húmidos, clássicos, austeros.
O próprio restaurante, não sendo um modelo de austeridade, é um modelo de abnegação: nada de valorizar a decoração, o som ambiente, a própria composição da mesa. A velha casa de pasto foi recentemente varrida e retocada, reabrindo sem perder esse aspecto que lhe confere a classificação de "lugar bom para comer", mantendo uma sobriedade que desagrada a espíritos modernos (muito satisfeitos com a decoração das salas, cheias de 'design') mas que contenta as nossas boas almas burguesas. Aliás, a Casa Nanda, herdeira da tradição das velhas casas de pasto portuenses, obrigando-nos a regressar até à cozinha burguesa dos anos sessenta e setenta.
Eu fui lá a primeira vez há uns anos, por causa de uma lampreia - que estava excelente, se bem que os bolinhos de bacalhau e os filetes de polvo me tivessem comovido ainda mais (mas isso é porque não sou um fanático de lampreia). Depois, em busca dos filetes de pescada ideais, rumei à Casa Nanda de outra vez, e comi-os, deliciado, com um arrozinho de berbigão, solto e malandrinho, delicioso, enquanto os meus companheiros deglutiam uma cabeça de pescada.
De novo em romaria, comi umas pataniscas de bacalhau (arredondadas, firmes, generosas nas lascas de bacalhau) com arroz de feijão, provei as petingas fritas e terminei com um arroz de bacalhau de boa traça tardo-barroca, rosado e alaranjado, com filetes do mesmo.
Destas mesas soltam-se aromas: recomendam-me o cozido à portuguesa, que ainda não provei, mas eu menciono provas recentes de filetes de polvo (com arroz de polvo, rosadinho) e de bifinhos de cebolada à velha maneira do Porto ligeiramente acidulados, de bacalhau frito à moda de Braga. E, naturalmente, as tripas à moda do Porto, ou à portuguesa, afinal: cremosas, perfumadas, excelentes, memoráveis, criminosas, altamente recomendáveis. Sem falar destas duas coisas que eu não esqueço: a honestidade absoluta do leite-creme e o aroma que se soltava do prato de sopa de legumes. Não sei se me entendem: uma sopa diz muito da natureza do restaurante, da escolha dos produtos. Quem cozinha sabe que uma sopa é um cartão de identidade do cozinheiro - se tem aroma de sopa, é meio caminho andado. E é.
À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 27
Vinhos verdes: 10
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 14
Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Levar crianças: Sim
Área não fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros
CASA NANDA
Porto, R. Alegria, 394
Tel: 225370575
Encerra aos domingos.
Fecha às 22h00
in Revista Notícias Sábado – 6 Maio 2006
<< Home